O COMBATE AO CORONAVÍRUS: O ASCENSOR PARA O CADAFALSO?

Jose Mauro Nunes
11 min readMar 24, 2020

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Primeira advertência.

Esse singelo texto não tem absolutamente o objetivo de invalidar o esforço das autoridades médico-sanitárias ao redor do mundo em combater a pandemia do novo coronavírus. A difusão da doença é fato consumado, os seus efeitos em determinados países assumiram contornos dramáticos — vide os casos da Itália e da Espanha — e o custo em vidas humanas (especialmente dos mais idosos) é assustador. Penso que os esforços valorosos e corajosos dos profissionais de saúde que estão na linha de frete de combate, bem como os de agentes sanitários, segurança e atividades essenciais (comércio, limpeza e indústria) mostra o que de melhor a nossa espécie é capaz de produzir: a cooperação, a empatia para com o próximo, a solidariedade e a produção de coalizões efetivas. Isso nos dá esperança, nos conforta e nos energiza para os enormes desafios do futuro, quando por ocasião da diminuição do surto de infecção.

Muito tem sido discutido com relação aos aspectos positivos das medidas adotadas pelos agentes públicos por ocasião dos estágios iniciais da contaminação: a restrição da movimentação de pessoas, o lockdown das cidades/regiões, o distanciamento físico, a testagem de infectados, a checagem de temperatura, dentre outras. O meu objetivo aqui, ao escrever esse texto, é o de trazer um outro ângulo de análise da situação. Basicamente, as perguntas que faço aqui são as seguintes:

Até que ponto as medidas atualmente adotadas pelos governos ao redor do mundo podem lançar as bases para um mal maior e duradouro do ponto de vista econômico e social? Estaríamos, com isso, entrando em um ascensor para o cadafalso? Por fim, essas medidas teriam um potencial de iatrogenia — o chamado “dano do curador”, quando a intervenção provoca um mal maior do que o esperado, agravando o estado do paciente até a sua morte?

Segunda advertência.

Não sou um especialista em epidemiologia ou em saúde pública, mas apenas um professor e pesquisador na área de gestão e organizações. Leciono para Mestres e Doutores extremamente bem preparados, que não se furtam a discutir temas espinhosos e de grande impacto social. Além disso, auxilio executivos a tomarem decisões como consultor de empresas. Tenho preparo acadêmico e experiência empírica, apesar de considerar o sábio conselho de Roberto Campos de que “a experiência é uma lanterna de popa de um pequeno barco que iluminaria apenas as ondas deixadas para trás”. Por fim, e não menos importante, as minhas reflexões aqui não expressam a simpatia por um governante A, B ou C, nem têm o intuito de questionar a atuação dos atuais atores governamentais responsáveis pela formulação e execução das politicas públicas de saúde. Elas visam, tão somente, fomentar o debate e proporcionar novos ângulos de análise da situação em função do grau de volatilidade e complexidade na qual estamos inseridos. Tenho a firme convicção de que a função (e o dever) de qualquer interessado nos impactos humanos, econômicos e sociais de fenômenos dramáticos como os que estamos vivenciado atualmente é a de pensar sobre as alternativas que temos sobre a mesa. O tempo urge, vidas humanas estão em jogo, mas o que enfrentamos está muito além de ser um problema com implicações médicas ou sanitários, somente.

Feitas essas advertências ao leitor, podemos prosseguir na análise.

Lockdown e iatrogenia: o percurso até o cadafalso.

Primeiro, uma sugestão de leitura:

Em 22/03/2020, foi publicado no New York Times um artigo escrito por Thomas L.Friedman — autor de best sellers como “O Mundo é Plano” e “Quente, Pleno e Lotado” — , cujo link para reproduzi acima. Basicamente, o autor levanta alguns problemas relativos a estratégia de fechamento (lockdown) das cidades como grau zero de combate a pandemia. Os efeitos de uma medida tão drástica são bastante claros, em seu entendimento: primeiro, a baixa taxa de mortalidade do vírus (comparada a outras doenças), o que por si só não justificaria uma medida de tamanha envergadura; segundo, o foco excessivo no tratamento dos doentes da Covid-19 colocaria em risco a vida de pacientes com outras morbidades com taxas maiores de letalidade (câncer, infarto, acidentes vasculares cerebrais), devido ao deslocamento de pessoal e insumos para lidar com a pandemia, deixando-os abaixo da escala de prioridades de atendimento; terceiro, os problemas mentais e sociais provenientes da interrupção abrupta de grande parte da atividade econômica. Estamos falando da falência em massa de pequenas e médias empresas, gerando desemprego em larga escala e diminuição da demanda de atividades de serviços — em especial, chamo a atenção para os impactos dramáticos para os trabalhadores informais e os “uberizados”.

Estes, diferentemente da elite econômica ou de parcela da classe média, não possuem qualquer tipo de poupança ou reserva financeira que os proteja durante o período de interrupção da atividade econômica. Pelo contrário, vivem com o orçamento contado, reféns do fluxo de caixa cotidiano sem o qual não conseguem manter o mínimo de suas despesas diárias — alimentação, transporte, vestuário e serviços públicos como água e luz. A despeito da necessidade premente de preservação de vidas humanas, o prolongamento desse lockdown gera, em curtíssimo prazo, um colapso das condições mínimas de sobrevivência dessa camada social menos favorecida.

É claro que o efeito sistêmico dessas medidas iniciais de contenção é incomensurável. É uma mudança radical da nossa forma de vida baseada na mobilidade, interação social presencial e ocupação de espaços públicos. Do ponto de vista econômico, estamos falando da demolição da tríade estruturante e fundamental que organizou o mundo ocidental pós-Segunda Guerra Mundial: emprego/renda/consumo. Desconstruir isso é lançar o mundo num vácuo de proporções inimagináveis, sem um plano B, plano alternativo ou via de escape. Claro que esta vem sendo desconstruída a passos largos pela automatização das ocupações e pelo avanço tecnológica mas, de fato, a caixa de Pandora pode ter sido aberta. Em minha humilde opinião, estamos no início de uma profunda alteração do nosso modelo econômico de desenvolvimento, trabalho, renda, consumo e bem estar. Alguns falam no colapso do capitalismo, outros de um capitalismo reformado, mais social e inclusivo — isto é, um pós-capitalismo. Ainda é cedo para prevermos o que virá para frente. Porém, uma coisa e clara: somos, ao mesmo tempo, agentes e espectadores de tempos tão fascinantes — e difíceis.

Ainda no artigo, Friedman argumenta que a renda é um fator determinante para a longevidade e o bem-estar do indivíduo, e sua ausência levaria (no caso brasileiro, observação minha) a perda imediata da cobertura médica privada, levando os cidadãos a estressarem cada vez mais o nosso combalido Sistema Único de Saúde (SUS). Desde 2013, com a recessão econômica, cada vez mais pessoas buscam acesso aos sistemas públicos de educação e saúde, aumentando vertiginosamente o gasto público nessas aéreas e exigindo dos gestores públicos uma efetividade maior das políticas nesses setores. Porém, somos todos os dias acossados por manchetes que mostram os menos favorecidos na porta dos hospitais sem atendimento, pais que têm dificuldade de matricular os seus filhos em escolas públicas perto de suas residências, além da falta de insumos. Os servidores públicos trabalham cada vez mais sob pressão, muitas das vezes sujeito a ofensas verbais e agressões físicas, sem a contrapartida das autoridades no que toca à proteção na execução das suas atividades. Portanto, menos emprego significa menos dinheiro circulando, menos consumo, impactando diretamente na arrecadação fiscal dos entes federativos, restringindo dramaticamente a capacidade de investimento do Estado na geração de emprego, nos sistemas públicos de educação, habitação, mobilidade, saneamento, dentre outros. É um dano sistêmico cujas consequências são imprevisíveis. Nestes momentos de gravidade, onde as famílias necessitariam mais da ação do Estado, justamente ele se vê menos capaz de gerar soluções que possibilitem a formulação de políticas que promovam o reerguimento do tecido social.

O impacto dessas medidas para o micro e pequeno empreendedor é mortal. Para os profissionais das atividades de turismo, cultura, lazer e entretenimento e quase uma sentença de morte. Afinal, estamos falando da ausência do dinheiro circulando, movimentando a economia, remunerando esses profissionais. Entre os menos favorecidos, o impacto da perda de renda é ainda mais dramático: o orçamento cada vez mais combalido pela ausência de renda, leva os indivíduos e concentrarem os seus esforços na busca de comida, reduzindo dramaticamente os investimentos pessoais e familiares em educação, saúde, higiene, habitação, lazer e entretenimento. Um cenário de restrição econômica severa — como os especialistas esperam daqui para a frente, caso o quadro atual perdure — irá gerar uma espiral descendente de consequências imprevisíveis: menos emprego, menos renda, menos consumo, menos bem-estar, e por aí vai. A busca de ocupações precárias, o grande número de famílias em situação vulnerabilidade as exporá a efeitos colaterais tais como: aumento da violência doméstica, consumo exacerbado de álcool e outras substâncias psicoativas, além do ingresso em atividades criminais que elevariam as taxas de violência urbana. As consequências sociais para os indivíduos e para o tecido social são, no mínimo, assustadores e impensáveis. Afinal, a necessidade é a mãe da invenção — para o bem ou para o mal…

Estamos diante de uma decisão dramática, trágica eu diria, por possuir os contornos típicos de uma escolha exclusiva: como preservar a vida dos nossos habitantes, sem que a capacidade econômica seja destruída a um ponto onde ela não consiga mais ser retomada? Para os estudiosos de design thinking e de políticas públicas, estamos diante do que o teórico do design Horst Rittel denomina de um wicked problem: um problema insolúvel, cuja resolução produz o surgimento de outros problemas, mas que, mesmo assim, torna-se imprescindível empreender esforços visando a sua (pretensa) resolução. É importante ressaltar que um wicked problem nunca é plenamente solucionado: ele é apenas mitigado, desmembrado, reduzido em partes menores que são mais fáceis de serem atacadas. A maioria dos problemas de coordenação pública são dessa natureza, dada a sua envergadura, complexidade e capacidade de impactos sistêmicos.

Estamos diante de uma variação do famoso dilema filosófico do bonde: salvar a vida de muitos com o sacrifício de poucos? Ou preservar a vida de poucos, mesmo que a vida de muitos seja colocada em risco? Peço perdão por falar de maneira tão franca: como salvar a vida dos mais jovens sem sacrificar a vida dos mais experientes, que tanto trabalharam para que pudéssemos chegar até os níveis de riqueza e bem-estar que hoje experimentamos? Além do mais, como preservar a nossa sociedade sem condenar os mais pobres a níveis cada vez maiores de vulnerabilidade e desestruturação social?

É possível interromper o elevador? Da interdição horizontal para a interdição vertical.

Continuando no artigo, Friedman cita a visão do Dr. David L. Katz, fundador do Centro de Controle de Doenças Infectocontagiosas da Universidade de Yale. Para ele, há de se pivotar a estratégia atual da interdição horizontal — fechamento das cidades, restrição da circulação de pessoas e redução da atividade econômica ao mínimo essencial — para uma interdição vertical ou cirúrgica. Nessa última, trata-se do uso de medidas de contenção, distanciamento fisico e proteção não de todos, mas apenas dos pacientes mais vulneráveis a morte, ou sujeitos a maiores períodos longos de internação — a saber, os mais velhos, os cronicamente doentes e os imunodeprimidos. Para o restante da sociedade, o tratamento utilizado seria o semelhante ao utilizado nos surtos de gripe, dado que o vírus se manifesta de forma menos intensas na grande maioria dos casos— além da adoção de medidas de auto-quarentena domiciliar e de distanciamento físico em espaços públicos das pessoas que apresentassem tais sintomas.

Não estou querendo, com isso, questionar as medidas iniciais de isolamento e lockdown, mas sim problematizar a sua adoção por um longo período de tempo. Isto é, é importante que possamos flexibilizá-las conforme tenhamos mais informações sobre a curva de contaminações e óbitos, bem como a estabilização dos casos. Em qualquer processo decisório desta complexidade, onde a incerteza anda de mãos dadas com o temor de colocar em risco milhares de vidas humanas, é fundamental que os agentes decisórios possam constantemente avaliar/alterar suas decisões em função da chegada de novos dados. Uma delas seria a de reduzir o tempo de distanciamento fisico para duas a três semanas — ou seja, o tempo médio que o vírus costuma se manifestar — , além continuar com a restrição a formação de aglomerações em locais públicos (sim, quarentena não é Carnaval, micareta ou férias de final de ano!). Além disso, medidas como a checagem de temperatura corporal e o incremento do número de testes, ajudariam os especialistas a compreender a dinâmica de infecção da doença, possibilitando a formulação de medidas de contenção cada vez mais precisas e pontuais, reduzindo as consequências iatrogênicas para a sociedade como um todo.

A vantagem dessa estratégia de intervenção vertical seria a de minimizar os impactos de redução da atividade econômica a poucas semanas, possibilitando a recuperação rápida dos níveis de emprego, renda e consumo. Em países como o Brasil, onde a desigualdade social e de renda é indecentemente crônica, tal rapidez é o limite entre a estabilidade e o caos social. Os custos deste último seriam inimagináveis pra o nosso país.

Comentários finais.

Em minhas aulas sobre processo decisório, costumo sempre utilizar uma frase da sabedoria popular: o ótimo é o inimigo do bom. Além disso, em cenários complexos que exigem decisões rápidas, é muito comum o surgimento do chamado pensamento de grupo (groupthinking) — um viés de grupo que se manifesta na produção de decisões consensuais apressadas — , cujo efeito é inviabilizar a capacidade dos agentes em avaliar soluções alternativas com diferentes graus de risco. Ou seja, é um fenômeno que colapsa a nossa capacidade em raciocinar criticamente, mesmo que possuímos expertise no assunto em questão. Existe uma vasta literatura sobre esse tema, que vai desde decisões de politica externa até grandes tragédias, como a explosão do ônibus espacial Challenger. Daí a importância de que, mais do que nunca, possamos exercitar a nossa capacidade crítica — pensarmos como “advogados do diabo”, ao nos colocarmos na posição dos diferentes agentes interessados na decisão — , além do uso de raciocínios contraintuitivos.

Queria encerrar esse texto com um último comentário. Catástrofes naturais como terremotos, tsunamis e enchentes têm o poder de aproximar as pessoas. Geram comoção, e nos mobilizam a ajudar o próximo. Já as pandemias geram um comportamento oposto: dado o inimigo ser o próximo, o outro é a fonte de horror, estranhamento, posto ser um possível vetor de contaminação. Por isso, é natural que as pessoas se sintam em pânico, arredias, mais distantes, irritadiças e pouco empáticas. Para mitigar esses efeitos em tempos de quarentena doméstica, é necessário que possamos produzir uma resposta coletiva baseada na responsabilização individual de cada um de nós. Que um evento crítico desta natureza exija não apenas a pronta resposta das autoridades públicas competentes em suas diversas esferas e âmbitos de atuação, mas também a concertação de atores privados e da sociedade civil. Por fim, a accountability individual está, mais do que nunca, sendo posta à prova. Tempos difíceis exigem decisões dramáticas. Também nos fazem ver o nosso melhor e o nosso pior, como se a nossa individualidade fosse projetada em um espelho. Cabe a nós escolhermos: queremos ver o nosso melhor, ou o nosso pior? Se quisermos dias melhores, precisamos agir de forma rápida, flexível e articulada. A solução desse dilema não se dará em semanas, mas sim em longos meses, talvez anos. Certamente a vacina chegará. Até lá, é o nosso futuro que está em jogo. É por ele que batalhamos, lutamos, pensamos, vivemos. Este deve ser a nossa obsessão cotidiana.

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Jose Mauro Nunes

Professor of Executive Education at UERJ and EBAPE/FGV, Consultant at Pragma Consulting Co., Researcher on Consumer Culture, Marketing & Digital Technologies