AS CRISES ENTRELAÇADAS DA EDUCAÇÃO E O NOVO CORONAVÍRUS

Jose Augusto de Melo Neto
7 min readApr 16, 2020

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Foto: Manuela Cavadas (UNICEF)

Entre a declaração da Organização Mundial de Saúde (OMS), que a disseminação comunitária do COVID-19 havia se tornado uma pandemia, em meados de março, até o início de abril de 2020, 175 países fecharam as escolas como medida de prevenção ao novo Coronavírus. Isso representa mais de 90% das crianças e jovens estudantes no mundo, ultrapassando 1,5 bilhão de pessoas que sofreram uma disrupção na aprendizagem. No Brasil, por exemplo, foram afetados 48 milhões de alunos na educação básica com a paralisação das aulas, além de 8,4 milhões no ensino superior.

Apesar da imperativa necessidade de ações para reduzir os impactos na área educacional durante esta grave crise de saúde pública, é necessário não esquecer das outras crises pré-existentes na educação brasileira, como por exemplo:

▪ Exclusão de 2,5 milhões de crianças e jovens entre 4 a 17 anos, ainda fora da escola no Brasil;

▪ Índices de reprovação e do abandono escolar, que afetam 3,5 milhões de alunos por ano;

▪ Taxa de distorção idade-série (alunos com atraso escolar de 2 anos ou mais), que pode chegar a 30% na segunda etapa do ensino fundamental e no ensino médio;

▪ Infraestrutura precária das escolas: 63% das escolas brasileiras não tem biblioteca e nem laboratório de informática;

▪ Absenteísmo escolar e docente: Alunos e professores com faltas sem justificativas, não cumprindo até 20% dos 200 dias letivos;

▪ Crise da aprendizagem: 90,9% dos alunos brasileiros concluem o Ensino médio sem a aprendizagem adequada em matemática.

Por conseguinte, esse baixo desempenho dos alunos se reflete no analfabetismo funcional (INAF — Indicador de Alfabetismo Funcional) e no analfabetismo científico (ILC — Índice de Letramento Científico). São alunos que saem da escola com nível de proficiência abaixo do básico em leitura, matemática e ciências, que seria o mínimo para o exercício pleno da cidadania e para o mercado de trabalho.

Todas essas crises entrelaçadas formam o retrato de uma escola que não estava preparada para o impacto de uma nova crise, de proporção inédita e sem prazo definido, estando seriamente ameaçada de ampliar esses indicadores negativos, caso as ações de enfrentamento sejam desvinculadas da realidade escolar.

Apesar disso, muitos acreditam não haver alternativa válida para oferecer educação aos alunos em suas residências para garantir o direito à aprendizagem, pois nada se compararia ao ensino presencial. Para esses, o uso das tecnologias digitais como apoio ao ensino apenas geraria mais desigualdade e, de forma contraditória, preferem o extremo de todos os alunos sem acesso aos conteúdos escolares durante o isolamento social. Assim, quando as aulas retornarem, tudo voltaria ao “normal”, ignorando o déficit de aprendizagem e a desigualdades pré-existentes, que se ampliariam durante o período da suspensão das aulas.

Este cenário pós-pandemia é de absoluta incerteza. A informação disponível é dos países que tiveram o surto antes, mas são poucas semanas de referência, sem tempo hábil para estudos técnicos comparativos, além das diferenças culturais e de infraestrutura técnica. Em Cingapura e na Coréia do Sul, por exemplo, chegaram a reabrir as escolas mas tiveram que suspender as aulas outra vez em razão de novos casos de Covid-19. Na Itália, foi anunciado o retorno das aulas para setembro de 2020, porém já se cogita reabrir as escolas apenas em 2021. O que vai acontecer se a suspensão das aulas nas escolas brasileiras se estender para o segundo semestre? O que fazer para não perder o ano letivo de milhões de alunos?

O Ministério da Educação (MEC) no Brasil criou em março o Comitê Operativo de Emergência com a finalidade de debater e definir medidas de combate à disseminação do novo coronavírus nas instituições de ensino. Na prática, o Governo Federal flexibilizou a Educação a Distância (EAD) por meio de uma Portaria, desconsiderando que a legislação vigente já previa esses casos; sancionou uma lei autorizando, em caráter excepcional, a distribuição da alimentação escolar para as famílias dos alunos, após a cobrança dos sistemas de ensino e da sociedade; e dispensou por meio de uma Medida Provisória a obrigatoriedade das escolas e instituições de ensino cumprirem os 200 dias letivos previstos, mas permanecendo com a exigência da carga horária mínima de 800 horas anuais, embora esta possibilidade também já estivesse prevista na LDB. Além de medidas redundantes e respostas reativas, o MEC ainda manteve o cronograma do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) para outubro e novembro de 2020, como se nada estivesse acontecendo.

Para se alcançar as 800 horas no ano letivo, mesmo sem a obrigatoriedade de cumprir os 200 dias letivos, embora a MP não especifique, as escolas e instituições de ensino terão as seguintes alternativas no retorno das aulas:

1. Aumentar a carga horária diária das aulas;

2. Utilizar horas complementares de sábados e feriados;

3. Concluir o ano letivo de 2020 em 2021;

Todas essas alternativas são limitadas considerando ainda que a reorganização do calendário escolar e a infraestrutura das escolas permitam essas alternativas. Aumentar a carga horária iria precisar de tempo e espaço físico, o que é escasso. Horas complementares em dias extras não serão suficientes para a reposição necessária e transferir o problema de 2020 para o ano seguinte, a solução preferida dos conservadores, significa apenas acumular problemas. Em resumo, não há uma solução única que atenda satisfatoriamente uma resposta para esta crise.

Uma quarta alternativa poderia ser a utilização de tecnologias digitais para complementar a carga horária, durante e pós-pandemia, com atividades dirigidas mas isso também apresenta problemas. O primeiro deles é limitar o apoio das tecnologias digitais à internet ou ao que convencionaram chamar de educação a distância, ensino remoto ou aula não-presencial. O problema é conceitual. Tudo poderia ser considerado apenas como educação, mas por falta de planejamento, experiência e de formação específica para gestores e professores, além infraestrutura precária e até inexistente, a ênfase é na limitação da proposta e não na ampliação das possibilidades de atendimento durante o isolamento social.

A resistência a essa alternativa também se justifica pelos erros na execução. Muitas escolas, no improviso, estão repetindo erros históricos da EAD de 20 anos atrás. O problema maior, parece ser a opção metodológica. A ênfase no conteudismo é a resposta para o despreparo, reduzindo o processo de aprendizagem a horas de aulas expositivas, por meio de uma transposição didática parcial e acrítica, tornando a aula unidirecional e cansativa, desestimulando a participação dos alunos.

Uma combinação flexível de tecnologias, não apenas as digitais, pode indicar um caminho a ser seguido. Utilizar subcanais digitais da TV Pública como no Amazonas, ou o rádio como no Maranhão, orientações didáticas impressas como no Mato Grosso do Sul, um canal de vídeos na internet como em Pernambuco ou aplicativo mídia social com internet patrocinada (sem cobrança dos alunos) como em São Paulo, são alternativas sendo utilizadas no Brasil pelas redes públicas de ensino, enquanto as escolas particulares fazem uso de ambientes virtuais de aprendizagem e videoaulas, transferindo aos pais e alunos a responsabilidade do acesso e o acompanhamento das atividades.

Poderiam ainda ser utilizadas na Educação, em conjunto com essas soluções já em andamento, serviços de mensagens curtas (SMS), em parceria com as operadoras de telecomunicações nas regiões sem cobertura de dados móveis, como já faz a Defesa Civil em situações de emergência. Uma outra forma complementar, ainda não utilizada, é a criação de redes de malha offline para a comunicação em comunidades rurais sem acesso a nenhum tipo de serviço de telecomunicações. A tecnologia mesh foi utilizada na Guerra do Golfo em 1990 no meio do deserto e pode ser adaptada para essas situações de extrema gravidade social. Além disso, é possível pensar em começar a usar a inteligência artificial como aliada para a personalização do Ensino.

Ainda assim, essas soluções não conseguiriam atender todos os alunos, pelo alcance desigual das tecnologias escolhidas e cobertura reduzida desses serviços nas residências dos alunos e professores, além da indisponibilidade de todos os equipamentos necessários e até falta de energia elétrica. A elaboração e entrega de materiais impressos, embora recomendável em casos excepcionais, também é limitada.

Entre as restrições no modelo de atendimento em regime especial está a dificuldade no controle de frequência e na realização das avaliações parciais dos alunos, pois em geral os gestores estão com dificuldades em realizar o controle acadêmico, deixando acumular os registros para depois, quando as aulas voltarem pós-pandemia, como se a frequência e os conteúdos escolares durante este período fossem optativos e só a avaliação diagnóstica presencial posterior tivesse valor pedagógico.

O resultado do prolongamento desta situação é a sobreposição das crises educacionais, além dos impactos psicológicos e do aumento na vulnerabilidade social dos alunos. A transparência nos resultados parciais do atendimento de cada solução é necessária para prestar contas à sociedade, além de encontrar meios para valorizar a participação dos professores, que tem sido tratados como coadjuvantes na maioria dos casos, desconsiderando que a interação entre alunos e professores é a chave do sucesso de qualquer metodologia.

O foco da educação nesta pandemia deveria ser o de buscar múltiplas alternativas para manter o fluxo de aprendizagem de forma efetiva, considerando as especificidades e as desigualdades, mas sem imobilismo ou generalização, indo além de uma política de redução de danos.

Desta forma, é possível pensar em uma estrutura de ensino flexível, que não dependa de uma única tecnologia, valorizando o processo em si, com o protagonismo dos professores no planejamento e acompanhamento das ações. Os docentes poderiam, por exemplo, ser curadores das atividades complementares dos alunos, baseadas nos livros didáticos que já eram utilizados na sala de aula. Essas atividades planejadas poderiam chegar aos alunos de várias formas: tv, rádio, internet (videoaulas, podcasts e objetos de aprendizagem), e-mail, redes sociais, aplicativos online e offline, sms, impresso via correio e etc.

Aqueles que não conseguirem acessar essas informações durante a pandemia também não seriam prejudicados, mas para isso é necessário que as redes de ensino e cada escola estabeleçam as equivalências de estudos, além de planos dirigidos de aprendizagem no retorno das aulas, seguindo as orientações dos Conselhos de Educação, e que o MEC assuma, de fato, o seu papel de coordenador e articulador da política nacional.

José Augusto de Melo Neto é Doutor em Educação, especialista em tecnologia, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Educação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e ex-Secretário de Educação do Amazonas.

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