Um terrível conto preventivo sobre os perigos de se envolver com pessoas comprometidas

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Julianna Isabele
4 min readNov 8, 2015

Querido diário,

Vou morrer muito em breve. Li na Wikipédia que a Virginia Woolf se matou colocando pedras em um casaco e se jogando no mar depois. Consegue imaginar? Ela escreveu sobre como as pessoas só conseguem criar emoções expansivas sobre o passado, nunca sobre o presente — e é por conta disso que há tanto apego ao que já passou. Ela também não queria o futuro.

Sendo 98% exata, acho que não vou me matar. O plano deve ser, em algum nível inconsciente, matar o mundo todo para me livrar de ter que existir por uma vida inteira. Não fui ao médico para me falarem com 100% de certeza os motivos reais por trás do plano e poderem concluir pelo meu histórico qual foi o gatilho para a tendência ao suicídio, mas a resposta química e prontamente disponível é mais temerosa que as implicações acerca minha futura falta de existência.

Com 11 anos fui ao médico por não ter desenvolvido empatia. É um conceito que as crianças criam com uns 4 anos de idade, por aí, brincando com os colegas cooperativamente, não de forma individual. O balanço químico do meu córtex pré-frontal estava bagunçado, segundo o comprovante guardado pela minha mãe até hoje dentro de uma caixa com o restante das memórias físicas. Meu comportamento social, minha capacidade de tomar decisões e minha personalidade estavam comprometidas e eu ainda era uma criança. Junto do papel amarelado veio tolcapona, um inibidor seletivo da enzima Catecol O-Metiltransferase para aumentar a dose de dopamina dentro do cérebro. Também é usado no tratamento de Parkinson.

Há três anos, quando eu tinha 18, minhas notas baixas na faculdade foram justificadas como parte de um quadro clínico categorizado como depressão, o que também explicou uma variação de 5% no meu peso corpóreo, hipersônia e agitação psicomotora. O display brilhante exibiu uma explicação breve, guiada pelo retrato cartunesco de um professorzinho bigodudo e levemente calvo; o mascote ditava a apresentação retrô, com slides e animações bidimensionais feitas quadro por quadro. Algumas pílulas, alguns inibidores, uma linha amarela indicando a quase falência acadêmica em Química 1 seguida de uma tipografia itálica explicando as consequências do desempenho abaixo do esperado e pronto. Consulta finalizada. O problema foi resolvido dentro de algumas semanas e consegui uma média de 8.7 naquele semestre. Foi a mais baixa da turma.

Ir ao médico não é um processo terrível ou trabalhoso: em grande parte, você só precisa espetar seu dedo em um mini-aparelho branco equipado de uma agulha minúscula para deixar seu sangue ser escaneado. Em outros casos, a máquina de ressonância se faz necessária, fatiando seu cérebro e criando várias chapas de você por dentro para conseguir padronizar os processos químicos e fazer previsões precisas sobre a eficiência do tratamento necessário para os problemas encontrados.

A simplicidade de tratar uma depressão eventual causada por estresse não se compara a infinita complexidade que acredito ter dentro da minha cabeça. Claro sintoma esquizoide.

Se o resultado de uma consulta feita amanhã for um pouco mais violento do que uma depressão adolescente causada por excesso de pressão, posso acabar perdendo a chance de ter um emprego bom. Vou ter que esperar meses na fila dos banidos para encontrar uma vaga no varejo ou em serviços, ganhando um salário mínimo e sendo mãe de um filho que não terá oportunidade o bastante para ter um emprego bom e também terá que lidar com vagas no varejo ou em serviços, ganhando um salário mínimo e sendo pai de um neto que não terá oportunidade o bastante para ter um emprego bom e vou ficar presa no ouroboros da classe média-baixa. O cenário pior é servir como rato de laboratório para softwares em troca de tentar continuar vivendo ou atuar como mula no mercado de drogas. Claro sintoma paranoide.

Ninguém diz em público, mas quando falam sobre abrigos para “incapazes” fica implícito: quem não consegue ser útil para a sociedade merece viver em uma casta inferior, uma parcela da população utilizada para testar pílulas e softwares, versões beta e alfa de humanos, constantemente em testes e sem o apoio clínico reservado para os essenciais da sociedade — nada de erros e colateralidade para os trabalhadores. Ainda assim, não há força o bastante dentro de mim para me entregar aos subúrbios e aos marginais, prefiro a não-existência ao sentir excessivo causado pela falta de luxo. Claro sintoma dependente.

Vou me matar pelo medo de encarar a verdade. Entre crises paranoides, depressivas, esquizoides e dependentes, talvez meu cérebro esteja tão quebrado que eu acabe confirmando a existência da pior das lendas urbanas.

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