Ler Quarto de Despejo dói

Juliana Viegas
3 min readJul 23, 2023

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Caso ainda não tenha lido o livro, deixo o aviso de que posso antecipar alguma informação.

Carolina Maria de Jesus e sua filha, Vera Eunice

A leitura de Quarto de Despejo: Diário de uma favelada dói. Carolina Maria de Jesus relata em seu livro o dia a dia da favela e sua constante luta atrás de dinheiro para alimentar os três filhos com seu trabalho como catadora de papel. Mulher, negra, pobre, solteira e mãe, acompanhamos a rotina invariável de Carolina fugindo da fome e, algumas vezes, perdendo para essa rival tão cruel. Com tantos nuances e sem medo de mostrar quem é, vemos em Carolina uma pessoa sóbria, que entende de política, mas também é permeada de preconceitos. Sentimos a garra de uma mãe que precisa criar seus filhos no meio de tanta injustiça social.

A edição que li foi a edição comemorativa (1960–2020) da Editora Ática. Nela, temos uma parte intitulada “Fortuna Crítica” com artigos sobre Quarto de Despejo ao longo dos anos. Lemos que após a publicação do livro, Carolina reviu alguns preconceitos, passando inclusive a representar os negros eticamente.

Em contraponto ao tema constante que é a fome, percebemos Carolina escapando para a leitura, para o mundo dos livros. Vemos ela sonhar em mudar de vida através da publicação de seu livro. Percebemos ela ameaçando expor seus vizinhos favelados e o receio de alguns deles em relação a isso. É narrada também a oposição ao livro, de seus vizinhos que acreditavam que o lugar de escritora não poderia pertencer a Carolina, pobre e favelada. Escrever, para ela, foi mais do que um ato de resistência, era um ato de sobrevivência. Era uma fuga.

A estranheza a Carolina como leitora e escritora é presente tanto em seu diário, prévio a publicação, quanto nos artigos da “Fotuna Crítica”. Gostaria de destacar Carolina Maria de Jesus: Emblema do Silêncio, de José Carlos Sebe Bom Meihy. Esse texto destaca os silêncios, o apagamento da memória e o “esquecimento” de Quarto de Despejo e da própria autora por diversos circulos sociais (e por que não econômicos?), mesmo esse sendo o texto brasileiro mais publicado de todos os tempos, vendido mais de 1 milhão de cópias ao redor do mundo e traduzido para 13 idiomas. O artigo também destaca que a publicação só foi possível pelo momento vivido no Brasil naqueles anos: nascimento da democracia e contracultura.

Além do impacto trazido pelo próprio diário, dói saber que a mobilidade social trazida pelo livro para Carolina e sua família durou pouco. É essencial não deixarmos que Carolina Maria de Jesus seja (mais) esquecida. Dói mais ainda saber que a situação da fome no país, que já teve dias “menos piores”, declinou novamente na pandemia e no desgoverno em que vivemos naqueles dias. E segue sendo preocupante para nós, mas nem sempre (ou quase nunca) para os políticos responsáveis por destinar verbas para o combate a fome e para programas sociais que possam melhorar as vidas das famílias em situação de vulnerabilidade, seja nas favelas ou nas ruas.

Quarto de Despejo não é apenas um livro para ser lido, mas é um livro que sentimos em todo o nosso corpo.

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Juliana Viegas

Escrevo sobre Design, Comunicação Digital, Literatura e Tecnologia.