UMA REFUTAÇÃO À ÉTICA ARGUMENTATIVA

Jose Adaister
11 min readFeb 15, 2019

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INTRODUÇÃO

Hans Hermann Hoppe, filósofo e economista alemão-americano, diz que a propriedade privada é provada através da argumentação. Com isso, ele quer dizer que quando dois interlocutores debatem há ali a prova da propriedade privada (Ferreira, N, 2019) — uma vez que para o interlocutor A argumentar ele terá que ter domínio sobre o próprio corpo, auto-controle\controle exclusivo, e por sua vez ele reconhecerá a propriedade privada de outrem, do interlocutor B, pois, ele respeitará o uso que o interlocutor B fará das suas cordas vocais, por exemplo, para argumentar. Há, igualmente, a ideia de que somente através da argumentação é possível justificar proposições. Com isso, Hoppe quer inferir que a argumentação é à base da verdade ou, pelo menos, a base da justificação do valor-verdade de proposições (Ferreira, 2019).

1 AUTO-CONTROLE\CONTROLE EXCLUSIVO IMPLICA EM PROPRIEDADE PRIVADA?

O fato de eu poder controlar o meu corpo não implica que ele é minha propriedade, noutras palavras, auto-controle não implica em auto-propriedade, isso é um salto lógico. Segundamente, do fato de eu respeitar o direito de outrem, e.g. interlocutor B, de argumentar, e eu respeito esse direito não rasgando sua garganta, por exemplo, não implica, igualmente, na conclusão que Hoppe quer derivar. Isso, no mínimo, é um non-séquitur[1], ou seja, o respeito que eu presto ao meu interlocutor pode ser explicado por qualquer outa teoria ética — e.g. utilitarismo, deontologismo, teoria da lei natural, etc. Conforme destaca Fieser:

Normative ethics involves arriving at moral standards that regulate right and wrong conduct. In a sense, it is a search for an ideal litmus test of proper behavior. The Golden Rule is a classic example of a normative principle: We should do to others what we would want others to do to us. Since I do not want my neighbor to steal my car, then it is wrong for me to steal her car. Since I would want people to feed me if I was starving, then I should help feed starving people. Using this same reasoning, I can theoretically determine whether any possible action is right or wrong. So, based on the Golden Rule, it would also be wrong for me to lie to, harass, victimize, assault, or kill others. The Golden Rule is an example of a normative theory that establishes a single principle against which we judge all actions. Other normative theories focus on a set of foundational principles, or a set of good character traits ( FIESER, 2016)

2 O QUE SÃO PROPRIEDADES?

Hoppe e seus seguidores, partidários da ética argumentativa, tem uma compreensão bem errônea do que são propriedades. Meu corpo não é uma propriedade minha, isso não é porque o meu corpo não me pertence, mas porque o meu corpo não é uma propriedade. Propriedades são coisas que podem ser exemplificadas, isto é, participar de uma relação de exemplificação exercendo o papel de relata (ORILIA, 1999). Meu corpo não pode uma vez que eu não o exemplifico. Eu exemplifico a propriedade de ter\ser um corpo, ou de ser humano, mas não exemplifico o meu corpo. Uma vez que meu corpo não é algo que pode ser exemplificado, então, segue, NECESSARIAMENTE, que meu corpo não é uma propriedade.

Pode-se dizer que o meu corpo, a despeito de não ser uma propriedade, é uma parte minha. Assim, passar-se-á de propriedades a posses, e Hoppe pode argumentar que meu corpo pode não ser uma propriedade num sentido metafísico, porém, ele me pertence no sentido de que é uma parte minha, ou seja, uma posse. De fato, propriedades e partes são coisas distintas (VARZI, 2003). Minha mão, por exemplo, é uma parte minha, porém, não é uma propriedade minha.

Apesar de poder argumentar que o meu corpo é uma parte minha, eu disputo que tal coisa exista. Eu não acho que eu existo e que, junto comigo, existe também meu corpo. Conforme argumenta alguns filósofos, tal como William L. Craig e Peter Van Inwagen, tudo vai depender das perspectivas internas ou externas de um quadro linguístico, em que alguém decide envolver-se em um determinado tipo de conversa (CRAIG, 2012). Por exemplo, dada uma estrutura lingüística em que nos envolvemos em conversa sobre partes, é normal afirmar que o meu corpo, por exemplo, tem várias partes. Mas fora desse quadro, quando fazemos a pergunta metafísica, há realmente coisas como partes adequadas (partes não idênticas ao todo)? Eu creio que não. Elas estão apenas em nossas cabeças, e não são coisas que existam na realidade.

Segundo Peter Van Inwagen, tal ideia (de que possuímos partes dalém de nós) viola a transitividade da identidade (CRAIG, 2012). Por exemplo, imagine que X recentemente passou por uma cirurgia para ter um rim infeccionado renal removido. Por isso, considere esta parte adequada de X antes da cirurgia, que era tudo menos seu rim infectado. Chame esta parte X*. Agora X não era idêntico ao X*. (X tinha dois rins e X* não tinha.) Felizmente, X sobreviveu à cirurgia. Então X após a cirurgia é idêntico ao X antes da cirurgia. Mas por isso mesmo X* também sobreviveu à cirurgia e permaneceu, de fato, inalterado, como resultado do problema. Então X* após a cirurgia é idêntico ao X* antes da cirurgia. O problema é que, após a cirurgia, X tornou-se, agora, idêntico ao X*. X* não é mais uma parte adequada da X; ele é X! Mas isso viola a transitividade de identidade, o princípio de que se A = B e B = C, então A = C. A melhor solução para este problema é negar que não há realmente qualquer objeto chamado X*. É apenas uma invenção da nossa imaginação. Realmente não existem coisas como partes apropriadas de uma coisa

Dado que Hoppe assume que o corpo é uma propriedade\posse, segue que o corpo existe além do individuo. Ou seja, segue que o corpo tem existência ontologicamente distinta ao sujeito. Trocando em miúdos, se eu existisse sozinho num espaço vazio, eu não existiria realmente sozinho, conforme Hoppe, existiria também meu corpo. Porém, dado o argumento citado acima, nenhuma das coisas que chamamos de minhas partes quando estamos falando dentro da estrutura lingüística são realmente coisas também. Se eu de fato existisse sozinho no espaço, não haveria outro objeto além de mim, como o meu lado esquerdo. Nem a minha vontade e minha mente são coisas que existem além de mim. Muito MENOS meu corpo. Estes termos não escolhem coisas que são ontologicamente distintas e reais. Portanto, a ideia de propriedade como posse, desposada por Hoppe, não se segue.

3 O QUE SÃO PROPOSIÇÕES?

É falso que argumentação justifica o valor-verdade de proposições. Primeiro, eu não sei o que ele — HOPPE — quer dizer por justificar proposições, até onde sei apenas crenças são coisas que podem ser justificadas (STEUP, 2005). Porém, eu vou encarar “justificar proposições” aqui por veridar[2] proposições. Se o que ele quer dizer por “justificar proposições” é isso, então, ele está errado. É digno de nota que Hoppe confunde proposições — que são entidades abstratas ou concretas — com asserções (FERREIRA, 2018). Proposições são entidades abstratas — se entendê-las como arranjos de mundos possíveis — ou são entidades concretas — se entendê-las como entidades estruturadas frutos da relação de referência entre os termos das asserções\sentenças linguísticas e seus referentes (MCGRATH, 2018). Eu irei considerar aqui a posição dita mainstream entre os filósofos da linguagem e metafísicos, que é a que proposições são entidades estruturadas (KING, 2011). Tendo isso em mente, torna-se claro que a argumentação é inócua quanto à veridação de proposições. Proposições não precisam ser expressas por sentenças linguísticas para serem verdadeiras. Alguns exemplos podem ser dados a favor disso.

Por exemplo, considere a seguinte sentença Era verdade que a era vazia de enunciados linguísticos é presente. O operador que precede a clausula A era vazia de enunciados linguísticos é presente atribui passadismo ao valor de verdade da clausula supracitada. Ou seja, a sentença está dizendo que a clausula A era vazia de enunciados linguísticos é presente é verdadeira na era vazia de enunciados linguísticos. Obviamente que houvera um momento que não havia enunciados linguísticos, a saber na era jurássica, por exemplo. Portanto, a clausula A era vazia de enunciados linguísticos é presente não pode ser um enunciado linguístico. Se assim o for, então a sentença Era verdade que a era vazia de enunciados linguísticos é presente é falsa, o que, OBVIAMENTE, é um absurdo. Pode-se concluir com isso que o veiculo de verdade da clausula tem que ser alguma coisa senão um enunciado linguístico.

Considere outro exemplo, digamos que um agente x diz pra um agente y a floresta está queimando agora, e o agente y diz isso é verdade, porém, não seria verdade se você não tivesse expressado. Partindo do entendimento do Hoppe de proposições (FERREIRA, 2018), a conversa deles quebraria o que é conhecido como convenções normativas da linguagem (SMITH, 1993, p. 78). Na realidade, o agente x se surpreenderia com a afirmação do agente y. Trocando em miúdos, é verdade que a floresta está queimando agora independente do agente x expressar tal sentença. Isso só remete à ideia de que existe alguma coisa que não, necessariamente, precisa ser linguisticamente expressa para ser verdadeira.

Mesmo que Hoppe mudasse o argumento e o voltasse para asserções, ainda assim, ele estaria errado. Pois asserções, tal qual proposições, não derivam seu valor de verdade da argumentação. O valor de verdade de asserções é derivativo no sentido de que elas derivam seu valor de verdade das proposições que elas expressam (KING, 2011). As proposições são veridadas pelos estados de coisas que elas descrevem (SMITH, 1993, p. 151). E as asserções derivam seu valor de verdade das relações entre os constituintes das proposições e dos estados de coisas que são descritos pelas proposições (KING, 2011). O ponto, é que mesmo se Hoppe voltasse seu argumento sobre as asserções ele estaria errado. É possível enunciar uma asserção com valor de verdade mesmo estando sozinho.

Hoppe pode mudar o foco e falar de justificação de proposições em termos de justificação epistêmica. Porém, mais uma vez ele estaria errado. Como o próprio Giorgio Volpe define justificação proposicional, trata-se da

[…} sort of justification that a proposition enjoys for an agent when the agent is epistemically justified to believe it (VOLPE, 2017)

Porém, essa justificação pode vir de muitas maneiras, a argumentação pode ser uma forma, todavia, não é a única.

4 CONFUSÕES SEMÂNTICAS

Hoppe, e seus seguidores, sempre ao tratar sobre semântica, enfatiza coisas como a semântica é relativa, uma palavra tem varias definições, etc. Porém, se você for à literatura pertinente à semântica, o que os especialistas mais atuais, tais como linguistas e filósofos, têm a dizer vai de encontro com essas afirmações.

Na realidade, para Hoppe, e seus seguidores, as palavras, de modo geral, podem ter inúmeras significações, a depender do contexto de uso. É assim, porque Hoppe quer redefinir uma série de coisas que já estão bem consolidadas dentro da filosofia, tais como proposições, propriedades, ética, etc. Para Hoppe, essas coisas podem receber definições diferentes, e como a semântica é relativa, segundo sua acepção, segue que as definições dele estão tão corretas quanto às definições dadas por filósofos acadêmicos. Todavia, o que será argumentado é que Hoppe, e seus seguidores, faz uma confusão enorme entre “nomear” e “definir”(LUDLOW, 2018). Hoppe parece esquecer que uma coisa é o significado que uma palavra x possui, outra é a definição que ela carrega. O significado é dado pela intenção do falante ( SPEAKS, 2014). Por exemplo, Eu tenho a intenção de referir-me, através do meu enunciado contendo o nome Abraham Lincoln, ao próprio Abraham Lincoln. No caso, ao décimo sexto presidente americano. Veja que o nome Abraham Lincoln pode nomear não apenas o décimo sexto presidente americano, como qualquer outra pessoa (MICHAELSON, 2019). Porém, minha referência é constituída em parte por uma descrição definida. Essa descrição é o que faz com o nome Abraham Lincoln esteja referindo-se ao próprio Abraham Lincoln — décimo sexto presidente americano — e não a outra pessoa (LUDLOW, 2018).

Ainda que palavras possuam inúmeros significados, a depender do contexto (SPEAKS, 2014), cada descrição definida atribuída a cada coisa que elas nomeiam é única àquela coisa (LUDLOW, 2018). Ainda que o nome Abraham Lincoln possa nomear x, y, z pessoas, a descrição definida proposicional tal como Quem quer que seja o décimo sexto presidente americano é satisfeita apenas por uma única pessoa — pelo menos no mundo atual. O mesmo vale para as palavras ética, proposição, propriedade, etc. Hoppe usa a palavra propriedade com uma definição diferente, todavia, como a semântica é relativa dada sua acepção, a definição de Hoppe, em hipótese, é segura tal qualquer outra definição.

Como foi argumentado, Hoppe não define propriedade, propriedade per se já possui sua própria definição, uma definição única. O que Hoppe faz é nomear alguma coisa de propriedade, mas em nenhum momento segue que essa coisa, a qual Hoppe nomeia de propriedade, é uma\a propriedade per se. Propriedades são coisas que podem ser exemplificadas, isto é, participar de uma relação de exemplificação exercendo o papel de relata — como foi argumentado na primeira seção. Hoppe chama o nosso corpo de propriedade, ele pode nomeá-lo assim, porém, nosso corpo não é uma propriedade. O mesmo vale para proposição. Hoppe confunde proposições — que são entidades abstratas — com asserções. Proposições são entidades abstratas — ou arranjos de mundos possíveis ou são entidades estruturadas frutos da relação de referência entre os termos das asserções\sentenças linguísticas e seus referentes. Hoppe pode nomear asserções com a palavra proposições, porém, asserções não são proposições.

Hoppe pode apelar e dizer que alguma coisa pode ter mais de duas descrições. Isso é verdade, porém, ambas as descrições não podem ser conflitantes. Por exemplo, suponha que João Luca é Quem quer que seja que deixa o leite às 11 da manhã toda quarta feira na rua x, no bairro y, etc. Segue que qualquer descrição que ele possua não pode ser conflitante (LUDLOW, 2018), ou seja, ele não pode ter uma descrição definida proposicional que o descreva como Quem quer que seja que não deixa o leite às 11 da manhã toda quarta feira na rua x, no bairro y, etc. Ambas as descrições são conflitantes.

REFERÊNCIAS

CRAIG, William, L. 2012. Proof of Divine Simplicity?. Disponível em <https://www.reasonablefaith.org/question-answer/P30/proof-of-divine-simplicity>. Acesso em 24\04\2019.

FIESER, James. 2016. Ethics. Disponível em < https://www.iep.utm.edu/ethics/>. Acesso em 24\04\2019.

FERREIRA, Nicholas. 2018. Breves comentários sobre a ética argumentativa hoppeana. Disponível em <https://pensamentosesqueciveis.wordpress.com/2018/11/27/breves-comentarios-sobre-a-etica-argumentativa-hoppeana/?fbclid=IwAR10Fr-eR8g1LL9VB6R0g_JFRYcs0ScX8RYgojHxGFxKqfOxh-pWU-e9EQk>. Acesso em 24\04\2019.

FERREIRA, Nicholas. 2019. Outros breves comentários sobre a ética argumentativa hoppeana. Disponível em <https://pensamentosesqueciveis.wordpress.com/2019/03/06/outros-breves-comentarios-sobre-a-etica-argumentativa-hoppeana/?fbclid=IwAR2Q8QCYy_GBZDUoS6P1g5b7NP56wpUmrZfLH-2qWB58NaZv3A5g3Z2EzeA>. Acesso em 24\04\2019.

McGrath, Matthew and Frank, Devin, Propositions, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/spr2018/entries/propositions/>. Acesso em 24\04\2019.

Michaelson, Eliot and Reimer, Marga, Reference, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2019 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/spr2019/entries/reference/>. Acesso em 24\04\2019.

Orilia, Francesco and Swoyer, Chris, Properties, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2017 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2017/entries/properties/>. Acesso em 24\04\2019.

King, Jeffrey C., Structured Propositions, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2017 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/fall2017/entries/propositions-structured/>. Acesso em 24\04\2019.

SMITH, Quentin. Language and Time: 1. ed. EUA: Oxford University Press, 1 de agosto de 2002.

Speaks, Jeff, Theories of Meaning, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2018/entries/meaning/>. Acesso em 24\04\2019.

Steup, Matthias, Epistemology, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2018 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/win2018/entries/epistemology/>. Acesso em 24\04\2019.

Varzi, Achille, Mereology, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2019 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/spr2019/entries/mereology/>. Acesso em 24\04\2019.

[1] “Non sequitur” é uma expressão latina (em português “não se segue”) que designa a falácia lógica na qual a conclusão não decorre das premissas.Em um non sequitur, a conclusão pode ser verdadeira ou falsa mas o argumento é falacioso porque há falta de conexão entre a premissa inicial e a conclusão.

[2] Veridar é a tese de que, para cada afirmação verdadeira, há algo que — só por existir — faz essa afirmação ser verdadeira. Os defensores da teoria veridativa não propõem tipicamente uma abordagem completa do que seja “fazer” uma afirmação ser verdadeira. Mas na sua maioria concordam que a necessitação tem de, no mínimo, fazer parte de tal abordagem.

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