júlia flores
4 min readDec 13, 2022

não quero pensar em nada. não há no mundo uma única vontade de voar – tudo é pesado demais. há talvez um mínimo esforço pra que enfim possamos construir algo, um vislumbre tão mais belo que um dia será tátil. há talvez um som esquisito, com notas nunca antes ouvidas. às vezes sou automusicista. queria ter esse exato poder: o de evaporar com o ar e entrar dentro dos corpos. ser interpretado pelo cérebro, mas ser sentida por algo que não consigo ainda explicar. quero sentir a água escorrer por entre dedos.

madrugada passada acordei assustada com o barulho de um acidente. dava pra ver, da varanda de casa, os vidros piscando no asfalto feito estrelas. procurei sangue, não havia. achei curioso, e até um pouco triste, o fato de não haver sangue. talvez eu esperava algo maior, algo que construísse em mim alguma perturbação. pelo contrário, a cena não me comoveu em nada. olhei os amassados dos carros como se fossem entranhas, lembrei daquela obra da adriana varejão. a ambulância chegou rapidamente e eu nem sequer ouvi as sirenes. talvez meus ouvidos ainda estivessem presos no barulho estrondoso da batida. seria esse o som esquisito? as notas nunca antes ouvidas? não sei. só sei que, de alguma maneira, busquei evaporar bem ali. adentrar o corpo dos envolvidos, de todos eles. os motoristas bêbados, os passageiros nervosos, os socorristas atentos. ver finalmente sangue. navegar o desconhecido e explorar as terminações nervosas como mapas de metrô.

hoje chorei tanto que em determinado momento senti que ia vomitar. me sentei na cama, ainda soluçando, e pensei que estava enfim processando tudo o que aconteceu. não apenas ontem, com o acidente, mas tudo desde o momento que nasci. a luz forte da sala de cirurgia, as entranhas de minha mãe conhecendo o exterior pela primeira vez após a primeira perda. pensei nisso: a perda. será que o útero de minha mãe me achou um intruso, invadindo o espaço do outro que ali estava algum tempo antes? um corpo estranho, esquisito, raro. mas dessa vez desenvolvido, com o coração batendo. será que foi por isso que minha mãe achava que eu havia falecido ainda em seu ventre? quantas vezes será que ela se queixou: “doutor, mas ela não se mexe!”? deixei pra me mexer apenas depois de expor as entranhas de minha mãe para o mundo.

depois que meu mundo se tornou esse, não parei mais de me mexer. tomei o movimento como algo quase intuitivo. quando criança eu não parava por um segudo, era um ser incansável. vivia a eterna tentativa de mostrar pra minha mãe que eu não estava morta. estava ali: sã e salva. como nas histórias que eu contava pra mim mesma antes de dormir. dormia muito mal, e ainda me mexo muito na cama. mantia meus olhos bem abertos, prontos para qualquer coisa que poderia acontecer no meu quarto semi-iluminado. tinha crises de sonambulismo que não me permitiam descansar nunca. e mesmo assim, mesmo sem pregar os olhos, possuia um corpo tão enérgico que parecia prestes a entrar em colapso a qualquer minuto. tampouco comia. minha garganta trancava só de pensar no cheiro de comida. comer, para mim, demandava e ainda demanda muito mais energia do que nadar uma piscina olímpica 32 vezes seguidas. era sempre um processo difícil, o de me alimentar. que nem dar remédio ruim pra alguém. anos mais tarde, e eu já desconfiava, o não comer me faria ter que engolir vários comprimidos por dia.

parte da minha vida inteira tem sido me desvincular da posição de corpo estranho que ocupei. lembro que minha mãe me contou uma história de um amigo dela e do meu pai que tinha um toc gravíssimo e lavou tanto o braço com tanta força que ficou em carne viva. ele pegou uma infecção e morreu. às vezes viver me parece isso. virar do avesso, descascar minha pele. enfiar uma falange inteira dentro da ferida. uma analista me disse uma vez que eu tinha toc também. ela me dava explicações quase que mágicas da minha infância, todos os motivos pelos quais eu não comia ou não dormia. achei que aquilo era finalmente a solução. um dia relatei a ela que senti um desejo quase incontrolável de pegar a faca que meu pai usava para cortar peixe e enfiá-la diversas vezes na minha própria barriga. ver finalmente o sangue. ela me mandou pra uma limpeza espiritual.

a mulher que me exorcizou parecia uma atriz que não me lembro o nome. eu passei cerca de duas horas por lá, duas horas das quais não possuo nenhuma lembrança além de um lençol branço na frente de meus olhos. as duas horas que passei lá me pareceram um mês inteiro internada. tenho a impressão que a única lembrança que as pessoas guardam de uma internação é também o lençol branco. passei uma semana muito bem depois de ter sido exorcizada. mas aí tudo me atingiu como um carro em cheio nas costelas.

atualmente, em outro cenário, longe de minha mãe e comendo um pouco melhor, passo horas me encarando no espelho. tento me buscar dentro dos meus olhos, mas tudo o que encontro é sempre o maldito lençol branco. e o que eu quero… o que eu busco é vermelho. como sangue. como o ventre.