De antiquado a meme: a trajetória digital de Bolsonaro

Ju Utsch
17 min readOct 26, 2018

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Como chegamos até aqui?

1 — Bolso quem?

Pouco encontraria sobre Jair Messias Bolsonaro quem se aventurasse a pesquisar pela trajetória do político na Internet há dez anos atrás. Além de colunas de bastidores políticos em tom irônico, ou entrevistas explorando sua personalidade peculiar em busca de aspas escandalosas, não havia muito a ser explorado. Não porque o presidenciável, hoje fenômeno das redes, fosse, à época, novato na política; Bolsonaro acumula quase 30 anos de mandatos públicos, nos quais repete à exaustão mais ou menos as mesmas frases. Foram breves dois anos como vereador do Rio de Janeiro, eleito com pouco mais de 11 mil votos, em 1988; dois anos depois, viria a se tornar deputado federal, cargo de onde não mais sairia nas eleições seguintes. Três mandatos depois, em 2002, era o 21º candidato mais votado no pleito de deputado federal. Quatro anos depois, avançou sete posições e já despontava o 14º lugar. Nas eleições seguintes, em 2010, galgou mais três posições: 120.646 votos constaram. Mas foi em 2014 que Jair Bolsonaro multiplicou em quase quatro vezes seus votos, conquistando o primeiro lugar no pleito à Câmara.

Daí para frente, Bolsonaro alça uma popularidade (aparentemente repentina) anteriormente nunca vista pelo candidato (que contava basicamente com os nichos militares como frente de propostas), lançando sua astronômica candidatura à Presidência da República. Em um movimento decisivo, passou a ser muito mais do que um personagem pitoresco/folclórico na fauna legislativa, que outrora reivindicava melhores condições para funcionários das Forças Armadas e similares. Sem papas na língua, a cada declaração colecionou repúdios, processos e fãs; os fãs foram tantos que, o que parecia impensável há tempos atrás, aconteceu. O capitão conseguiu a pré-candidatura à presidência da república trocando o partido onde permaneceu por décadas (ironicamente chamado Partido Progressista) pelo novato PSL, e se encaminha ao segundo turno como favorito.

Complexo, como todo fenômeno político, Bolsonaro parece emergir do nada; mas deixa pistas de como chegou até aqui.

2 — De retrô a meme

O político contabilizava, em Julho deste ano, mais de 14,3 milhões de menções no buscador Google, o que já era feito notável. Ao longo da campanha presidencial, o número multiplicou-se e chegou a quase 66 milhões de resultados. Bolsonaro passou, em poucos anos, de uma figura retrô a um meme, compartilhado à exaustão por aliados e detratores, onipresente na Internet. Mas, por quê nesse momento, e não antes? É o resultado de uma intrincada conjunção de fatores.

Se o candidato hoje conta com uma gigantesca rede digital e levanta suspeitas da utilização de robôs disparadores (que teriam sido pagos por empresários, segundo apuração da Folha), o início de sua trajetória digital deixa a entender que a ascensão desse império foi orgânica e possibilitada, ao menos em parte, pela mídia tradicional.

Bombando na Internet — parte um

Utilizando ferramenta de análise do Google, é possível saber a frequência de pesquisas por um assunto ao longo do tempo. No caso de Bolsonaro, o ano de 2014 marca uma solidez nas pesquisas por seu nome, marcando seu lugar ativo como tendência. Mas nem sempre o candidato fora um assunto tão procurado. Em meio a períodos meio apagados nas redes, Bolsonaro teve dois picos significativos de buscas.

Interesse por Bolsonaro no Google, de 2004 a Julho de 2018.

O primeiro pico de buscas contendo seu nome diz respeito ao episódio envolvendo a também deputada, Maria do Rosário (PT-RS), que rendeu um processo judicial movido pela parlamentar. Os deputados discutiram enquanto gravavam uma entrevista para a RedeTV. Bolsonaro a chamou de vagabunda na ocasião, e ao rememorar o episódio em entrevista posterior, acusou-a de chamá-lo de estuprador; o presidenciável então afirmou que não a estupraria porque ela não merecia. Maria do Rosário o processou e levou a causa nas primeiras instâncias. Se tivesse sido condenado em todas, Bolsonaro teria tornado-se inelegível pela lei da Ficha Limpa. É improvável que as novas sessões ocorram antes do pleito presidencial. Para garantir, testemunhas de defesa teriam sido trocadas meses atrás, o que teria atrasado o processo. A deputada entrou com um recurso, no qual protesta: as tais testemunhas sequer teriam presenciado a agressão.

Até hoje, essa cena é recontada e fabulada em notícias falsas que circulam pelas redes, onde Maria do Rosário teria sido repreendida por Bolsonaro por uma suposta defesa do acusado do brutal assassinato de Liana Friedenbach. A deputada recorrentemente vem a público para negar a afirmação, que até hoje percorre a Internet. Uma simples busca pelo nome de Maria do Rosário faz jorrar uma série de memes com supostas declarações e montagens com a parlamentar.

“Meus filhos são bem criados”, para o CQC (Rede Bandeirantes) em 2011.

Bombando na Internet — parte dois

O segundo pico de popularidade de Bolsonaro no buscador diz respeito à entrevista concedida em 2011 ao programa Custe o Que Custar (CQC), do canal Band, que entrevistava políticos em viés humorístico. Entre uma série de declarações e respostas polêmicas, Bolsonaro responde à cantora Preta Gil que não corria o risco de ter uma nora negra, já que seus filhos seriam “bem criados”. Ele alega não ter escutado bem a pergunta, argumentando ter compreendido “gay”, (ainda assim, relacionando a orientação sexual com promiscuidade). O caso foi arquivado em 2015 pelo STF. Segundo o ministro Barroso, além da suposta edição do material, Bolsonaro gozaria no ato de sua imunidade parlamentar, uma vez que concedeu a entrevista na condição de deputado.

Se por um lado, os episódios causaram revolta e mobilização contrária ao deputado, também lhe angariaram um séquito de seguidores pela sua pecha de anti-político e politicamente incorreto. O resultado: quadruplicou o número de votos em relação à eleição anterior e sagrou-se como deputado federal mais votado do Rio de Janeiro, com um dos votos considerados mais baratos: 0,89 centavos por eleitor. Os votos só não cresceram menos do que o patrimônio, que segundo levantamento do jornal O Globo continha imóveis não declarados à justiça eleitoral avaliados 2,6 milhões de reais. Apesar da pouca eficiência como deputado, tendo aprovados, em 28 anos, dois projetos de 630, a carreira política do capitão vai de vento em popa.

3 — Canal direto

Com quase oito milhões de seguidores em sua fanpage às vésperas do segundo turno, Jair Messias Bolsonaro é, com larga vantagem, o presidenciável do Brasil mais popular na rede social Facebook. Até o mês de Julho, contava com 5,6 milhões de likes (Luiz Inácio Lula da Silva, à época cogitado para o pleito presidencial, constava em segundo, em considerável diferença: 3,5 milhões de usuários seguiam seu perfil).

O pontapé da popularidade talvez se explique pela demografia do público que desde o começo era favorável ao candidato, e pelo momento de criação da página no Facebook; o mais popular entre os possíveis presidentes nas classes mais abastadas, Jair Messias Bolsonaro é apoiado por um público internauta, íntimo da Internet. Em pesquisa realizada pelo instituto Datafolha, era o candidato número um da população com renda a partir de 10 salários mínimos. Segundo pesquisa da CGI-Br, 97% desse público está online. A página oficial no Facebook, por sua vez, foi criada durante as jornadas de Junho de 2013, momento de crise institucional da política brasileira; em um bom timing, Bolsonaro conseguiu capitalizar com as pautas de insatisfação popular, o que mais tarde o tornou figura importante entre os verde-amarelos, nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff.

Apesar do contexto favorável à sua militância digital, Bolsonaro não deixa por menos; é um ativo utilizador do Facebook. Seu perfil cresceu e se aprimorou nas postagens nos últimos anos em que vem utilizando a plataforma. Mesmo antes da campanha, o candidato tinha dobrado a sua utilização do Facebook.

Número de postagens diárias no Facebook, de Junho de 2013 a Julho de 2018.

Foi no decisivo ano de 2014 que a página de Bolsonaro no Facebook decolou, amealhando milhares de comentários por postagem. Entre Junho de 2014 e Junho de 2018, foram 2.4 mil postagens, que contam com 5,6 milhões de comentários, em uma média de 2,2 mil por dia.

Quantidade de comentários no Facebook por dia, de 2013 a Julho de 2018.

Entre tantas postagens repercutidas, estão entre as mais comentadas os “lives”, onde o candidato interage ao vivo com os fãs. Bolsonaro, aliás, é fã de postagens em formato de vídeo, mais “viralizáveis”. Baixados, são rapidamente compartilhados em outras plataformas, como o Whatsapp, onde circulam livremente.

4 — A “nova política”

As Jornadas de Junho de 2013 revelaram uma crise política profunda, expressada por uma descrença generalizada na política institucional. Nos últimos anos, a percepção da corrupção como o maior problema nacional reforçou uma profunda rejeição à classe política.

Embora esteja há décadas no funcionalismo público, uma das maiores habilidades de Jair Bolsonaro é colocar-se como algo novo. Bolsonaro vem dizendo as mesmas coisas há muito tempo, de maneira praticamente intocada, o que o torna não somente previsível, mas também repetido, por quase trinta anos. Apesar do tempo estendido, certamente, podemos dizê-lo um outsider em relação à política mainstream. Para Levitsky e Ziblatt, autores de Como as democracias morrem, são justamente nos momentos de crise que se abrem as janelas para políticos inusuais. Bolsonaro, embora não tenha nada de novo, permaneceu como figura secundária e isolada na câmara, tendo como base eleitoral o funcionalismo militar.

A tal novidade trazida pelo capitão reformado é, na verdade, o timing concedido pelo megafone que amplificou suas desrespeitosas declarações em rede nacional: a repetição do mesmo discurso em um momento de ganho de direitos a grupos historicamente oprimidos, como gays, negros, mulheres e LGBTs, quando seu discurso não é mais aceitável por amplas parcelas da sociedade. De maneira análoga, o ganho de direitos civis e o ressentimento branco americano explicam o fenômeno Trump, figura clássica do empresariado americano que surge subitamente como candidato ante a um momento de profunda crise e polarização nos EUA. Esse outsider solidificou a implementação do Tea Party, a radicalização do partido republicano ou a chamada neodireita, antes impensável até mesmo para os republicanos pelos seus traços autoritários expressos livremente.

Para Levitsky e Ziblatt, há alguns critérios que definem as tendências autoritárias de um político. Um deles, utilizado à revelia tanto por Donald Trump quanto por Jair Bolsonaro, é o questionamento do rito democrático. Como outsider, Bolsonaro também afirma que esse rito estaria supostamente fraudado ou corrompido, colocando em xeque o processo eleitoral, e por consequência, ganhando por tabela a perspectiva de confrontá-lo como ilegítimo. Essa resistência, parte de um projeto maior de esvaziamento democrático, reforça-lhe a pecha de anti-político, tornando-o diferente da classe política aos olhos do eleitorado.

Esse perigoso movimento de deslegitimação do processo eleitoral certamente não foi inventado por Bolsonaro, e, nesta etapa, sequer foi iniciado por ele. Logo após a vitória de Dilma Rousseff, começa o burburinho gerado pelo pedido de recontagem de votos, capitaneado pelo PSDB. De consequências mais profundas, culmina em um processo altamente duvidoso de impeachment, passando uma das mensagens mais possivelmente destrutivas mensagens à sociedade: a de que triunfo do adversário é ilegítimo, e que, por tanto, é, por quaisquer motivos, revogável.

5 — Presidente

Entre o anti-político e tornar-se cotado a presidente, foi um pulo. Em 2014, envolvido nos atos capitaneados por MBL, Vem para a Rua e Revoltados Online, Bolsonaro logo começou a conquistar a simpatia da classe média que foi às ruas de verde e amarelo pedir a saída do PT do poder, a princípio questionando a legitimidade eleitoral; por fim, acusando a presidenta Dilma Rousseff de crime de responsabilidade fiscal. 2015 é quando o discurso antipetista chega em um ponto crítico, com a impopularidade do mandato crescendo enquanto os números da economia permanecem a cair. É quando começa-se a vislumbrar Bolsonaro como uma possível figura para a corrida presidencial.

Interesse por “corrupção pt” no Google, ao longo do tempo. O pico é de Outubro de 2014.

Ainda em Setembro de 2014, os termos Bolsonaro 2018 começam a ser pesquisados no Google, indicando um crescimento no interesse da possibilidade de sua candidatura. Mas é em 2016 que ganham força total, logo após o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff.

Interesse por Bolsonaro 2018 no Google.

A partir da segunda metade de 2014, a pré candidatura ganha força e passa a ser demandada pela base de fãs do deputado no Facebook. O gráfico abaixo mostra o crescimento da expressão “Bolsonaro 2018” nos comentários de sua fanpage.

Trends de 2018 e presidente juntos: os termos se confundem, constantemente juntos.

6 — “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”

Mas, sobre o quê fala Bolsonaro? Em torno de quê giram suas bem sucedidas interações online? Uma série de palavras-chave aparecem em suas falas e bordões, involucradas em si mesmas. Já há um tempo, Bolsonaro adotou o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, indicando um posicionamento nacionalista e religioso como premissa. É no público evangélico que Bolsonaro possui a maior vantagem em relação a Fernando Haddad; entre estes, chega a ter o dobro do número de votos, apesar de ter se batizado como evangélico às pressas em 2016 (simultaneamente ao golpe jurídico parlamentar que destituiu Dilma Rousseff).

O lema (bizarramente parecido com o Deutschland Uber Alles nazista), junto ao nome e sobrenome do autor, são presença constante nas conversas com seus interlocutores, registrados nos comentários de sua página. Através de sua frase-chave, o candidato dá pistas de como se configuram suas relações digitais; parte significativa dos comentários deixados em sua página repetem o seu nome, associados de termos como “brasil”, “deus”, “país”, “povo” e “família”. Os termos mais populares parecem demonstrar apoio ao candidato, e vem configurando um crescimento. Outros temas, ou mesmo propostas para o seu mandato parlamentar ou eventual campanha, se eclipsavam em meio aos bordões.

Nuvem gerada a partir das palavras mais usadas nos comentários de sua fanpage, de 2013 a Julho de 2018.

É natural que o termo mais recorrente em comentários de uma página presidencial seja justamente o nome do candidato em questão. Não seria muito diferente nas páginas de outros candidatos. Mas podemos observar que, retirado o nome de Bolsonaro, a maioria dos comentários de sua página, desde 2013, fazem menção à sua perspectiva de se tornar candidato:

Conteúdo dos comentários, removido o nome de Bolsonaro. Alusões à presidência.

Se removemos as principais palavras que não dizem muito além da intenção de que seja presidente, podemos compreender um pouco em torno de que eixos giram as conversas nas caixas de comentários de sua página, além, claro, do reforço de sua campanha.

Sem palavras como: presidente, brasil, 2018 (de Julho de 2013 a Julho de 2018, comentários)

Quando removemos as menções à presidência, ficam mais evidentes não só o reforço dos valores propagados pelo deputado (deus, país, povo, “o cara”, mito, família e todos aparecem em destaque) como também visitamos um grande antagonismo: lula, esquerda e pt são alguns dos termos mais recorrentes nos comentários de sua página. A beligerância dá o tom: “merda” aparece mais vezes do que “educação”, por exemplo.

Pudemos ter uma idéia sobre o que falam os seus seguidores. Mas sobre o quê Bolsonaro fala? Apesar de usar e abusar do formato vídeo, deixando pouco espaço para a escrita, a página de Bolsonaro também possui seus tópicos norteadores nos posts que o ligam a seu público; porém trazem suas particularidades.

Nuvem de palavras gerada a partir das postagens de Bolsonaro, de 2013 a Julho de 2018.

É natural, também, que o nome do candidato seja o assunto mais repetido em suas postagens, como provavelmente o seria na página de outro candidato qualquer.

Ao removermos o próprio nome do candidato e a palavra brasil da lista de termos, podemos entender melhor em torno de quê giram as suas postagens.

Nuvem, removidos o nome de Bolsonaro e a palavra Brasil.

O parlamentar fala significativamente menos em ‘Deus’ ou ‘família’ do que seu público. O destaque de tema fica evidente. Além do Partido dos Trabalhadores, menções a Lula e Dilma, à esquerda e bandidos estão entre os termos mais presentes nas postagens do candidato. É natural que assim seja, uma vez que ao longo do tempo, o antipetismo foi a sua principal estratégia de crescimento, e deu certo.

Bolsonaro utilizou o antipetismo como estratégia fundante, e foi em 2014, o ano em que se acirra a polarização política, que sua figura finalmente decola na Internet, concatenando o discurso conservador com uma crítica ferrenha ao projeto petista. Foi em torno do antipetismo que se deram, em grande parte, os estímulos de suas interações virtuais. Essa estratégia é velha conhecida da política, não só brasileira mas internacional. Levitsky e Ziblatt citam a estratégia macarthista, da criação de um inimigo interno, dito comunista, para a unificação de uma estratégia de oposição. Enquanto textos apócrifos circulam no Whatsapp acusando a campanha petista de incitar uma ditadura bolivariana ou sexualizar crianças, a campanha de Jair Bolsonaro reitera explicitamente o desejo de criminalização dos movimentos sociais. Sua última fala, em 21 de Outubro, em telão na paulista, evidencia esse velho artifício de apontar os “vermelhos” como inimigo a ser eliminado. Para os cientistas políticos, este é um traço autoritário; uma vez que o Partido dos Trabalhadores, (que sempre participou do jogo democrático respeitando as normas, sendo reconhecido por adversários por tal), é colocado em cheque não como adversário político, mas como inimigo nacional, a democracia sai enfraquecida, abrindo frestas para que autocracias se estabeleçam e concentrem poder.

7. Você sai da caserna, mas ela não sai de você

“Em memória de Carlos Brilhante Ustra!” (foto: Alan Marques)

O militarismo foi uma de suas frentes políticas ao longo de todo esse tempo, assim como também uma de suas frentes de campanha. Esse discurso não comparece sem tensionamentos. Os militares sempre compuseram a principal (e primeira) base de seu eleitorado. Não faltam elogios às Forças Armadas em seu perfil, bem como reproduções do orgulho militar. O termo “militar” também consta como um dos mais frequentes em suas postagens. Seu candidato a vice-presidente, o General Mourão, completa a tônica da chapa, recheando a campanha de declarações, no mínimo, perigosas.

O militarismo foi quem colocou Bolsonaro na política, afinal de contas, e é em torno da caserna que giraram suas propostas e supostas políticas de segurança pública. Com tom mais moderado, tem sido menos explícito nas apologias à ditadura militar, embora tenha homenageado Brilhante Ustra durante o ato de declaração do voto ao Impeachment de Dilma Rousseff. A ex-presidenta relatou já ter sido vítima da tortura de Ustra.

Recentemente, a campanha de Bolsonaro solicitou ao TSE que retirasse do ar a propaganda eleitoral petista que focava na violência da tortura militar. A propaganda continha trecho de um filme onde era encenado o pau-de-arara. O pedido foi acatado, e a propaganda foi retirada do ar. Em coletiva de imprensa no último domingo, dia 21, o TSE reafirma que o processo eleitoral transcorre em regime de normalidade, a despeito das declarações acerca de uma tomada do judiciário, enquanto o candidato disse “repreender” as declarações do filho acerca de uma possível tomada do judiciário.

8. Jair Paz e Amor?

Mas se para arrebatar uma legião de fãs é preciso se apegar ao conservadorismo, para vencer as eleições em um país polarizado como o Brasil é preciso ceder.

Para arrecadar os votos mais difusos e indecisos, Bolsonaro adota uma estratégia dupla. Se, por um lado, rejeita a pecha de homofóbico, machista e racista, por outro continua a oferecer declarações preconceituosas, incitando a violência de seu público. A estapafúrdia polêmica falsa do kit gay, apelido dado à cartilha anti-homofobia sugerida pela UNESCO e jamais distribuída, mostra o quão emperrado ainda está o debate dos direitos humanos no Brasil; a defesa da não-violência contra os LGBTs tornou-se uma verdadeira moeda de troca entre acusações e defesas.

Interesse pelos termos kit gay entre 2017 e 2018, no Google.

Mas negar reiteradamente sua idoneidade não arremata, por si, votos deste público. Para sustentar sua suposta não monstruosidade, procura aliados de grupos historicamente oprimidos para ecoar seu discurso, fornecendo identificação e alívio à culpa de votar em seu discurso (nem sempre funciona, ou mesmo é verdade — vide o ridículo caso Shutterstock). A estratégia lembra a de Donald Trump, que sempre recebeu elogios de Jair Bolsonaro em sua página do Facebook. Para se desvincular da fama de preconceituoso, o magnata americano alavancou aparições com representantes de minorias políticas. Os chamados “tokens” são pessoas pertencentes a grupos minorizados que reforçam valores contra os direitos civis de seu próprio grupo, reforçando a exceção exemplo.

A jogada de marketing de Trump parece não ter colado para atribuir-lhe a pecha de tolerante, em um país igualmente polarizado pela violência racial. Pelo contrário; movimentos extremistas voltaram a dar as caras abertamente nos Estados Unidos e pesquisadores da campanha Human Rights Campaign relatam um aumento significativo em bullying envolvendo expressões de ódio a grupos após o começo do mandato de Donald Trump.

Aparentemente, um país comandado por um intolerante parece abrir brechas de reconhecimento entre simpatizantes da intolerância, reforçando uma sensação de segurança ao ser representado por alguém que compartilha dos mesmos valores, segundo constataram os pesquisadores. Quase como uma profecia, vimos igualmente uma explosão violenta tomasse as ruas nas últimas semanas, marcando um período sem precedentes desde a abertura democrática.

Enquanto sustenta a não responsabilidade ante as agressões que pipocam pelo país contra seus opositores, Jair Bolsonaro permanece alimentando-as à distância. No último domingo, dia 21, falou em alto e bom som que o Brasil conhecerá uma limpeza nunca antes vista em sua história. Ante à banalização histórica do regime militar no Brasil, a cartilha anticomunista disparada anonimamente em massa pelo Whatsapp e o profuso terreno de banalização de tudo o que é político ou democrático, há motivos para acreditar que não são somente os petistas que possuem algo a temer.

9 — Contra tudo o que está aí

Analisar o discurso e a trajetória recente de Bolsonaro é concluir que não há propostas, mas sim anti-propostas. Mandatos de intolerância parecem, antes de surgir em torno de propostas comuns, ao contrário, surgir em torno de ódios comuns. Foi, essencialmente, surfando em uma profunda crise econômica e política que Bolsonaro capitalizou em cima do ódio. Bolsonaro é o eterno antagonista, que pulveriza-se na ausência de um inimigo unificante.

Mas, por que odiamos? Falhamos como democracia?

Em seu Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt desnuda a alma simplória de Adolf Eichmann, um oficial mediano e medíocre do exército nazista. Surpreende-se, ao acompanhar seu julgamento em Israel, com sua figura, tanto pouco inteligente quanto ordinária. Ao esperar de um nazista que se pareça um monstro, esperamos demais dele; um totalitário, é, antes de tudo, um homem comum. Abraçar o extermínio de qualquer grupo, a perda de direitos democráticos ou a desmoralização do fazer político não transfigura qualquer homem simples, mas certamente contribui para banalizar o mal enquanto elemento estruturante de uma sociedade.

Quem compartilha o mal enquanto projeto não o faz individualmente, mas enquanto coletividade, o que não exime responsabilidades individuais. Banalizá-lo — o mal em suas formas diversas: tortura, violência, racismo, misoginia — em tempos de aprofundamento democrático, enquanto encontra-se resistência (se não estrutural, ao menos política) ganha ares de transgressão. Jeff Flakes, político republicano, ao falar da guinada à extrema direita de seu partido, define o ressentimento de uma classe média americana em uma sociedade profundamente polarizada como uma “adrenalina branca, xenófoba, masculina”. Neste hemisfério, nossos problemas estão há séculos para explodir: uma trajetória de profundo esquecimento do nosso mal banalizado, como na abolição inconclusa ou na inquisição resquicial. Achille Mbembe relembra Arendt de que a colonização foi um processo tão brutal quanto o holocausto. E cá estamos, filhos desse tempo. O autoritarismo à brasileira, ao varrer essas questões para debaixo do tapete, nega uma ferramenta histórica, mas também cria um senso de eterno. Faz parecer que a ordem, que sempre foi esta, de repente mudou.

Desacostumados ao fazer político, não sabemos coletivamente o que fazer com o flerte que ronda esse perigo.

A falta de uma linguagem da liberdade ou de uma alfabetização cidadã faz com que, enquanto sociedade, percamos o léxico para dizer o quanto somos prisioneiros, como afirma Slavoj Žižek. Assim, nos confundimos, e buscamos soluções drásticas no dicionário de palavras visitadas, gastas. De uma profunda falta de vocabulário e de imaginação é que nascem as viagens ao que já é conhecido, quando buscamos soluções (que não funcionaram) simplesmente por não saber fazer diferente.

Entre os muitos apelidos dados por seu séquito de fãs, a alcunha de “mito” de Jair Bolsonaro é de longe o termo mais popular. A despeito de sua religiosidade cristã, o apelido pegou, com quase duas milhões de menções; uma a cada 2,5 comentários. A definição de “mito”, segundo o dicionário Michaelis, trata de alegorias ficcionais vindas da antiguidade, enigmáticas, que simplificam o mundo e atravessam gerações. Entre alegorias fantasiosas sobre heróis, deuses e semi-deuses, o nome parece adequado. Há nele uma atemporalidade arquetípica.

O futuro, afinal, nunca se pareceu tanto com o passado.

*Esta reportagem faz parte do projeto de conclusão de curso de Comunicação Social pela UFMG.

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