Olfateando o crepúsculo

Jotapê Jorge
7 min readFeb 8, 2018

— É uma tatuagem bonita — Teodoro falou. No quarto pairava um odor de sal.

— Obrigado — ela limitou-se a responder. Estavam nus sobre a pequena cama, ele sobre ela, a cabeça em seu colo enquanto observava mesmerizado cada precioso centímetro daquele corpo que, momentos antes, tinha sido seu, mas que agora se contorcia levemente ao seu toque, os dedos rudes sobre a grande tatuagem nas costelas.

— É um gato?

— Uma gata…

Teodoro achou graça.

— Por que não um gato?

Ela virou-se, desvencilhando-se para pegar da cabeceira um cigarro. Tinha apenas 20 anos, dez a menos que ele, mas usava fósforos, como se quisesse demonstrar para si que era uma fumante de verdade. Depois se sentou, cruzando as pernas com pudor, e levantou o braço esquerdo. Com o movimento, seu seio levantou delicadamente, deixando mais visível o desenho.

— Vê, ela tem três cores…

De fato a gata tinha três cores: o branco de seu pelo representado pela pele levemente castanha, um laranja forte nas orelhas e nas patas e o preto de uma pequena pinta sobre o nariz. Naquele instante Teodoro quis lamber aquela tatuagem, queria absorvê-la, sorver para si qualquer resto de sal não evaporado, banhar-se naquele diminuto mar para outra vez tomá-lo. Mas, por algum motivo, não teve coragem.

— Sim… Mas e daí?

— E daí que só gatas têm três cores. — ela disse, antes de dar mais uma baforada no cigarro — acho que depois desse cigarro eu vou dormir…

Teodoro olhou para o relógio. Eram 2h da manhã, mas não tinha sono. Apesar disso, concordou com a cabeça.

— Sim, claro. Deveríamos dormir.

Os cafés da manhã eram importantes para Teodoro. Eram a principal refeição que tinha com a ex-esposa, que trabalhava até tarde e, portanto, nunca podia acompanhá-lo ao jantar. Por isso os cafés eram preparados com especial dedicação. Ovos fritos, queijos, frios, às vezes salsichas e bacon, à americana. Nos finais de semana, quando podiam acordar um pouco mais tarde, tomavam também uma cerveja forte. Aqueles momentos, os raros momentos em que se sentavam frente a frente — mesmo que totalmente desconectados, imersos em suas revistas, ou jornais, ou tablets e telefones celulares — , eram como uma espécie de corda que, balançando-se sobre algum ponto fixo, sustentava uma imensidão de pequenos fios. Ou era assim que ele imaginava.

Certa vez chegou a comentar:

— Nossos cafés são como uma corda…

A ex, segurando a caneca fumegante, não pareceu entender. Era um fato que Teodoro não tinha muita imaginação.

Acordou e não a sentiu ao seu lado. Deitado, observou longamente o teto, como se procurasse naquela pequenez esbranquiçada algum tipo de resposta secreta, ou uma luz divina vinda do plafon plastificado. Reparou então que o sol que atravessava a persiana formava uma multitude de pequenos pontos claros, um desenho bonito, que mudava de acordo com o vento que batia na persiana. Levantou-se. Na parede oposta à cama havia um espelho cumprido e estreito, de corpo inteiro, onde se viu, apesar da luz fraca. Sentiu-se então estranho, como uma cigarra que, ao fazer a muda para o verão, descobre que na verdade era julho, e que portanto estava seis meses atrasada — ou adiantada. Vestiu rapidamente as cueca e deixou o quarto. Ela estava na sala, sentada sobre um sofá cinza.

— Tem café na cozinha.

Antes de conhecê-la, seus dias eram invariavelmente vazios. Raramente saía de casa. Preferia pedir a pouca comida que consumia de algum aplicativo. Quando saía, era a esmo. Dava voltas no quarteirão, espantando-se com o quanto o bairro tinha mudado: ora uma barbearia nova que abria na esquina, em outra, uma loja de conveniências japonesa.

Às vezes pegava o metrô e deixava-se ficar no vagão até Santana, apenas para voltar até o Jabaquara, como se estivesse num gigantesco carrossel. Ou então sentava-se num dos bancos da plataforma e ficava observando os trens e inventando distrações, como contar quantas pessoas de boné saltavam a cada parada, ou quantas mulheres usavam um vestido verde. Em dias de jogos arriscava ir até Itaquera, mas nunca para estádio. Ficava na estação, observando o estádio do outro lado dos trilhos e tentando adivinhar o resultado dos jogos pelos “uhs” e “ahs” da torcida.

Numa dessas andanças, a viu. Estava num vagão na estação Vila Mariana, quando ela entrou carregando debaixo do braço um livro. Teodoro estava sentado, contemplando o nada pela janela, mas viu quando ela, depois de varrer a extensão do trem com seus olhos rápidos, encostou-se à porta que fechava para ler com destreza Cem Sonetos de Amor. Teodoro também viu quando ela desceu na estação Vila Madalena. O sinal sonoro já começava a apitar quando finalmente tomou coragem. Deu um salto da cadeira e correu. Queria falar com ela, mas o simples pensamento fez com que sua língua engrossasse, como se ela não o pertencesse. Só então percebeu que, naquela solidão em que vivia, praticamente não falara com quase ninguém em quase um ano e meio. Quando finalmente a alcançou, não conseguiu lhe dizer nada.

A última mensagem que trocaram foi uma pergunta:

— Por que apenas gatas têm três cores?

Ela demorou alguns dias para responder:

— Por uma questão genética. O gene que determina a cor está no cromossomo X.

Passavam das 5h da manhã quando ele olhou para a luz trepidante do relógio da cabeceira. Levantou-se e, sem acender as luzes, acendeu um cigarro. Garoava fininho, e ele abriu a janela para poder brincar de soltar fumaça por entra as gotas de chuva. Quando terminou, foi ao banheiro e urinou longamente, como se não o fizesse há dias, e chegou a ficar assustado com a quantidade. Enquanto lavava as mãos, percebeu no espelho a barba enorme, que crescia para além do queixo em fios grossos e desalinhados. Achou curioso, quase como se observasse outra pessoa. Pegou então uma velha tesoura de costura e, depois de tirar o grosso dos pelos, finalizou com uma gilete já meio enferrujada. O resultado não ficou maravilhoso, mas fez com que se sentisse melhor. Depois de estancar com pedacinhos de papel higiênico o sangue que brotava da profusão de pequenos cortes, vestiu uma velha camiseta branca já amarelada, uns jeans surrados e um boné de beisebol do New York Mets e saiu para dar uma volta.

Caminhou por muito tempo, passando por sujeitos de terno correndo para o trabalho, homens com caras acinzentadas lendo o jornal, moças de branco caminhando com cachorros . Diferente dele, todas aquelas pessoas estavam dentro de um ritmo, como se fossem bailarinos numa apresentação do Theatro Municipal, e ainda que seus movimentos parecessem erráticos, estavam tão alinhadas quanto peças minúsculas de um relógio de precisão. Ao pensar nisso, sentiu um aperto no peito e uma estranha dormência nas pontas dos dedos. Por um segundo era como se ele não fosse real, mas um autômato mal alinhado, controlado por uma estranha criatura de pele viscosa, enclausurada numa pequena sala escura e que, vivendo dentro de sua cabeça, podia observar o mundo apenas através de uma janela minúscula.

Quando se deu conta, não sabia mais onde estava. Olhou para os lados, mas não viu sinal de pessoas. Percebeu então que não estava mais numa rua qualquer, e sim numa viela estreita, de calçamento antigo de pedra. Ajustando melhor os olhos, pôde perceber que era uma rua sem casas. Apenas as costas dos prédios davam para ela, os muros altos dos condomínios encimados por arame farpado. Seguiu caminhando, agora mais devagar, buscando encontrar-se, mas a rua era impossivelmente longa e se estendia sempre igual, bordeada por aqueles muros imponentes e cinzentos.

Foi quando encontrou a gata.

Era um animal estranhamente bonito, de uma pelagem branca e brilhante, com as patas e orelhas tingidas num amarelo alaranjado. Sobre o nariz, uma pequena pinta negra. A bicha estava sentada no meio da rua de pedras, a cauda balançando lentamente, fitando-o com olhos grandes de um tom dourado quase irrealista. Teodoro se aproximou e tentou fazer-lhe um leve carinho, mas a gata se esquivou, eriçando os pelos da nuca. Assustada com aquele estranho, levantou-se e saiu correndo, solitária como um puma de Quitratúe. Teodoro a seguiu, adentrando ainda mais pela viela, sem perceber que ela agora afunilava. Quando mais Teodoro caminhava, mais altos ficavam os muros e mais estreita a viela, a ponto de o céu tornar-se uma nesga distante sobre sua cabeça e dele precisar apertar os olhos para distinguir alguma luz em meio ao breu. Depois de muito tempo encontrou um sobrado.

Pintado em azul forte, sua fachada cobria todo o final da viela, o que não era muito. Apenas um metro e meio de largura, espremido entre os muros de concreto. No primeiro andar, uma porta pintada de branco, com uma marca sobre a tinta onde antes estava afixado o número do edifício. Era possível, no entanto, decifrar que aquela casa tinha sido a número 11. Por ser mais baixo que os prédios adjacentes, o sobrado deixava passar por seu telhado alaranjado um sol que despontava sobre a casa como uma coroa. Ao sentir aquele calor, Teodoro finalmente percebeu o quão fria tinha sido a jornada, e embora seus olhos doesses pela súbita aparição da luz, não tentou se proteger ou esconder-se. Ficou apenas parado. Só parou quando o sol, seguindo seu curso natural, foi esconder-se para além da viela, deixando para trás uma turva reminiscência de seu calor.

Notou então que a porta, que antes parecia trancada, estava entreaberta. Pensou em retornar, mas sentiu que deveria seguir em frente. Afinal, a casa poderia ter outra entrada, uma entrada normal, que desse para uma rua normal, e por onde ele poderia voltar para a sua vida normal.

Abriu a porta e tropeçou no que parecia um degrau. Mas não acertou o chão.

A queda o levou para uma imensidão negra, iluminada apenas por um buraco lá no alto, um buraco com o estranho formato de um corpo humano. Era difícil observar na velocidade em que caía, mas o buraco se fechava lentamente. Antes que se fechasse por completo Teodoro pode ver a cabeça da gata silenciosamente o espiando lá de cima.

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Jotapê Jorge

Nasci em jornalismo e cursei cidade de São Paulo em 1989. Colecionador de poeria, meus hobbies incluem ter hobbies.