A vizinha do final do corredor

Astrea
2 min readJan 15, 2020

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Esta mulher. Eu sempre a achei interessante. Não porque ela esmaga os cigarros pela metade no medíocre vasinho de planta a beira da escada (é claro que não existe planta que ouse brotar ali), não porque ela passa horas jogando Candy Crush completamente solitária acocorada no corredor.

Eu sempre a achei interessante talvez por aquele olhar ameaçador que me assombra sempre que subo para o meu apartamento. Não sei, talvez ela não saiba que possui essa característica. Esta é uma mulher tão simples quanto pode ser. Ela provavelmente não tem ideia nenhuma do que é alguém.

Como Jesus, não tem beleza. Carrega a alma num agrupamento de pele marrom e ossos achatados. As roupas a enrolam como uma corda com a intenção de parti-la ao meio isso e causa repulsa a qualquer olhar. Até mesmo o meu que, apesar disso, consigo enxergar algo de estranhamente sedutor no enjoo que ela me causa.

Ás vezes ao abrir a janela do meu apartamento, um cheiro fétido de cigarro barato e fumaça úmida recém baforada invade meu espaço. E eu tusso. Tusso até sentir dor no peito. Enfio minha cabeça pela janela para encara-la e tento dizer com o máximo de profundidade no olhar que gostaria que ela morresse sufocada com a próxima guimba de cigarro que ousasse fumar. Cinco minutos depois não existe mais cheiro, não existe mais cigarro, ela já não está no corredor e eu já havia esquecido completamente do meu pensamento odioso porque lembrei que tenho que descongelar o feijão.

Ah, essa mulher também desfila com uma cadela raciada que mais parece um aglomerado de pelo cinza escorrido. Apelidada de Lola, a cadela parece adorar a dona. Estranho, penso eu, sempre gostei de cachorros, mas não gosto desse.

Eu poderia ficar aqui descrevendo todos os hábitos e características que me fazem, em tese, reprovar esta mulher. No entanto, eu acredito que, se porventura, esta mulher não fizesse parte do ecossistema do prédio, a minha sobrevivência seria afetada de algum jeito, algo não estaria simétrico.

A minha rotina, de alguma forma bizarra, está entrelaçada com a dos vizinhos que eu tanto detesto. Eu fecho a janela e fecho a cortina em determinado momento do dia para que não consiga sentir o hálito imundo da vizinha fumante e para evitar os olhares sinistros do vizinho da frente. É neste momento que aproveito para andar despida pela casa e tomar banho. A imundície de onde eu moro constrói o lugar de forma poética. Enquanto eu faço amor com o homem que eu amo, em algum lugar do prédio existe a Lola mijando no tapete de alguém. O que eu quero dizer é que talvez não seja possível caminhar pelo jardim público sem contemplar o imenso horror da existência de uma flor e deixar de reparar no pedaço de coco de cachorro bem ao lado.

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