[Afrofuturismo] Ancestralidade e protagonismo de rosto africano
Viver a ancestralidade é viver o futuro
Este artigo tem por objetivo expandir ainda mais as percepções e sugerir ainda mais definições do que viria a ser o “Afrofuturismo”. É o meu 5º artigo neste sentido. No entanto, preciso dizer que, para mim, o que representa meu melhor trabalho sobre Afrofuturismo é o meu romance afrofuturista chamado “O Caçador Cibernético da Rua Treze” — que na verdade é apenas o primeiro de uma coleção.
De qualquer forma, iremos aqui compartilhar mais algumas ideias na forma de três tópicos; são longos apontamentos, e, ainda assim, escritos de forma bastante resumida, dada a complexidade dos assuntos pesquisados.
Como o assunto está longe de se esgotar, logos mais e mais artigos sobre o tema virão, bem como os romances.
Bom, vamos lá!
1. Afrofuturismo: (mais) definições
“Quando um tolo não consegue escurecer o marfim, ele tenta clarear o ébano”.
Em poucas palavras: o que seria o Afrofuturismo? Bom. No meu primeiro artigo, escrevi que esse movimento de recriar o passado, transformar o presente e projetar um novo futuro através da nossa própria ótica, para mim, é a própria definição de Afrofuturismo.
Já no meu terceiro artigo, eu disse que Afrofuturismo é mudar o futuro para mudar o passado que lhe foi imposto. Afrofuturismo é traçar o seu próprio caminho como pessoa preta no mundo por meio da sua arte, por meio da sua escrita. Afrofuturismo é africanizar o seu próprio caminho daqui por diante.
Podemos sempre expandir esses conceitos.
Antes de mais nada, é preciso dizer que o Afrofuturismo prima necessariamente pelo protagonismo não apenas de personagens negros e negras, mas também o de autores e autoras negros. É um movimento cultural concebido e protagonizado por pessoas negras, tanto na esfera ficcional quanto na esfera real. Sem compreender isso, ao meu ver, não é possível seguir adiante.
O Afrofuturismo surge como uma nova possibilidade de narrativa para as pessoas negras, já que o (euro)futurismo não nos contempla. Os paradigmas ocidentais de ficção científica não foram concebidos para comportar nem pessoas de rosto africano e tampouco seu imaginário ancestral; ao contrário, tais paradigmas ocidentais tem por objetivo seguir com o embranquecimento espiritual e psicológico dos descendentes africanos. Ao ter como uma de suas metas o resgate das tradições e ciências africanas, o Afrofuturismo surge como uma possibilidade de cura para o nosso trauma histórico de escravidão, exclusão, silenciamento. É uma oportunidade de projetarmos, por meio da ficção, a nossa religação com a nossa ancestralidade, nos reapropriando dos símbolos da ficção e restaurando-os à sua originalidade africana. O Afrofuturismo, por meio da Afrocentricidade, nos convida a entender que os povos africanos é que são os pioneiros da escrita, da ciência, da filosofia e das artes, e não o povo pálido do mármore, como é intensivamente ensinado nas escolas e faculdades. Dessa forma, o Afrofuturismo nos guia para criar um novo futuro com as nossas próprias mãos. É tranquilo então afirmar que o Afrofuturismo ultrapassa a esfera de mero gênero cultural e acaba influenciando a vida real. Pois, acima de tudo, Afrofuturismo é a liberdade para a pessoa de rosto africano ser e expressar o que quiser.
2. Religação com a ancestralidade africana
“Se você esquecer, não é proibido voltar atrás e reconstituir”.
Como já foi dito, o Afrofuturismo tem como uma de suas pretensões mesclar o paradigma já estabelecido da ficção científica com as múltiplas cosmologias que nasceram no continente africano. Só que é muito mais do que uma simples mistura entre o que é considerado “científico” com o que é considerado “exótico”. Não. Primeiramente, é preciso lembrar o que esquecemos. O processo de colonização, escravização e posterior embranquecimento tem por objetivo fazer com o que o descendente africano se esqueça de suas origens, suas raízes. Por isso, é preciso se lembrar, é preciso reconstituir: tudo o que conhecemos hoje por ciência, medicina, filosofia, arquitetura, engenharia e arte civilizada surgiram primeiro no Vale do Nilo, em civilizações criadas por negros africanos. Depois é que todas essas coisas das quais tanto prezamos se espalharam pelo resto do mundo. É por isso que é seguro dizer que o Afrofuturismo não se propõe a uma mistura do que seria intrinsecamente europeu (a ciência) com o que seria intrinsecamente africano (o espírito) e sim uma compreensão do que sempre foi africano em sua origem (a ciência) e juntar novamente com a sua essência (o espírito) . Pois saiba também que essa divisão entre “ciência” e “espírito” é uma deturpação europeia.
Religar-se com a ancestralidade significa, para o descendente africano, religar-se com a concepção africana do que significa ser um ser humano. Uma vez que um dos maiores males do paradigma ocidental é negar a humanidade dos africanos e seus descendentes, a tentativa de se relembrar do seu eu ancestral por meio das religiões e cultos afro-brasileiros, tais como o Candomblé, significa a tentativa de se reaproximar dos sistemas científicos e espirituais dos povos africanos originais. A noção africana de espiritualidade nos ensina que a complexidade humana, tanto material como imaterial, é um universo interno todo próprio, habitado por divindades e conceitos metafísicos sofisticados — os quais foram apagados e/ou redefinidos durante o processo de escravização e embranquecimento.
Pois saiba que os imaginários africanos são sistemas bastante complexos de filosofias, simbologias e metáforas que representam a jornada humana pela vida. Enquanto que no sistema ocidental as divindades são compreendidas como fatos e narrativas históricas, que inclusive conflitam com a ciência, o sistema mítico africano compreende as divindades como metáforas e narrativas simbólicas, que complementam e nos auxiliam na ciência e no dia a dia real vivido por todos nós. Ao entendermos as divindades como personificações das forças básicas da natureza e de nós mesmos, entendemos que simbolicamente os sentimentos, as emoções, os ciclos, as virtudes e até mesmo os defeitos, tudo que nos motiva e nos move, são em si as divindades que existem dentro de todos nós.
Exemplo: Eu, Kabral, sou um homem iniciado no Candomblé de tradição Ketu como filho do Grande Rei Caçador Oxóssi (Ọ̀ṣọ́ọ̀sì). Entendendo que as divindades africanas simbolizam atributos encontrados na natureza e em nós mesmos, então devemos entender Ọ̀ṣọ́ọ̀sì como a divindade que simboliza a cultura, o conhecimento, a coragem e o dinamismo ansiados pelos seres humanos. Ọ̀ṣọ́ọ̀sì é a expansão dos limites impostos, é a ousadia de ir além, de buscar algo mais. Tradicionalmente, os caçadores africanos são agentes da mudança; ao se jogarem no mundo selvagem do desconhecido, eles desbravam caminhos antes fechados e retornam para a sua comunidade com os frutos de novos conhecimentos e novas descobertas. Devemos, portanto, entender a caça como metáfora para a busca e transmissão de artes e conhecimentos. Eu entendo que o meu pai Ọ̀ṣọ́ọ̀sì está presente em todas as manifestações artísticas, seja na composição de uma música, na declamação de um poema, na pintura de um quadro, nos passos de uma dança, na escrita de um romance. Eu entendo que os que se submetem aos rituais iniciatórios do Rei Caçador Ọ̀ṣọ́ọ̀sì despertam em si qualidades poderosas que sempre existiram dentro de si: a coragem, o otimismo, a inventividade e a criatividade para conceber novos mundos e novas realidades por meio da transmissão de conhecimento e por meio da arte.
3. Protagonismo de rosto africano
“Sou porque somos, somos porque sou”.
Escolhi abrir minha nova coleção de romances afrofuturistas, neste “O Caçador Cibernético da Rua 13”, contando a história e trajetória de um homem negro chamado João Arolê; assim escolhi porque… eu sou um homem negro, ora.
Considerando que a palavra “diversidade” hoje se encontra em diversos textos e debates, inclusive na publicidade de larga escala, a fim de atrair o público ávido por esse debate, vamos declarar o seguinte: é comprovado que a diversidade de pessoas negras é a maior que existe no mundo — porque as pessoas de rosto africano existem a mais tempo no mundo que qualquer outro povo humano, e portanto criou mais ramificações e variações que qualquer outro grupo étnico-racial.
Vamos falar novamente: Afrofuturismo preza pelo protagonismo de personagens negros e negras e de autores negros e negras. Se não for assim, para mim, não faz sentido.
Ao meu ver, vai muito além da “representatividade” da qual tanto se discute hoje. Pois, como eu disse no meu segundo artigo, apesar de suas diferenças ideológicas e culturais, os europeus e seus descendentes como um todo perpetuam sua supremacia sobre o mundo, e o atual clamor por representatividade é, no máximo, uma boa intenção, que não contempla, nem de longe, os sistemais culturais, metafísicos, mitológicos, sociais e científicos criados pelos povos africanos.
Escolhi contar a trajetória de João Arolê, um homem preto, e, conscientemente ou não, acabei tratando de questões específicas de homens pretos, tais como: a solidão da homem escuro em seu silêncio imposto e autoimposto; as dores de uma masculinidade danificada e pouco compreendida; a dificuldade de falar, de se expressar, de se abrir — e por isso o livro está no formato de um narrador em terceira pessoa altamente descritivo, que na verdade pouco consegue penetrar no âmago do personagem Arolê; e, acima de tudo, escolhi contar a trajetória de um ser humano que cometeu atos gravíssimos, que sofre pesadelos com isso, que chegou a se mutilar por conta de seus erros passados, mas que, no final, de alguma forma dá a famosa volta por cima. Assim poderia ser descrita a história de João Arolê, o caçador de monstros; e assim escolhi porque a narrativa ficcional, o mito e a lenda originalmente, na perspectiva africana, possuem esse papel de simbolizar o heroísmo inerente a todos nós; de nos fazer entender que somos falhos porém capazes de superar nossas limitações; de representar a busca pela cura que todos nós de rosto africano precisamos.
A sabedoria tradicional africana nos ensina que não somos sozinhos; eu sou porque meus irmãos e irmãs são, e eles e elas são porque eu sou. Dessa forma, ao entender que a minha existência depende da dos outros e a existência dos outros depende da minha, devo entender também que ao ser violento com os outros estou sendo violento comigo mesmo.
O Afrofuturismo surge como uma alternativa de contar histórias que transcendem tanto a vitimização do ser africano quanto a negação de ser africano, ambas condições impostas pelo sistema ocidental de história única; por meio da Afrocentricidade e do Afrofuturismo, somos capazes de entender que essa história única é um embuste, que o mundo em si é composto de múltiplas histórias, múltiplos imaginários, múltiplas verdades; ao entender que descendemos de povos antigos, criadores de civilizações antigas, altamente complexas, científicas e espiritualizadas, somos capazes de conceder protagonismo a nós mesmos, pessoas de rosto africano, tanto no campo físico quanto no campo metafísico.
Vamos relembrar as 7 teses paradigmáticas de Cheikh Anta Diop, conforme eu explanei no meu segundo artigo, para servir como guia:
- A humanidade começou na África
- O Antigo Egito foi uma civilização negro-africana
- A origem dos povos da África — e do mundo — remonta ao vale do rio Nilo
- Houve dois berços do desenvolvimento humano: o berço do sul, africano, e o berço do norte, europeu, sendo o primeiro matriarcal, que primava pela liderança das mulheres, pela cooperação mútua, harmonia espiritual e solidariedade familiar, enquanto que no segundo, rigidamente patriarcal, primava a competitividade, a brutalidade e a inferiorização das mulheres
- A ciência, a medicina, a filosofia, a arquitetura, a engenharia e a arte civilizada do mundo surgiram primeiro no vale do Nilo
- Os reinos pré-coloniais da África desenvolveram sistemas de governo e formas de governo e de organização social altamente sofisticados
- Há uma unidade cultural entre toda a África Negra
Sempre é bom lembrar novamente, para que não haja enganos e interpretações errôneas: o Afrofuturismo, por também carregar elementos da Afrocentricidade, reconhece o mundo como multicultural, ou seja, múltiplas verdades, múltiplos caminhos. Não se prega aqui em momento algum, qualquer espécie de “supremacia ao contrário” nem tampouco supostas superioridades de algum povo sobre todos os demais. Afirmar que os povos africanos vieram primeiro e criaram tudo primeiro implica em reafirmar a nossa origem que nos é negada e não pregar qualquer tipo de suposta superioridade sobre todos os demais.
(Para ser sincero não é agradável postar esse tipo de lembre, porém…)
No final, é isso: ser um protagonista de rosto africano é se entender uma pessoa livre, se entender uma pessoa com ligações ancestrais, se entender uma heroína e/ou herói que, apesar de todas as questões e sistemas que buscam nos excluir, privar e apagar, ainda assim segue firme criando para si e para os nossos uma nova história.
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