O corpo “Em Cena” e as narrativas do Racismo e do Machismo
O corpo é biologia. É sangue que nutre os tecidos, são tecidos que formam os sistemas, são os sistemas que, integrados, provocam os sentidos humanos, o raciocínio, o pensamento, o prazer, a dor, o movimento.
O corpo é sobretudo Cultura! O corpo faz Cultura, e por ela é feito!
Esta é uma importante constatação para quaisquer considerações e discussões sobre sociedade, principalmente quando o que se discute é a superação das desigualdades sociais ou o fortalecimento das pessoas e grupos sociais que são alvos do racismo, do machismo, e de todos os elementos culturais violentos vigentes nos atuais modelos hegemônicos de sociedade e sociabilidade.
Penso que é preciso entender que o racismo, o machismo, e todas as outras expressões de desumanidade, violência e antipatia, são elementos da cultura que nos forma e nos informa, homens e mulheres, pretos e não-pretos, ricos e pobres, crianças e adultos, hetero ou homossexuais, etc. Como hologramas da sociedade, em maior ou menor grau, o racismo e o machismo estão incorporados em Nós, e participam, portanto, das nossas produções culturais nos vários contextos em que produzimos nossas narrativas, quer sejam: o Esporte; as Artes; as Ciências; o Lazer; o Trabalho; as Sociabilidades. Como um “parasita hospedeiro”, o racismo e o machismo se alojam em nós desde que somos crianças, bebes, e vão se alimentando da nossa consciência e defecando insensibilidade no seu lugar, e crescendo junto conosco, inclusive forçando o nosso corpo a se adaptar às suas necessidades “fisiológicas”. Assim, com o passar do tempo, condicionados por estes “parasitas hospedeiros” se alimentando da nossa consciência e preenchendo as lacunas deixadas com seus dejetos, reproduzimos, sutilmente ou não, o racismo, o machismo, e outros elementos culturais violentos.
Podemos entender que a produção e a reprodução do racismo e do machismo se dá amplamente a partir do corpo que incorporou estes elementos em sua Corporeidade. Corpos masculinos e femininos, de diferentes idades, classes sociais, etnias e grupos identitários, que lidam com o racismo incorporado em si de modos diferentes. A maneira como se dá a sociabilidade dos corpos, a sua Corporeidade, produção de cultura e narrativas, depende, sobretudo, dos elementos destas sociabilidades, dos contextos onde se dão estas sociabilidades, e dos exercícios físicos que são realizados para a educação física dos corpos. Exemplos desses exercícios físicos: modular a voz em uma discussão ou situação de conflito; controlar gestos, pensar e dizer palavras que fazem bem e que não desrespeitam a outra pessoa; se comportar de forma a não ofender a outra pessoa; tudo isso frente aos impulsos que sentimos face aos valores distorcidos de uma sociedade doente como a nossa. Da mesma maneira, controlar um olhar, uma fala, e/ou um toque ofensivos, e, por conseguinte, agir diferente, é um tipo de exercício físico e processo de “educação física” que passa pelo corpo e produz uma Corporeidade e uma cultura e narrativas diferentes. Acredito que esta cultura e estas narrativas diferentes que são frutos destes exercícios físicos de não reproduzir o racismo e o machismo, mesmo existindo impulsos para tal, acaba por diminuir estes impulsos com o tempo através de uma espécie de Reprogramação Somatopsíquica do Pensamento e dos Sentimentos.
Quando entendemos que os movimentos corporais e o comportamento, quando contextualizados, Em Cena, produzem narrativas que impactam as pessoas do entorno e a si próprio, é possível começarmos a entender os exercícios físicos e a “Educação Física” antiracista e antimachista como exercícios terapêuticos voltados a construção de Corporeidades livres destas estruturas desumanizadoras.
Daí, é possível entender a importância dos espaços de convivência que discutem a superação do racismo e do machismo, quando são espaços formatados para o exercício de Corporeidades desapegadas dos elementos “somatopsiquicoculturais” racistas e machistas. Espaços como alguns encontros que tem sido organizados para discutir estas questões e questões correlatas, núcleos culturais, saraus de poesia, intervenções artísticas e tantos outros projetos e organizações. Interessante pensarmos o corpo e a Corporeidade enquanto fundamentais nestes processos de cura do espírito, caso contrário podem-se criar espaços que se propõem a discutir estes temas, porém onde os comportamentos, as Corporeidades e narrativas corporais reforcem os próprios elementos racistas e machistas que se pretendem exortar, ou seja, uma triste contradição. O corpo é condição primeira para transformação, porque ele próprio é Cultura, portanto ele deve estar sempre presente, Em Cena.
Daí também, a extrema importância de entendermos o contexto do Esporte (não só o Esporte), do futebol, onde o racismo e o machismo se manifestam com tanta fluidez. O corpo em “estado lúdico” é um corpo relaxado das Pregas Morais que regulam o seu comportamento e fortalecem as condutas politicamente corretas. Por isso, é um corpo livre que com muito mais facilidade irá “botar para fora” suas distorções da consciência. Tanto atletas quanto expectadores, quando imersos a atmosfera do Esporte (não só o Esporte) e entregues à emoção e as tensões da sua prática, liberam-se da regulação moral normal na qual todos estamos submetidos normalmente, e emocionados e impactados pelo calor da disputa, pela vitória ou pela derrota, deixam escapar suas distorções racistas e machistas com muito mais facilidade do que qualquer outra pessoa em outros contextos como em um escritório. Por isso o senso comum anuncia que no futebol, xingar alguém de macaco não é necessariamente racismo porque no futebol isso é normal, ou porque faz parte do calor do esporte e por isso é natural.
Investigar o Corpo e a Corporeidade e tê-los como centrais para a educação e superação do racismo e do machismo é sobremaneira importante, haja vista os processos de Reprogramação e Ajustes Somatopsíquicos supracitados. Infelizmente, vivemos uma época onde estamos cada vez mais afastados, cada vez mais fora, dos nossos corpos. Uma época onde supervalorizamos as atividades meramente reflexívas, hipotético-dedutivas e lógicas, em detrimento aos exercícios físicos e a “Educação Física”, que também se utilizam destas atividades, mas que também trazem a experiência do Corpo em Contexto como chave analítica para o entendimento do que se esta a refletir.
Vivemos um momento com as redes sociais virtuais em que se lê muitos textos curtos e muitas imagens com enormes cargas emocionais e afetivas, e se vivencia pouco ou nada do que se lê. Isso trás uma série de fragilidades para a Corporeidade porque nesta lógica muitas pessoas acabam incorporando narrativas que sequer viveram, construindo Corporeidades a partir de elementos culturais que nunca sequer experimentaram, o que me leva a crer que nunca, a Persuasão Social foi tão estudada e posto em prática quanto hoje.