O ensino híbrido e o Ludismo

Jose Augusto de Melo Neto
4 min readJul 23, 2020

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No final do Século XIX na Inglaterra, um movimento de trabalhadores da indústria têxtil, contrários aos avanços tecnológicos da Primeira Revolução Industrial, começou a invadir fábricas e quebrar máquinas como forma de protesto. Esse movimento se tornou conhecido como Ludismo por causa do nome de um de seus líderes, Ned Ludd.

Na atualidade, um ludita é aquele que se opõe ou nega o desenvolvimento tecnológico ou industrial, porém uma outra forma de compreender a natureza deste movimento é o argumento que a tecnologia causaria diretamente o desemprego e a miséria.

Imagem: Timetoast

Certamente não existem apenas os dois extremos, entre recusar uma nova tecnologia ou aceitar passivamente sua disrupção, mas é necessário compreender as razões das resistências às mudanças causadas pelas tecnologias nos diversos setores da sociedade.

Com o fechamento das escolas no período da pandemia do Coronavírus em 2020, as consequências da imposição da tecnologia digital como forma predominante na oferta de atendimento dos alunos podem nos possibilitar uma releitura do Ludismo.

A tecnologia tem a tendência de substituir o trabalho cognitivo repetitivo, entretanto a atuação de um professor é dinâmica e não deve se limitar à repetição, ignorando as mudanças na sociedade. O papel do educador é insubstituível e a tecnologia, neste sentido, pode tornar-se uma aliada e não uma ameaça.

Com o início da reabertura das escolas brasileiras, após o período de isolamento social causado pela Covid-19, uma metodologia tem sido destacada nas redes públicas e privadas como solução para o retorno escalonado dos alunos, mesclando aulas presenciais e remotas: o ensino híbrido ou blended learning.

Na verdade, esta forma de ensino teve seu início no final dos anos 90, com a inserção do CD-ROM como recurso nas salas de aulas. O modelo mais comum de sua utilização até pouco tempo atrás era o modelo de rotação no qual o professor alterna o processo ensino-aprendizagem entre aulas convencionais e conteúdos multimídias de forma composta, com alunos dividindo o mesmo espaço e trabalhando em grupos nas escolas.

Fonte: imagem web

O que pode mudar, a partir de agora, é a intensificação de outros modelos de ensino híbrido, como a sala de aula invertida na qual é possível ao aluno ter previamente acesso à parte do conteúdo escolar em casa. O desafio desta metodologia, além dos limites de conectividade se o material pedagógico for exclusivamente digital, é o planejamento integrado das atividades.

O termo semipresencial, muito utilizado no Brasil, por exemplo, não é ensino híbrido. Alunos assistindo videoaulas por conta própria no YouTube ou em programas educativos via TV digital também não é considerado ensino híbrido, por serem atividades fragmentadas e isoladas pedagogicamente, sem controle acadêmico. Além da integração como requisito, esta metodologia requer que os sistemas de ensino e as escolas compreendam a mudança no papel do professor e valorizem isso.

A demanda atual de virtualização do ensino, ainda que parcial, tem características semelhantes ao modelo de modernização das escolas com a implantação dos laboratórios de informática que ocorreu a partir dos anos 1980, embora a mudança qualitativa esperada não tenha sido atingida pela concepção errônea da tecnologia.

Um dos teóricos mais relevantes nesta área, o filósofo franco-tunisiano Pierre Lévy, analisou no livro “As Tecnologias da Inteligência: o Futuro do Pensamento na era da Informática” o caso do fracasso dos computadores nas escolas. A resistência à mudança dos professores foi fortalecida pelos equipamentos inseridos de forma inadequada ao contexto pedagógico, além do processo de formação ter sido realizado com uma perspectiva limitada.

Pierre Lévy. Foto: André Valentim

Pode-se entender este resultado através do princípio da multiplicidade conectada, o qual considera uma tecnologia sempre contendo muitas outras, se reconfigurando e formando um sistema de múltiplas tecnologias. O erro no modelo anterior, de três ou quatro décadas atrás, foi considerar as novas tecnologias como substitutas do papel, da caneta e do lápis. O ambiente cognitivo não foi alterado, só os objetos.

Nos tempos atuais, um aluno ao assistir uma videoaula e fazer uma atividade escolar em casa, digitando respostas em um celular, por exemplo, estaria combinando várias tecnologias ao mesmo tempo: o alfabeto, o teclado virtual, a imagem na tela, além da telemática. Não compreender esta dimensão pedagógica irá limitar a proposta e repetir os erros da modernização esperada nas escolas com os laboratórios de informática.

Além disso, o papel dos professores neste cenário não pode ser passivo, imposto por outros. A organização das situações de ensino-aprendizagem no ensino híbrido, assim como é desejável nas demais metodologias, deve ser realizada por meio de um planejamento com referência educacional. O risco maior agora não é apenas de um boicote neoludita, mas um aumento significativo na taxa de abandono escolar e na desigualdade pela utilização equivocada de uma metodologia.

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