A polêmica da chamada violência obstétrica no Brasil

Prédio 11
23 min readDec 27, 2021

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Enquanto grupos de mulheres denunciam o que chamam de violência obstétrica, médicos negam o problema. Discussão é alvo de estudos no Brasil e em diversos países.

Foto: Alexander Krivitskiy Por Unsplash

No Brasil a violência obstétrica atinge cerca de uma a cada quatro gestantes, segundo o estudo “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados”, realizado pela Fundação Perseu Abramo, em parceria com o SESC, em 2010. Uma década mais tarde, o problema ainda se faz tão presente quanto deveria e é a realidade de muitas gestantes no país. Segundo a técnica de enfermagem Marjory Cristiane Conceição, funcionária do Hospital de Clínicas, a violência obstétrica é qualquer tipo de violência cometida contra a gestante durante o período de pré-natal, o parto e o pós-parto. No entanto, a temática é polêmica, já que o Conselho Regional de Medicina não reconhece o termo Violência Obstétrica.

O presidente do CREMERS, Carlos Isaia Filho, que é obstetra, não admite o conceito. “Eu não sei o que é violência obstétrica. O CREMERS não reconhece esse termo”, diz ele. Ele garante que o obstetra e a equipe de saúde, em qualquer hospital, ou em qualquer ambulatório, oferece o melhor que tem para ela. Ele explica que “a equipe não está lá para violentar uma gestante, nenhum médico vai violentar uma paciente”.

A doutora em obstetrícia e presidente da Associação Mulher Ciência e Reprodução Humana do Brasil (ANCR), Marise Samama, diz que tem conhecimento do termo e o reconhece. A também doutora em obstetrícia , Maristela Benfica, diz ter conhecimento do termo “violência obstétrica”, mas que não reconhece como um ato de violência, pois há situações em que o parto cesáreo é necessário.

“Acredito que têm situações onde o parto cesáreo é muito bem indicado e salva vidas tanto das mães quanto dos fetos. Há situações em que as pacientes não querem fazer parto vaginal e pedem cesarianas eletivas e acredito que o pré-natal pode auxiliar para que mudem de ideia, ou se isso não ocorrer, que sejam respeitadas nas suas opções”, médica obstetra, Maristela Benfica.

O termo é mesmo controverso. A advogada da Themis — Gênero, Justiça e Direitos Humanos, criada em 1993 por um grupo de advogadas e cientistas sociais feministas com o objetivo de enfrentar a discriminação contra mulheres no sistema de justiça, Renata Jardim, explica que não há, realmente, uma legislação específica que traga o conceito de violência obstétrica. Segundo ela, o que existe hoje são leis “que dão conta de uma garantia para que não ocorra condutas tipificadas como violência obstétrica”. Esse é um conceito mais amplo que, conforme a especialista, entende que o significado de violência obstétrica é aquela que acontece no período de parto, puerpério e gravidez das mulheres. “A violência obstétrica é reconhecida como uma das muitas formas de violência contra as mulheres. Ela afeta a integridade física, moral e psicológica, e acontece durante o período reprodutivo da vida da mulher, sendo mais frequente a sua ocorrência durante a gestação, parto e em situações de abortamento e esterilização”, explica, Renata Jardim.

Segundo os especialistas, a violência pode ser expressa por meio de tratamentos desumanizados, abuso de medicalização ou a patologização dos processos naturais, causando a perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e impactando também negativamente na qualidade de vida das mulheres, que pode, em casos mais graves, ocasionar a morte.

Imagem: Ministério Público de Santa Catarina

Profissional de saúde admite que existem casos de violência contra gestantes

Inserida no meio hospitalar, a técnica de enfermagem do Hospital de Clínicas, Marjory Cristiane Conceição, comenta a dificuldade de reconhecimento e utilização do termo. Conforme ela, ”os obstetras, os médicos ,em específico, não gostam do termo porque entendem que essa violência pode ser cometida por profissionais da saúde, e até mesmo familiares.” Ela ainda comenta que os médicos desejam a mudança na nomenclatura do termo, de violência obstétrica para violência contra a mulher gestante.

Na opinião de Marjory Conceição, alguns tipos mais comuns de violência obstétrica são o processo de dificultar o acesso da gestante ao pré-natal. Durante o parto, há a episiotomia, que consiste em um corte no períneo sem necessidade e sem o consentimento da gestante, o uso da ocitocina, uma droga sintética usada para aumentar a dilatação, sem permissão ou indicação. Ela explica que, se a mulher está apresentando progressão no parto natural, não há razão em utilizar o medicamento.

Além desses, a Manobra de Kristeller, onde o médico acaba empurrando a barriga da mulher para facilitar a saída do bebê, também é outro tipo de violência comum que pode gerar traumas tanto para a mãe, quanto para o bebe, além do impedimento e do acesso da gestante a meios que aliviem a dor dela, como a peridural, que deve ser oferecida sempre ou até mesmo alguns tipos de massagem relaxantes. Não oferecer livre movimentação, comenta ela, também caracteriza um tipo de violência contra a gestante.

Conforme a técnica, muitas mulheres acabam tendo o parto na posição deitada, mas o mais confortável, segundo ela, e o que a maioria opta quando pode é a posição vertical. Ela também denuncia violência psicológica que, segundo a técnica de enfermagem, seriam comentários que considera desnecessários. Além disso, a doutora em Obstetrícia, Maristela Benfica, coloca que existem muitos profissionais que insistem no parto vaginal, além do que deveriam, podendo assim causar sequelas aos recém nascidos.

Médicas Obstetras orientam sobre o momento do parto

A doutora em obstetrícia e presidente da Associação Mulher Ciência e Reprodução Humana do Brasil (ANCR), Marise Samama coloca que a assistência ao parto vaginal deve ser sempre baseado em evidências científicas, pensando sempre em evitar extremos e prejudicar a saúde do binômio mamãe-bebê.

“As indicações do modo de Assistência ao parto e da via de parto baseadas em evidências científicas, existem para manter a segurança dos pacientes e não devem ser ignoradas, nem serem fruto de desinformação.”

De acordo com a doutora em obstetrícia Maristela Benfica, que acredita no parto vaginal quando tudo ocorre bem e com tranquilidade, não havendo assim riscos para mãe e filho, recomenda que no parto humanizado conte com a presença de um obstetra.

“O médico obstetra faz a diferença, acredito que o saber a hora de parar de insistir num trabalho de parto que não esteja evoluindo bem faz toda a diferença. Nesse momento uma boa assistência num hospital qualificado faz toda a diferença.”, Maristela Benfica.

Ao falar sobre o parto cesariano, a médica obstetra Marise Samama, coloca que a mãe não deve se sentir menos vitoriosa ou importante. “Fazer uma cesariana não torna a mãe menos vitoriosa ou menos importante, o momento é de felicidade e deve-se ter toda segurança redobrada por ser um dos momentos mais importantes da vida do casal”.

A invisibilidade da violência contra a mulher gestante

Em uma das maiores pesquisas sobre nascimentos já produzidas no Brasil realizada entre os anos de 2011 e 2012 pela Nascer Brasil, que entrevistou quase 24 mil mães, mais da metade das mulheres brasileiras que são atendidas através do Sistema Único de Saúde (SUS) sofrem algum tipo de violência obstétrica.

Imagem: Ministério Público de Santa Catarina

Em uma das maiores pesquisas sobre nascimentos já produzidas no Brasil realizada entre os anos de 2011 e 2012 pela Nascer Brasil, que entrevistou quase 24 mil mães, mais da metade das mulheres brasileiras que são atendidas através do Sistema Único de Saúde (SUS) sofrem algum tipo de violência obstétrica, embora a prática seja normalizada dentro dos ambientes hospitalares e muitas gestantes não a reconheçam no momento em que a sofrem.

Imagem: Ministério Público de Santa Catarina

Gestantes relatam suas experiências de parto

Maiara conta que durante muito tempo acreditou que havia tido um parto normal quando, na realidade, havia sofrido um parto fórceps. Para ela, que teve seu primeiro filho há seis anos, quando tinha apenas dezesseis, a experiência traumática começou ainda no pré-natal.

Segundo ela, ao comparecer na maternidade algumas vezes por sentir dor, sempre era mandada de volta para casa, sem atendimento adequado. Por último, quando foi a terceira vez, chegou na maternidade já com cinco dedos de dilatação. Menor de idade e sem muita informação, Mayara comenta que não conhecia os seus direitos.

“Começou errado desde a internação, quando não permitiram que eu tivesse acompanhante, fiquei sozinha na sala de pré-parto, fui colocada no soro e eu não sabia que era opcional, que eu poderia esperar o bebe querer nascer, e que estavam acelerando esse parto. Por fim, eu tive que ter um parto fórceps. E depois de pesquisar muito sobre esse parto, eu descobri que ele é proibido inclusive, e que o mais recomendável seria uma cesariana, que o hospital não quis fazer de forma nenhuma.”

Ela reclama que sofreu julgamento por parte de alguns profissionais na sala de pré-parto no hospital e sentiu-se humilhada. Lembra que ouvia frases como “ah, mas na hora que você fez, você não gritou”, “na hora que você fez ‘tava gostoso né”.

Lembra que após o parto não foi diferente. “Ouvia comentários e piadas como até o ano que vem”. Segundo ela, no mesmo quarto de pós-parto a outra recém mãe também havia tido um parto tão sofrido quanto o seu e teve o braço de seu bebê quebrado durante o nascimento. Mayara lembra ainda que, um dia antes de ter alta, seu filho engasgou com restos do parto e, com os pontos do procedimento, ela mal pode ajudá-lo. Ao chamar por ajuda, demorou a ser atendida. A demora no atendimento resultou em uma lavagem estomacal no recém-nascido.

“Foi horrível, horrível de verdade, mas tirando esse fato dele ter engasgado, da enfermeira ter demorado para vir, eu era mãe de primeira viagem. Eu não sabia absolutamente nada, nem amamentar eu fui ensinada.”

A amamentação, segundo ela, foi a parte mais difícil quando foi para casa, além da pouca orientação em relação aos pontos, que estouraram e ela precisou costurá-los novamente sem anestesia.

Atualmente grávida de seu segundo filho, já com sete meses de gestação, ela conta que vive outra realidade. Além de pesquisar e ser melhor informada, ela acredita que não vai passar novamente o que passou em seu primeiro parto e comenta a troca de maternidade. O caso de Mayara aconteceu na Maternidade do Campo Novo, em São Paulo, há seis anos, mas os traumas da situação a acompanham até os dias de hoje, embora garanta que esteja mais bem informada sobre os seus direitos. “Eu demorei, sim, mas aí quando você vai tomando à tona os assuntos sobre violência obstétrica, você vai começando a pesquisar, e aí você vai descobrindo e apontando um monte de erros que aconteceu comigo. Se eu tivesse informação ou pelo menos uma acompanhante, nada disso teria acontecido. Então assim, eu entendo que no meu parto eu fui feita de gato e sapato, fizeram o que quiseram de mim.”

Além dos atos de violência obstétrica relatados por Mayara, ela ainda luta contra a negativa para a realização de uma Laqueadura. A esterilização por meio de cirurgia é regida pela Lei nº 9.263/96, sendo assim um direito de todas as mulheres que tenham pelo menos dois filhos vivos. Mayara contou que está fazendo um planejamento familiar e optou pela laqueadura como forma anticoncepcional, até porque não quer mais filhos.

…“nós somos donas do nosso corpo, só que na prática não tá acontecendo. Sabe porque não tá acontecendo? Eu sou casada, com o pai do meu filho, só que eu preciso da assinatura dele pra fazer a laqueadura? Eu preciso da assinatura de um homem para poder laquear o meu corpo? Não tá fazendo sentido, na contramão de tudo que o movimento feminista vem pregando. Porque se eu preciso da assinatura de um macho para poder fazer uma laqueadura, como eu sou a dona?”, finaliza.

Marcas de três Gestações — A lojista Risa conta três experiências traumáticas que marcaram sua vida. Segundo ela, o primeiro trauma foi marcado por uma gestação molar, que é um tumor benigno, que se desenvolve no útero como resultado de uma gestação não viável.

“E como eu tive a gestação molar, eu fiz o internamento para fazer a curetagem, que é um procedimento que é como se já estivesse em processo de aborto, um aborto espontâneo. Então eu participei dessa questão do internamento, eu não tinha noção do que era uma violência obstétrica, do que era plano de parto, nada disso.”

Muito jovem, ela conta que não sabia que já estava gestando. Tinha descoberto recentemente a gravidez e se sentia eufórica. Conforme ela, ainda em seu primeiro ultrassom, o médico, sem sensibilidade alguma, disse que ela estava “vazia”.

“Foi o termo que ele usou, estava eu e meu esposo e ele disse que eu estava vazia e que era para eu sair da maca, sair da sala, que eu não tinha nada.”

Ela conta que buscou no hospital informações acerca do que estava acontecendo, e depois da espera para refazerem o ultrassom e explicarem a suspeita de que ela sofria uma gestação molar, foi preparada para fazer uma curetagem.

“Sempre termos técnicos, ninguém falou para mim o que estava acontecendo, eu não sabia de nada sobre o que era curetagem, o que era gestação molar, se eu tinha o bebê, o que eu iria fazer, nada.”, completou ela.

A segunda gestação, depois de um ano e meio da primeira experiência traumática, também não foi fácil. Queixa-se que não explicaram para ela o que seria um parto normal, denunciando o uso da ocitocina sintética (farmacológico utilizado para induzir o parto), sem o seu conhecimento e a realização de indução do nascimento. Conta que sofreu com o corte da episiotomia (corte cirúrgico no períneo), também sem autorização e, sem aviso prévio, mesmo que o parto estivesse fluindo tranquilamente.

“Agora que já estudei um pouco mais sobre isso, eu percebi que o meu corpo poderia ter terminado o trabalho de parto de maneira natural, mas foi feito o corte para tentar acabar com o processo mais rápido. Além do corte do primeiro bebê, eu tive também ponto pro marido, foi dito assim, para ficar mais apertadinho, para ficar melhor, sempre de uma forma bem pejorativo. O médico sempre deixando a gente com aquela sensação de que estamos fazendo uma coisa boa, mas na verdade estavam me violentando.”

Da terceira gestação, queixa-se também de um corte cirúrgico na região do períneo ainda maior em relação aos outros dois primeiros. “A violência doméstica todo mundo fala, o estupro todo mundo fala, então você não está preparado para aquilo. Quando você vai pedir uma vaga de emprego, e a pessoa vai te acariciar e fazer uma pergunta estranha, você sabe o que está acontecendo, mas quando você chega no hospital e o médico te dá um corte, você não questiona.”.

Risa relata que a experiência traumática deixou marcas até hoje nela. Não falava com ninguém sobre o que aconteceu, e ficava com muito medo. Além dos muitos traumas que sofreu, ela explica que ficou com gatilhos de ansiedade, o que resultou em um processo de depressão.

“A gente se sente não como vítima, mas como culpada, a gente acha que não foi forte o suficiente, que o erro foi nosso, mesmo o erro sendo do médico. Mas você pensa que não era pra ter ido, que podia ter ficado um pouco mais em casa, que era só contração e você começa a justificar”.

Lei brasileira não reconhece o termo Violência Obstétrica

No manual “Boas Práticas de Atenção ao Parto e ao Nascimento”, estabelecido pela Organização Mundial de Saúde desde 1996, os direitos reprodutivos se desenvolvem no âmbito dos direitos humanos, a partir da perspectiva dos direitos individuais. No Brasil, porém, não há nenhuma legislação específica em âmbito nacional sobre o conceito de violência obstétrica.

Advogada Renata Teixeira Jardim — Foto: Arquivo Pessoal

A advogada da Themis — Gênero, Justiça e Direitos Humanos, criada em 1993 por um grupo de advogadas e cientistas sociais feministas com o objetivo de enfrentar a discriminação contra mulheres no sistema de justiça, Renata Jardim, explica que embora não haja leis especificas sobre a violência obstétrica, há algumas legislações sobre o tema que dão garantias de prevenção para as mulheres. Conforme ela, seja para impedir ou protegê-las de algumas condutas tipificadas como violência obstétrica. Segundo explicou a advogada, esse é um conceito mais amplo, com alguns estudos e algumas regulamentações, até em níveis internacionais, que dizem o que significa violência obstétrica, que conforme ela, é a violência que acontece no período de parto, puerpério e gravidez das mulheres.

Ela explica que no âmbito jurídico se entende por violência obstétrica toda a conduta, ação e omissão realizada por profissionais de saúde que, conforme a advogada, de maneira direta ou indireta, afeta o corpo da mulher e os seus processos reprodutivos. Ela ainda completa que o conceito de violência obstétrica se estende por toda a ação sofrida durante a gestação, o parto, o abortamento, a esterilização ou até mesmo os atendimentos na área da saúde prestados à essas mulheres.

“Expressando através de tratamentos desumanizados, abuso de medicalização, patologização dos processos naturais, causando então a perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre os seus corpos, impactando também negativamente na qualidade de vida das mulheres, que pode, em casos mais graves, ocasionar a morte.”, complementa ela.

Embora se tenham leis específicas, a advogada explica que há todo um movimento, inclusive das mulheres, de reconhecimento da necessidade de uma lei mais específica sobre o tema.

“Visto que as pesquisas e quem trabalha e escuta as mulheres e atende mulheres, sabe que é uma demanda bastante grave e bastante generalizada. Por exemplo, se a gente for pegar só situações de abortamento de mulheres, a violência obstétrica é muito decorrente, levando inclusive à morte das mulheres”

Além disso, ela relata que também se incluem situações de não reconhecimento do direito das mulheres de decidir como deve se dar o seu parto, até inclusive ocorrências mais graves em relação à saúde dessas mulheres. São, conforme ela, situações que são importantes de se ter um reconhecimento, pensar em regulamentação e uma política pública eficiente para erradicação desse tipo de violência.

Segundo a advogada falta, ainda hoje, um reconhecimento do próprio congresso Nacional da importância dessa pauta e da necessidade de regulamentações específicas. Renata Jardim ainda frisa que, embora não se tenham leis específicas, já é garantido na legislação que a violência obstétrica é uma violação dos Direitos Humanos das Mulheres.

Após incorporar normativas internacionais, “o Estado já tem o dever de reconhecer. Então assim, diversas situações poderiam ser enquadradas já em crimes que não são específicos de violência obstétrica, mas que poderiam ser responsabilizados. Em especial, responsabilização civil e ética desses profissionais que cometem esse tipo de violência.”

Sem nenhum tipo de lei específica ou reconhecimento da temática, ela comenta que o entendimento acerca do tema na esfera pública se torna deficiente. Embora se tenha um movimento que discuta a violência obstétrica, a advogada explica que hoje se vive um contexto brasileiro de extremo retrocesso e conservadorismo em relação aos direitos das mulheres. Para ela, não se fala mais em avanço e sim em retrocesso, em retirada de direitos.

Logo, ela acrredita que se faz necessária a renovação em termos de legisladores de governos, buscando que sejam pessoas que levem a sério e reconheçam a pauta e a importância de políticas públicas e de regulamentação, além de legislações específicas para conter essa violência contra as mulheres, sendo ele inclusive um problema social, complementa. Ela ainda explica que a violência obstétrica está dentro de um conjunto de violências que as mulheres sofrem pelo fato de serem mulheres, pelo fato de gestarem.

Como recorrer?

Imagem: Ministério Público de Santa Catarina

Para recorrerem juridicamente, as mulheres podem, dentro das próprias instituições de saúde, indicar em ouvidorias a violência sofrida em busca de uma reparação e uma responsabilização de profissionais e instituições. Tanto em nível administrativo, na ouvidoria direta da maternidade, ou institucional, onde também podem recorrer ao Ministério Público, ouvidorias de serviços, Defensoria Pública, ou até mesmo através da procura de advogados.

Gabriela complementa que também é possível buscar “os conselhos de direitos, conselhos de saúde, conselhos de direitos das mulheres, que também podem ser um espaço de denúncia e de proposição de ações para mudanças dessas práticas em níveis institucionais. E os conselhos mesmo de ética e profissionais desses profissionais de saúde, então tem uma série de estratégias e caminhos que pode se buscar a reparação e a responsabilização desses tantos profissionais quanto das instituições.”.

Segundo ela, a primeira dificuldade encontrada na denúncia é o medo de falar, de ser desacreditada e não ter uma resposta efetiva, além da pouca disponibilidade de serviços e estruturas especializadas para escutar e fazer os encaminhamentos dessas mulheres. O que mostra que há uma necessidade neste sentido. Não tendo uma legislação específica, esse tema fica pulverizado nas instituições, o que também dificulta a denúncia, ou até mesmo o reconhecimento de que essa mulher está sofrendo uma violência.

Sem um percurso linear, as mulheres têm, segundo ela, “diferentes instituições que podem ajudá-la nesse sentido, dependendo de qual é o nível de responsabilização que ela vai desejar. Chegar ao judiciário em uma responsabilização, seja do profissional ou da instituição, ela pode chegar de diferentes formas, via um advogado, via uma defensoria pública, via o ministério público, via uma delegacia, a partir então de um inquérito policial, então tem diferentes formas de ela chegar até o judiciário.”

Dependendo do que a mulher busca, ela cita que as mulheres têm direito de solicitar seus prontuários médicos, para ter as informações do parto e atendimento, para poder fazer essa denúncia da situação de violência que está vivenciando, mesmo que não seja imediatamente. Ela explica que há alguns regramentos que vão depender do tipo de violência que a mulher sofreu. Gabriela ainda relata que isso é relativo aos enquadramentos penais, que é então a responsabilização e tem um prazo prescricional, o que vai depender de caso a caso. Não sendo muito curtos, por conta dos tramites legais, muitas vezes as pessoas passam por situação de violência e essa denúncia muitas vezes não é feita de forma imediata, exatamente por conta dos traumas, por diversas situações, ou até um não reconhecimento de estar em uma situação de violência.

Na Themis, conforme ela, há um programa que faz a escuta e o acompanhamento de mulheres em situações de violência. Segundo Gabriela, a organização trabalha muito através de uma rede de mulheres comunitárias, que são as promotoras legais populares, formadas pela Themis há 27 anos. Formadas por lideranças comunitárias, para serem referência em suas comunidades, e auxiliar na orientação e acompanhamento dessas mulheres.

Atuação direta na proteção e aconselhamento da mulher

As Promotoras Legais Populares, depois de formadas pelo curso da Themis, recebem todo o acompanhamento institucional e passam então a fazer uma escuta, acompanhamento e orientação para as mulheres. Além disso, a Themis também tem canais institucionais onde recebe diretamente casos, através do e-mail específico, atendimento@themis.org.br, onde também é possível encaminhar suas denúncias e seus pedidos de escuta.

Então a gente faz esse acolhimento e encaminha para a rede de serviços. Esse é um dos trabalhos da Themis, além também de algumas situações que envolvem litígio estratégico, de algumas situações mais emblemáticas, junto de outras organizados também procuramos articular situações para que se tenha interpretações e decisões no judiciário favorável às mulheres”

Conselho Regional na fiscalização de denúncias

Presidente do CREMERS — Carlos Isaia Filho — Foto: Assessoria do CREMERS

O Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul faz parte de um conselho de um sistema conselhal, que é comandado pelo Conselho Federal de Medicina onde cada estado tem o seu próprio conselho. Segundo o presidente do CREMERS, Carlos Isaia Filho, eles têm a função de “basicamente fornecer e registrar todos os médicos, que estão trabalhando no estado fazer o registro de especialidade médicas, para cada médico”.

Além de ação de fiscalização na qual o Conselho procura averiguar as condições pelas quais um médico está trabalhando, e se ele tem condições ideias para desenvolver a Medicina, avaliar todas as denúncias, que chegam no conselho através de um setor, que chama-se Corregedoria, na qual todo médico que sofre alguma denúncia cabe à Corregedoria fazer toda avaliação da veracidade ou não de algum ilícito ético. E na vigência de ser confirmado que houve um mal atendimento que gerou um ilícito ético, então julgar esse profissional.

Os julgamentos no caso podem existir pena, penas que vão desde uma advertência até a suspensão do registro profissional. Então essas seriam as três ações básicas do conselho, além de outras como a Ouvidoria, CODAME, e outros mais.

Segundo o presidente, o CREMERS não reconhece o termo Violência Obstétrica, Carlos Isaia Filho, mas aconselha que “Qualquer paciente obstétrica ou não, que num atendimento médico, achou que não foi bem tratada, ou que ficou alguma deficiência no atendimento. Ele pode e deve procurar o Conselho e fazer a denúncia.”.

Mas ressalta que o Conselho não aceita denúncias anônimas, e explica que “a pessoa tem que se identificar, o conselho não aceita denúncias anônimas, e dizendo quem foi o profissional ou a profissional, e relatando o que aconteceu toda a denúncia que chega no Conselho, é aberto uma sindicância, na qual é avaliada a situação é solicitado um pronunciamento do médico, ou da médica acusada, e através desse pronunciamento, e através da denúncia, então é avaliado por uma Câmara de Conselheiros dos quais vão ver se de fato houve ilícito ético ou não. Na vigência que foi colocado que foi comprovado, a presença de ilícitos ético, então essa sindicância vira um processo ético profissional, para instrução e posterior julgamento.”.

Conforme o diretor, “todo médico tem conhecimento do Código de Ética Médica, tudo que não tiver aqui dentro, no seu desempenho pode ser um ilícito ético”. No site da Instituição há diversas informações referentes aos direitos e deveres médicos, inclusive um formulários para a pessoa acessar para poder fazer a sua denúncia, e ele ainda ressalta que o CREMERS “pode receber denúncias por e-mail, por telefonema, que depois se passa o caminho melhor, para formular uma denúncia”. Segundo ele, “a Ouvidoria que está constantemente em horário comercial, onde tem um conselheiro ou tem um profissional para tirar dúvidas, e dar o melhor encaminhamento possível para a população, e também pros médicos.”

Ele ressalta que a relação médico/paciente atual é uma relação de horizontalidade, em que todo tratamento, forma de diagnóstico e relacionamento com o paciente é colocado e debatido com o próprio paciente. “a decisão de fazer o tratamento A, fazer o tratamento B, é sim uma decisão Colegiada, entre médico e paciente (…)”

Essa relação passa a ser importante, porque nenhum tratamento é isento de riscos, “nenhum tratamento nos dá uma chance de 100%, ou de 0%(…)”, o que conforme o diretor possibilita que a decisão seja entre médico e paciente, e é isso que vai definir a decisão de qual o melhor procedimento a ser realizado. Conforme ele traz principalmente uma segurança muito grande pro paciente, e também para o médico. Ele ainda acrescenta que “todo relacionamento médico/paciente hoje está fundamentado em três princípios prima facie da bioética, que vem a ser o respeito à autonomia, a beneficência, a não maledicência, e se for o caso considerar um quarto princípio, seria a justiça. Então toda relação médico/paciente hoje, está fundamentada em cima desses quatro princípios”.

Do reconhecimento à consagração do termo

As discussões acerca da terminologia e do reconhecimento do termo Violência Obstétrica são extremamente amplas. Para a autora Tatiana Henriques, no artigo Violência Obstétrica: um desafio para a saúde pública do Brasil, por consequência da falta de consenso na definição e terminologia, não há um instrumento validado para mensurar a violência obstétrica. Ela explica que atualmente existe um questionário proposto pela Organização Mundial de Saúde que foi utilizado inicialmente em alguns países africanos (8), mas que, no entanto, não há avaliação psicométrica disponível para o Brasil. Com isso, a mensuração da prevalência da pesquisa e possíveis comparações com os resultados são comprometidas. Também ficam prejudicadas as avaliações das consequências da Violência Obstétrica na saúde da mulher e do recém-nascido.

No seu artigo, você fala sobre a falta de estudos epidemiológicos acerca da Violência Obstétrica no Brasil. Quais efeitos essa falta na produção de conhecimento traz às mulheres brasileiras?

Quando pensamos a violência obstétrica, vemos muitos estudos de prevalência, que tentam medir a quantidade de mulheres que sofrem violência no período de gestação, parto ou abortamento. Porém, não se vê estudos que mostrem (o que acontece) depois que essa mulher sofre violência obstétrica, quais são as consequências e repercussões que isso pode ter, tanto na vida dela, quanto na vida do bebê que acaba de nascer. É através destes estudos voltados para estimar causa e efeito, a mulher que sofre a violência obstétrica pode entender qual a probabilidade dela vir, por exemplo, a desenvolver depressão ou outros transtornos mentais. Ter esses tipos de estudos, como estudos causais, é fundamental para você conseguir depois ter uma política pública voltada para essa questão.

Qual a importância dessa literatura?

Atualmente ainda falta literatura, porque a literatura na área médica, social, psicológica é uma área multidisciplinar. A partir do momento que tivermos uma literatura mais forte, será possível pleitear ações do governo, do ministério, ou da saúde em relação a essas questões. Como pesquisadora, minha maior preocupação atualmente é tentar construir esse conhecimento.

A falta de consenso na definição e terminologia inviabiliza instrumentos para auxiliar na mensuração da violência obstétrica? Você pode explicar como a falta da terminologia influencia na mensuração da violência?,

Há algumas diferenças. Por exemplo, a gente tem na literatura três termos que são mais utilizados: violência obstétrica, desrespeitos e abusos na hora do parto e maus tratos na atenção ao parto, que são termos que apresentam diferenças. O primeiro, Violência Obstétrica foi criado e é mais utilizado pela sociedade civil, e os outros, Desrespeitos e abusos na hora doparto e maus tratos na atenção ao parto dois já vem da área da pesquisa, sendo o último mais utilizado pela OMS desde 2015. Então, tem uma falta de consenso para definir o termo e isso também impacta quando tenta-se medir a proporção de mulheres que sofrem com aquela determinada ação ou não. Afinal, em algumas definições entram algumas ações, em outras definições entram outras ações, o que torna difícil você conseguir comparar exatamente.

Você também cita o questionário proposto pela OMS, que só foi utilizado em países africanos, mas que não há avaliação psicométrica, o que compromete a sua utilização. Para você, quais caminhos ou ferramentas poderiam ser adotados no Brasil para mensurar dados sobre a Violência obstétrica?

O que estamos fazendo em meu grupo de pesquisa é traduzir esse questionário da OMS para o português para adaptar ele para o contexto brasileiro. Assim, poderemos usar ele em nossas pesquisas, principalmente no componente de violência física, psicológica e negligência. Estamos trabalhando basicamente com esses três, mas já tínhamos outras perguntas sobre procedimentos inadequados e mantivemos as perguntas sem adaptação de acordo com a proposta deles. Para mim, um dos caminhos é esse, você ter um questionário que consiga medir aquilo que você deseja e ter um ponto de partida.

Você considera que ao negar o termo (ou não utilizá-lo), o Ministério da Saúde prejudica as discussões acerca da Violência Obstétrica? Por exemplo, enquanto discutimos a utilização correta do termo para se referir a VO, não deveríamos estar discutindo maneiras de combatê-la?

Essa questão do tempo é difícil. O termo Violência Obstétrica é utilizado no Brasil e em alguns outros países da América Latina, mas fora desse contexto, as pessoas não usam esse termo e sim maus-tratos, que é a forma como a OMS resolveu falar sobre isso. Para mim, não é problema utilizar o termo Violência Obstétrica, afinal ele é o termo acolhido por mulheres e que elas decidiram usar, mas ao mesmo tempo não podemos esquecer que estamos inseridos no mundo e no resto do mundo ninguém utiliza ele e sim maus tratos, ou mistreatment, que é o termo utilizado pela OMS, e outros termos em inglês.

A pesquisa sobre Violência Obstétrica da Nascer Brasil, de 2010, é o que melhor conseguimos de dados para a nossa reportagem. Há políticas públicas de financiamento ou desenvolvimento desses tipos de pesquisa?

Na verdade, eu não fiz parte da Nascer no Brasil 1, mas faço parte da Nascer no Brasil 2. É uma pesquisa que está entrando em campo agora em novembro. Tem financiamento sim para pesquisas desse porte. Cada segmento da pesquisa é financiado praticamente por um órgão diferente, como a OMS, a Capes, o CNPQ, a Faperj, além de financiamentos externos ao Brasil. Então, tem dinheiro para a pesquisa, mas sempre há ressalvas. Por exemplo, tínhamos um orçamento no início da Nascer Brasil 2, mas com a pandemia e a crise, retiraram parte desse financiamento. Em pesquisa, tentamos fazer o que é possível.

Você acha que mulheres são bem amparadas acerca de informações sobre a Violência Obstétrica?

Não. No Brasil, o Ministério da Saúde fez uma publicação, em 2019, abolindo o termo violência obstétrica. Com a grande repercussão que teve, eles acabaram retirando a publicação. O governo não facilita em relação à abordagem do tema. As mulheres também, eu não acho que sabem. Se vê muito nitidamente mulheres com mais escolaridade, que buscam mais o parto humanizado, que elas são mais engajadas e conhecem o tema, sabem o que ele significa e tem um conhecimento mínimo. As mulheres mais pobres não têm acesso a esse tipo de informação. Quando vamos à maternidade pública e privada, temos diferenças em relação a essa questão. Para mim, esse conhecimento vem sendo difundido, nós falamos mais sobre isso do que se falava 10 anos atrás, mas ainda acho que é restrito a um determinado segmento da nossa população.

Doula um suporte á vida

WEBDOC — O QUE É SER DOULA?

Reportagem por: Dorley Dorneles, Francine de Oliveira, Kauana Kempner e Yasmin Casal

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Prédio 11

Medium do curso de Jornalismo da instituição de ensino Ulbra, campus Canoas.