DOOMER, BOOMER, BLOOMER e ZOOMER: memes, internet e lifestyles.

Jose Mauro Nunes
11 min readMar 30, 2020

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A internet é uma usina de produção de ideias, tanto positivas quanto negativas. Algumas são construtivas, melhoram a vida das pessoas e visam incrementar a nossa compreensão do mundo, a nossa saúde e melhores formas de trabalhar e de se divertir. Porem, a internet possui também o seu lado obscuro, podendo se transformar num ambiente tóxico, onde pessoas são ameaçadas por manifestarem suas opinões, perseguidas e terem as suas reputações destruídas. Quem nunca teve o seu hater de estimação, praticando bullying de forma obsessiva contra todo e qualquer conteúdo que você posta? Isso faz com que tudo que venha desse meio deva ser visto com zelo e cuidado, nem negando a priori, nem aceitando de forma acrítica.

Uma das questões que mais chama a nossa atenção, em tempos de intensa digitalização do trabalho e da vida cotidiana, é como diferentes pessoas reagem de formas diversas a tais transformações. Faixas etárias diferentes convivem cada vez mais juntas, não apenas nas relações de parentalidade, mas também em espaços de trabalho, lazer e entretenimento. É natural que os mais velhos tenham dificuldade em acompanhar as frenéticas transformações do cotidiano. Quem nunca se pegou uma vez tendo os seguintes pensamentos: “isso não era assim na minha época”; “no meu tempo as coisas eram diferentes” ? O choque de gerações torna-se mais agudo em tempos acelerados como os que vivemos, onde há ressincronização entre o tempo biológico das nossas vidas, e o tempo psicológico que abrange o universo das nossas crenças, valores e comportamentos. Numa é demais lembrar que cada um de nós é fruto do seu tempo histórico, isto e, do zeitgeist (espírito do tempo) que nos acompanha. Atualizar o nosso sistema de crenças, valores, atitudes e comportamentos não é rápido, tem um gasto elevado de energia mental e mobiliza grandes recursos emocionais de cada um de nós.

Tipos de classificações das diferenças individuais: personalidade e coortes etários.

Na Psicologia, a área que historicamente se debruçou sobre a questão das diferenças individuais é a Psicologia da Personalidade. Vários esquemas de definições e classificações personalógicas foram desenvolvidos para explicar tais diferenças: desde os 16 fatores básicos da personalidade desenvolvidos por Raymond B. Cattell, passando pelos tipos psicológicos de Carl G. Jung (e que deram origem à teoria dos “Big Four”), até a tipologia Myers-Briggs (base do teste MBTI, muito utilizado em atração, seleção e assessment de pessoas).

Outra forma de entender as diferenças individuais não seria por intermédio das características de personalidade, mas por coortes geracionais. Por trás desse raciocínio, está a pressuposição básica de que indivíduos pertencentes a uma mesma geração compartilham crenças, valores, atitudes e comportamentos que expressariam o mindset de cada uma. Por exemplo: os Boomers (nascidos entre 1946 e 1969) buscam a estabilidade do emprego corporativo; os Xrs (nascidos entre 1970 e 1980) são supercompetitivos devido a sua excessiva confiança em suas habilidades e competências pessoais; os Millenials (nascidos entre 1981 e 1990) são mais adaptados a mobilidade e a instabilidade contemporâneas, buscando propósito em suas vidas; a Geração Z (nascidos entre 1991 e 2010) tem mais dificuldade de definir as esferas de público e privado, dada a ubiquidade das plataformas sociais digitais, além de um forte impulso para o comunitarismo; por fim, a Geração Alpha (as crianças nascidas a partir de 2010) têm as suas relações de parentalidade, amizade, afetividade e de consumo, absolutamente forjadas pelas tecnologias digitais.

As críticas da classificação por coortes geracionais reside em dois pontos principais. Primeiro, as fronteiras geracionais são abstratas e arbitrárias; na prática, tais limites não são muito bem delineados, haja visto que diferentes coortes podem se interpenetrar. Segundo, existem inúmeras evidências de indivíduos pertencentes a um mesma geração podem apresentar comportamentos de outras gerações. Quais os motivos desse fenômeno: influência familiar? Aspectos culturais e linguísticos? Formas de socialização diferentes?

Além disso, a globalização e o uso intensivo das tecnologias digitais levam os sujeitos a serem expostos a inúmeros informações que os ajudam a reconfigurar as suas respectivas subjetividades. Valores, crenças, gostos e preferências deslocam-se ao longo do eixo histórico, podendo serem reinterpretadas e ressignificados por parte de diferentes audiências/interesses. O fato do ressurgimento do neoconservadorismo na contemporaneidade — e sua elegia aos chamados valores “tradicionais”como família, casamento, religião, nação e sexualidade -, em contraposição à formas subjetivas mais flexíveis e descontruídas do início do terceiro milênio, nos mostra o fluxo contínuo de reinvenções, reapropriações e redefinições disponíveis no processo contínuo de construção e regulação das subjetividades.

Lifestyle: uma solução para o problema das diferenças individuais.

Para dar conta dessas questões, o conceito de estilo de vida (lifestyle) surge como um constructo promissor nessa discussão. Basicamente, o lifestyle está associado a um conjunto de atitudes, interesses e opiniões de um conjunto de indivíduos que os identificariam como um grupo identitário não mais vinculado à idade, geração ou personalidade, mas sim ao seu conjunto de crenças e valores que se manifestariam num conjunto organizado de formas de vida. Portanto, existiram tantos estilos de vida quanto o número de crenças e valores existentes nos contextos em que vivemos, se manifestando em diferentes esferas: moda, consumo alimentar, crenças políticas, atitudes frente à sexualidade e questões identitárias, sustentabilidade, lazer, entretenimento, tecnologia e assim sucessivamente.

Existe uma miríade de classificações de estilos de vida, que podem ser segmentadas em indústrias e segmentos de negócios (moda, mobiliário e consumo alimentar, por exemplo), até a delimitação de estilos mais amplos e abrangentes. Seus marcadores podem ser os mais variados possíveis: gênero (sexy, ladylike, no gender), étnico (afro, latino, hindu), tecnológico (geeks, neoluditas), consumo alimentar (veganos, low carb, paleolíticos), ou abrangentes do ponto de vista atitudinal (punk, hipster, indie, normcore). Além disso, tais estilos não são exclusivos de alguns segmentos sociais; ele são produzidos em todas as camadas do espectro social, tanto pelas elites, quanto pelas camadas médias e segmentos mais populares (o lifestyle periguete, bastante presente em ritmos musicais como o funk e o pagode, além de visível em muitas novelas de canais abertos de televisão) são a prova cabal disso. Por fim, dada a sua flexibilidade, não é incomum que esses estilos se difundam tanto upstream (em um movimento descendente, das elites para as camadas populares) quanto downstream (em um movimento ascendente, das camadas populares para os segmentos de renda mais elevados), gerando tanto resiginificações criativas — oxigenando e criando novos estilos — quando sendo reaproriados e reinterpretados por segmentos que não os quais aquele estilo se originou, gerando a espinhosa problemática da apropriação cultural.

Por serem dotados de flexibilidade, eles podem se objeto de livre apropriação por parte dos sujeitos. Em um mundo onde tudo é objeto de commoditização — objetos, serviços, experiências, relacionamentos afetivos — , os estilos de vida se tornam kits identitários disponíveis nas prateleiras de reconfigurações subjetivas. Não é raro o fenômeno de sujeitos onde tendências paradoxais, ou até mesmo conflitantes , coexistam em diferentes áreas: por exemplo, indivíduos que possuam atitudes politicamente conservadoras frente à sexualidade e família, mas flexíveis no que toca ao consumo alimentar e sustentabilidade. Além disso, os lifestyles, por serem organismos subjetivos/sociais dinâmicos, se prestam à atualizações e recombinações frente a novas exigências econômicas, políticas, sociais, culturais, tecnológicas e ambientais, gerando novos estilos emergentes.

Portanto, para além das classificações fechadas em personalidade e gerações, os lifestyles possibilitam uma forma mais dinâmica de estruturação e regulação identitária, criando frameworks de relacionamento com o mundo, pessoas, objetos, eventos e situações ao nosso redor.

A cultura da internet: Doomers, Boomers, Bloomers e Zoomers.

O papel da internet na discussão sobre os estilos de vida pode ser vista a partir de dois ângulos: como meio e como geradora de estilos de vida. A internet como meio siginifica que, ao possibilitar a interconexão global em larga escala, ela cria um gigantesco mercado de circulação de ideias que possibilita a criação, difusão, combinação, recombinação e ostracização dos elementos culturais que irão caracterizar os diferentes lifestyles. A internet com geradora, por outro lado, implica em que os conteúdos que circulam em seu meio tecnológico—a chamada cultura digital ou cibercultura — possam eles mesmo criar estilos de vida que reflitam os impactos, limites e impasses desta em nossas formas de vida cotidianos.

Os fóruns privados (como 4Chan e o 8Chan)na internet são espécies de safe spaces digitais, possibilitando que os indivíduos possam expressar as suas crenças sem medo de sofrerem críticas ou escrutínio público, ao contrário do que ocorre em plataformas digitais sociais como o Facebook e o Twitter. Dada a regra de ingresso ser por permissão dos membros, tais fóruns acabam se tornando espaços onde o melhor e o pior do ser humano costuma emergir. Se você já se sente desconfortável ao ler a thread de postagens no Twitter, muito provavelmente você terá uma síncope ao ingressar em fóruns dessa natureza. Todos os tipos de extremismo por lá campeiam, tornando a sua navegação algo aceitável somente para os estômagos mais fortes. Tais fóruns são ambientes paroxísticos, isto é, as manifestações tendem a ser exageradas e espasmódicas. O que nasceu para serem fóruns de compartilhamento de imagens, tornaram-se espaços de assédio e ameaças de todos os tipos, além de servirem como usina de geração de fake news, tornando-se verdadeiras plataformas de "assassinato de reputações" a políticos, celebridades, ou até mesmo de pessoas comuns.

No entanto, o paradoxo desses fóruns é que neles surgem manifestações da cultura digital que podem ter impactos futuros na web de massa. O critério de transposição se dá pelo nível de acidez ou incorreção politica destas manifestações. Um dos produtos da cultura digital desses safe spaces são os memes: unidades de informação compostas por imagens, vídeos e gifs de natureza humorística e/ou ácida, que ilustram uma situação ou uma celebridade. Os memes, além do seu aspecto criativo e expressivo, tem um robusto potencial de viralização, se espalhando e sendo adotado por um sem número de usuários. Os memes atestam que limite entre essas duas webs — a comercial e a deep web— são tênues. Basta ver o teor das discussões sobre política nas redes sociais, que rapidamente um conhecedor da lógica desses fóruns identifica que a lógica discursiva desses ascendeu para as plataformas de uso em massa.

É dos memes da internet que eclodiu uma nova maneira de classificar lifestyles. Estamos falando de 4 novas personas: “Doomers”, “Boomers”, “Bloomers” e “Zoomers”. Quem são eles, afinal?

Doomer: a melancolia e as dores do mundo.

A melancolia é um fato documentado desde a Grécia Antiga, sendo um estado mental relacionado a pessoas criativas e com elevada sensibilidade. Indivíduos sensíveis às inconsistências do mundo são um tema recorrente, também, nas personagens literárias presentes no romantismo alemão do século XIX, bem como na obra filosófica de autores como Schopenhauer e Nietzsche. Schopenhauer é considerado o grande autor desta forma de pensamento, pois sua obra aborda o absurdo do mundo em que vivemos, bem como as formas de lidar com ele — ou a arte ou o ascetismo.

Doomers são indivíduos atraídos pelas imperfeições e absurdos do mundo, enfocando em sua visão de mundo o lado negativo da vida. Muitos podem confundir os doomers com outro perfil de indivíduos de elevado potencial tóxico: os incels (celibatários involuntários). No entanto, os doomers seriam uma versão menos machista e tóxica destes, por dirigirem a sua insatisfação para o mundo, e não somente ao gênero feminino. Logo, doomers não são incels, apesar de muitas semelhanças entre os dois tipos.

Segundo o Urban Dictionary, o doomer é o solitário clássico que nutre um sentimento difuso generalizado de inadequação e desadaptação diante da realidade que o cerca. Seriam pessoas que, utilizando a metáfora disposta no filme Matrix (1999), escolheram ingerir a pílula vermelha oferecida pela personagem Morpheus, possibilitando ver a realidade tal como ela é, nua e crua. Seu perfil abrange pessoas desempregadas ou em ocupações precárias, que cuja ausência de perspectiva futura os move em direção ao desalento e a desesperança. Tal isolamento social, fruto de uma visão negativa da sociedade, é alimentada por um acurado sentimento das "dores do mundo"(Weltschmerz). O peso desse sentimento os leva, via de regra, ao ressentimento, a miséria psíquica e ao uso abusivo de álcool e drogas, além da compulsão por games, pornografia e teorias da conspiração.

São indivíduos apavorados com o futuro, dado esperarem a iminência de uma guerra, uma pandemia, um desastre ambiental. Para eles o mundo é controlado por forças estranhas a ele, normalmente vinculadas a interesses escusos que visam controlá-lo. Como não têm esperança numa redenção futura, são indivíduos que desenvolvem uma atitude niilista e esquizóide, baseada na negação e na impossibilidade de reversão do mundo atual.

Boomer: o ignorante feliz.

Nesta categoria, não estão necessariamente os indivíduos pertencentes a geração Baby Boomer, uma vez que podem estar presentes em diferentes faixas etárias. O boomer, ao contrário do tipo anterior, vive numa espécie de ignorância do contentamento — uma versão do ditado ignorance is bliss (a ignorância é uma benção). Eles demonstram uma absoluta incapacidade de entender a mudança do mundo e das pessoas, vivendo numa espécie de recalcitrância do passado. Para os doomers, os boomers vivem num estado de ignorância feliz, dado o seu caráter otimista e alienado frente aos desafios impostos pela realidade.

A raiva dos boomers é dirigida contra toda e qualquer transformação social, ironizando indivíduos que sejam vetores desta: os Millenials. Os boomers dirigem suas críticas a esses, por vezes dando sermões de conteúdo anacrônico. Por serem pessoas que vivem a partir de um conjunto de crenças desatualizadas, os boomers são reacionários por excelência, rejeitando de antemão a mudança e a transformação social. Há uma série de videos no YouTube e no TikTok que ilustram as tensões entre os boomers e os mais jovens, e o meme "Ok Boomer" tornou-se popular na internet como forma de ironia quanto aos seus comportamentos.

Bloomer: a positividade afirmativa.

Os bloomers são a antítese dos doomers, por desenvolverem uma perspectiva otimista perante a vida. São indivíduos cuja consciência é aberta e orientada ao mundo por sentimentos positivos, procurando ver o lado construtivo das coisas. Os bloomers são o ideal do que muitos de nós gostaríamos de ser: equilibrados, maduros, conscientes e disciplinados.

A positividade dos bloomers não vem da ignorância da realidade tal como no caso dos boomers, mas sim de sua compreensão e aceitação. A sacada dos bloomers reside na capacidade de transformar obstáculos em possibilidades, buscar soluções diante de problemas, e transformar em felicidade o ódio e os sentimentos negativos. Os bloomers são pessoas dotadas de um senso de moral elevado, felizes, com alto grau de consciência, e não vivem o dia inteiro buscando refúgio ou isolamento social, mas procuram se conectar com o mundo e os ritmos da vida. De uma certa forma, os bloomers expressam uma contracultura digital, ao denunciarem a toxicidade, os excessos dos usos da tecnologia e da conectividade digital.

Zoomers: a nêmesis dos Boomers.

Zoomer é uma nomenclatura que brinca com os boomers: eles são a sua nêmesis. Os Zoomers são a manifestação digital da Geração Z, a primeira geração global conectada a internet desde a primeira infância. Os zoomers dispendem muito tempo em plataformas de games como Fortnite e Minecraft. Por serem indivíduos que estão conectados grande parte do tempo, são mais suscetíveis a comportamentos aditivos no uso da tecnologia, games e pornografia. Por serem mais jovens, podem rapidamente se transformar em doomers ao ingressarem no mercado de trabalho, dado sua intensa ligação com os ambientes digitais. Dada a sua elevada taxa de conexão, são produtores e difusores de conteúdo, experimentando novas plataformas sociais (como no caso do TikTok), gravando vídeos, compondo memes e compartilhando-as com os seus colegas de escola. Sua diversão predileta é ironizar o comportamento dos boomers.

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Jose Mauro Nunes

Professor of Executive Education at UERJ and EBAPE/FGV, Consultant at Pragma Consulting Co., Researcher on Consumer Culture, Marketing & Digital Technologies