O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha para sempre ensina bonitezas sobre viver
4 minutos para entender porque até hoje Miguel de Cervantes é um gênio da literatura moderna
Assim como a sobrinha, ou o barbeiro, eu tampouco entendi de primeira as loucuras de Dom Quixote. Não encontrava a graça em cada aventura dessa que é considerada a terceira obra mais traduzida no mundo e patrimônio da literatura espanhola. Fui chamada para uma recuperação de literatura em plena oitava série que nunca me envergonhou tanto.
Onze anos depois, vivendo na Catalun…ops, Espanha, Dom Quixote de La Mancha piscou para mim, mandou um ‘e aí, sumida’ e eu dei mais uma chance a ele e Sancho Pança.
Desenterrei da prateleira a versão adaptada em português que tinha em casa da Martins Editora (tradução de Sérgio Molina) e reli ‘O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha’, obra máxima de Miguel de Cervantes.
Hoje eu sei um pouco mais da vida do que quando eu tinha 14 anos e ficou claro que Dom Quixote, ou Cervantes, sabia muito mais do que todos nós.
Se isso fosse um resumo de Dom Quixote eu certamente não me daria ao trabalho de sintetizar cada uma de suas aventuras, espalhadas pelos 126 capítulos, mas eu comentaria a boniteza das suas palavras para justificar o que muitos não veem — a sensatez ao defender e viver uma desrazão.
“O amor é como a guerra, e, se na guerra vale o uso de estratégias para vencer o inimigo, nas lides amorosas valem os embustes para alcançar o fim desejado. Quitéria era de Basílio e Basílio de Quitéria por querer dos céus”
Talvez em algum momento do seu passado, jogado na cama após pagar algum boleto, Dom Quixote tenha se lembrado que alguém já lhe disse uma vez que a vida é uma só e que trabalhar só para pagar contas: chega uma hora que não dá.
Ela partiu com sua bagagem que são os romances de cavalaria, isso o permitiu viver o real da forma mais bonita. Uma alienação essencial para fugir de realidades duras e comuns a todos.
Talvez o Dom Quixote de hoje vá em busca daquela viagem que viu no Instagram, dos 30 passos que leu em um e-book de sucesso ou do estilo de vida de um admirado qualquer.
O ‘Cavaleiro da Triste Figura’ sentia que tinha vida de blogueira famosa, de empresário bem sucedido, na pele de quem é filho de Deus e é ‘obrigado’ a se contentar em ter o pão e o leite de cada dia. É sobre a linha tênue entre o louco e o digno. Cruzar os trilhos, mas antes olhar para os dois lados.
Ele mostra que sonhos, projetos e realidades são complementares. É o equilíbrio que existe ao fabricarmos e desconstruirmos nossas fantasias em momentos precisos. Sobre momentos da vida em que a gente só pode encarar se enxergar aquela projeçãozinha deslumbrada de uma realidade comum, aquele bocado bonito.
Não é meritocracia. Mas é dançar conforme a música usando aquele passinho que só você sabe fazer no meio da festa, mesmo que ele não tenha nada a ver com a dança.
Já Pança, seu fiel escudeiro, mostra a importância de ter pessoas que acreditam nas nossas loucuras e fazem cara de sério enquanto todos ao nosso redor riem da fulgência.
Vai perceber também que, com exceção de Sancho Pança, os personagens de Dom Quixote que surgem no meio da obra não têm grande importância quanto à sua complexidade literária, mas eles estão ali para lembrar da arte do encontro em cada preciso momento, que com gente boa não se faz maldade sem se sentir mal, apesar de ser permitido — com o duque e a duquesa mostram.
Os Dons Quixotes contemporâneos não são bens os aspirantes a Steve Jobs que você conhece, talvez estejam mais para aquele seu amigo que paga de vidão mas você sabe que está na luta também, aquele mesmo que produz a foto do Instagram, que se deslumbra com um pouquinho de pompa. Os que no meio do escarcéu todo encontraram nas sutilezas cotidianas motivos para se orgulhar da caminhada e encher a boca para contar suas andanças e batalhas.