Manifesto a descolonização do pensamento

Juliana Lira
8 min readMar 24, 2019

--

Nem os mortos estarão seguros se o inimigo vencer. E esse inimigo nunca deixou de vencer. *

Desde quarta-feira nós brasileiros despertamos com uma avalanche de pronunciamentos e analises da visita de Jair Bolsonaro ao presidente americano Donald Trump. O furor se faz necessário. Me provoca vertigem perceber quão longe estamos indo da realidade. Fomos acostumados desde criança a aprender que a História do nosso país começou quando formos “descobertos” pelos europeus, e que desde nossos primeiros dias nossa economia era baseada na exploração de “matérias primas” para a Europa. Demora um bocado para a percebemos que aquelas matérias primas são nossas montanhas, nosso solo e nossos rios e nossas arvores. Demora um bocado para percebermos que exploração é um verbo de duplo sentido. Nós mercantilizamos nossa natureza, mas somos ensinados desde muito novos a aceitar este destino sem questiona-lo. Assim teria de ser feito, éramos parte da humanidade, e teríamos de cumpri-lo. Os europeus eram os enviados do céu para nos ajudar a realiza-lo, e graças a sua larga dedicação, pudemos entrar dentro dos trilhos do progresso humano. Uma antiga colónia europeia incorporou seus ensinamentos e desejou tornar-se o colonizador. Conseguiu-o a tal ponto que os Estados Unidos da América se converteram num monstro onde as taras, as enfermidades e a desumanidade da Europa alcançaram terríveis dimensões.*

Bolsonaro é um representante inquestionável dessa ideologia. Durante seu discurso na Câmera de Comércio estadunidense fez questão de começar sua fala enunciando que “a grande transformação do Brasil vem pelas mãos de Deus. ” A seus olhos sua vitória nas eleições é de um milagre que escancara sua predestinação divina. Logo em seguida, menciona sua primeira visita a Israel e compartilha o seguinte pensamento:

Olhem o que eles não têm e vejam o que eles são. Agora, olhem para o que nós temos, e veja o que não somos. Onde está o erro?*

O Brasil é visto, por sua pespectiva, como um grande território inexplorado e cheio de recursos rentáveis aos investidores. Sua fala me recorda a fala de um famoso pesquisador alemão, Alexander von Humboldt. Contam que Humboldt — maravilhado com a geografia, a flora e a fauna da América do Sul — via os seus habitantes como se fossem “mendigos sentados sobre um saco de ouro”, referindo-se às suas “incomensuráveis riquezas naturais não aproveitadas”. A américa que o naturalista e geógrafo alemão conhecera foi a do começo do século XIX de uma imensidão de terra ainda pouco conhecida pelos europeus mesmo depois de trezentos anos e cheia de povo e culturas completamente diversas. O pesquisador, assim como muitos antropólogos da época, acreditavam que as sociedades teriam início num estado primitivo e gradualmente tornavam-se mais civilizadas com o passar do tempo. Nesse contexto, o primitivo era associado com comportamento animalístico; enquanto civilização é associada com a cultura europeia do século XIX. Havia uma humanidade que precisava cumprir seu destino. A Europa receberia o ardo fardo de espalhar pelo mundo seus ensinamentos.

O que me parece semelhante no discurso de Humboldt e de Bolsonaro é o desejo de dominar a Natureza, para transformá-la em produtos exportáveis. As evidencias ficam ainda mais claras quando Bolsonaro diz que; — o brasil tem muito a oferecer; (…) na mineralogia, na agricultura, na biodiversidade, temos uma imensidão a ser descoberta na Amazônia e gostaríamos muito de ter parceria com o estado americano para tal descoberta. Como se já não parecesse suficiente, encerra seu discurso manifestando suas crenças:

Acreditamos em deus e na família, não acreditamos no politicamente correto, não acreditamos na ideologia de gênero. E queremos sim um mundo de paz e liberdade, mas para isso temos que trabalhar duro, e com essa parceria chegaremos no objetivo final.*

Bolsonaro é a materialização do fantasma que assombra as Américas a mais de meio século. O mundo de paz e de liberdade do nosso presidente tem seus limites muito bem delimitados. Seu discurso esta contaminado por um projeto de desenvolvimento que nada pode oferecer ao Brasil, se não o seu lugar de costume na história — do atraso, e da subordinação. Aqui encaramos a maior dificuldade deste texto. Existe toda uma ideologia que atravessa o discurso de Bolsonaro, que expõe ao sol as feridas de um passado colonial. Parece-nos estranho ou até quem sabe absurdo, colocar a pauta do colonialismo de novo em questão. Mas, não é preciso muito para se dar conta que sua necessidade é latente. Fomos acostumados a pensar que o colonialismo é algo distante no tempo histórico, um momento que já pode ser guardado nos livros de história como recordação. Uma época primitiva, que graças a modernidade, já pode ser superada. Na prática as coisas têm se mostrado tanto controversa.

O novo mundo foi o solo fértil que permitiu que a economia e o mercado internacional que conhecemos hoje pudesse se desenvolver. Foi a exploração da nossa natureza que construiu os grandes centros urbanos que tanto idolatramos. E por que os idolatramos? Porque assim nos foi ensinado, sem a Europa jamais conheceriamos a modernidade, a ciência, o conhecimento ou técnica, estaríamos fadados a "viver como animais" e contaminados pelo medo e pela "irracionalidade". Ela nos emprestou seu conhecimento para que assim pudéssemos prosperar. Mas fomos nos que demos a eles o que tínhamos de mais sagrado para que eles pudessem prosperar. Em troca eles nos colocaram em seus livros de história e nos incluiram em sua linha do tempo evolutiva, éramos objeto de estudo, um grande laboratório de experimentações. E assim a passos largos fomos sendo colocados nos trilhos do progresso. Dentro desta pespectiva a história não tem nenhum outro papel se não demostrar aquilo que a sociedade já superou. Onde o passado serve apenas como guia ilustrado das fases superadas pelo homem e que o momento presente é apenas mais um dos inumeros estágios transitórios para um futuro melhor. Portanto aqueles que acreditam em uma história universal, acreditam que a sociedade sempre caminha para frente, ou seja, que o momento presente é sempre o momento mais avançado do que os anteriores e que o futuro é a realização maxima do seu projeto.

O discurso de Bolsonaro esta contaminado por esse projeto, seu objetivo é alcançar o status de país desenvolvido e colocar o Brasil em equivalência com as grandes potências econômicas do mundo. O que nosso presidente, e muitos que repetem tal discurso, são incapazes de ver a sociedade para além do seu desenvolvimento economico. É este filtro de realidadeque nos conduz a perceber o progresso humano de forma indissociável de um desenvolvimento economico sustentado por “bens naturais”, ou seja a exploração da natureza.

Bolsonaro é so mais um tolo que foi encantado pelo mito do progresso. O progresso que vem sendo desenhado a duras penas pelas grandes potencias do mundo é inaucansável para os outros terços do mundo. É insustentável em termos naturais reproduzir em todas as nações do mundo o estilo de vida promovido pelos países do norte dos trópicos. Seu estilo consumista e produtivista é insustentável, fincando suas bases em uma lógica predatória que destrói qualquer resido de vida.

Nós nunca chegaremos ao objetivo de Bolsonaro, porque para os Estados Unidos, como outros países do globo, o Brasil não lhes serve mais do que um bom serviçal domesticado, a qual da de bom grado o esforço do seu trabalho para um bem maior que ele nunca chegará a conhecer, mas que lhe impulsiona todos os dias a repetir sua exausta rotina para buscar manter-se vivo.

Temos que nos libertar da idéia de crescimento econômico permanente, é impossível a haja um crescimento infinito em um mundo com recursos limitados. Temos que nos libertar da mercantilização da natureza, e compreendermos que, antes de mais nada, nós também somos natureza, destrui-la é destruir a nós mesmos.

A América do Sul não é uma terra sem história, antes de sermos incluídos a modernidade europeia contávamos nossa própria história, e esta na hora de retomar esta narrativa. Temos que mudar a lógica perversa do agronegócio mundial. Produzimos alimento para automóveis, mas não para seres humanos. Como já dizia Eduardo Galeano em Veias Abertas da América Latina; a monocultura é uma prisão, a diversidade liberta. Enquanto oferecer-mos de bandeja nossa natureza as grandes ecomias mundiais, continuaremos sustentando um sistema que nos oprime diariamente. Nós fomos abençoados com uma imensidão de terras férteis e nascentes de água doce, antes dos europeus chegarem éramos muitos. Não passávamos fome, se nos faltava alimento, logo mudava-mos de lugar e a floresta nós abençoava com sua abundância. Por todos os lados, não havia uma planta ou animal que não conhecêssemos. Nossos deuses se manifestavam nos detalhes, nossas famílias eram grandes e tinhamos muitas mães e pais. A mais de meio século somos exterminados, escravisados e subjulgados. Mas, permanecemos em pé, nós somos os únicos capazes de mudar o presente e assumirmos a narrativa de nossa história. Walter Benjamin faz uma metáfora em suas Teses sobre o conceito de história que acredito que ilustra muitíssimo bem o que a situação a qual nos encontramos:

[…] Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e as lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já as não consegue fechar.

Este vendaval arrasta-o sem parar para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval.*

É hora de darmos vozes aos mortos e reescrevermos nossa história. A lógica progressista quer nos aprisionar em suas normas universalistas, mas nossa diversidade é a chave de nossa libertação. É hora de aceitar outras formas de pensar o mundo, não há mais espaço para as grandes empresas agriculas internacionais e mineradoras. É hora de lutar pelas reformas sociais que nos vem sendo negadas, é irreal que um país da dimensão do Brasil tenha números tão autos de pessoas desabrigadas e famintas. É hora de redistribuir, as terras, a renda, e a técnica. Nós não precisamos das grandes potências para nos desenvolver, não nos falta nada em nossas terras. O que nos falta é tomar as rédeas da nossa próprias história, e finalmente por um ponto final nesta lógica colonial que tem nos domesticado a tanto tempo.

Colagem manual feita com imagens que ilustram a Europa e a América do Sul de uma enciclopédia ilustrada espanhola. // Criado em Março de 2019 por Juliana Lira.

__________________________________________________________________

  • Referências.

Para ver o discurso completo de Jair Bolsonaro na Câmera de Comércio dos Estados Unidos : https://www.youtube.com/watch?v=ackFb1v7PTA&frags=pl%2Cwn

A fala de Humboldt foi tirada do livro O bem viver de Alberto Acosta.

A citação referente aos Estados Unidos ser projeto europeu vem do livro Os condenados da terra de Franz Fanon.

O texto do qual faço referência de Walter Benjamin chama-se Teses sobre o Conceito de História, ele pode ser encontrado na obra Benjamin o anjo da historia, publicado pela editora autentica.

A citação que esta no começo texto também faz referência ao texto de Walter Benjamin citado a cima.

Este textos faz parte de um longo processo de pesquisa que desenvolvo a algum tempo, todas as suas reflexões encontram-se referenciadas por diversos autores, não pretendo anexa-las a esta publicação, mas posso envia-las aos que demostrarem interesse.

--

--