[Afrofuturismo] O Herói com rosto africano

Fábio Kabral
19 min readMay 20, 2016

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O poder do mito africano na construção do caráter, o fazer ficcional que transcende a vitimização, a insuficiência da representatividade e a perspectiva africana como centro da criação

Raya by Mshindo9

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[Afrofuturismo] O futuro é negro — o passado e o presente também

Os debates e os interesses ao redor do Afrofuturismo tem crescido nos últimos tempos. Muito tem sido dito e escrito a respeito, e muito mais ainda está por vir. Visto hoje como “grande novidade” pelos ávidos por representatividade, o Afrofuturismo na verdade já existia antes mesmo de ser chamado de Afrofuturismo, e sempre existirá, uma vez que “é um desejo humano de querer moldar seu presente e seu futuro. É o desejo humano de abraçar os altos níveis de imaginação”, como bem diz Ytasha Womack, autora de Afrofuturism: The World of Black Sci-Fi and Fantasy Culture (2013).

Este artigo, assim como o artigo anterior, reflete a questão que me cabe: o fazer ficcional e o papel do mito na construção do nosso caráter. Pois eu não sou um teórico que objetiva esmiuçar o assunto por meio da análise crítica de trabalhos outros, eu sou aquele que pretende efetivamente trabalhar o tema por meio da criação literária, e por meio da criação literária pretendo expressar meus anseios pelas alturas da imaginação para o mundo.

Por sinal, todas as ilustrações deste artigo são do artista Mshindo I. Kuumba, cuja arte visual me causa tamanho impacto que me inspira aos mais altos níveis de criação e sonho na perspectiva africana.

Seguimos então para os quatro tópicos que pretendo trabalhar neste artigo:

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O poder do mito africano na construção do caráter

Tenho certeza absoluta de que todos se lembram dos seus desenhos animados de infância, aqueles que ficaram marcados bem no fundo das suas memórias. Talvez não se lembrem de tudo, de todos os detalhes e nomes, mas se lembram dos valores, dos ensinamentos, nas lições morais. E agora você, pessoa adulta, diga com sinceridade que é ou não é verdade que, naqueles momentos de grande dificuldade, grande estresse, expectativa, você se lembra, ainda que não admita nem para si mesmo, você se lembra daquele protagonista de desenho animado ou de livro juvenil, aquela pessoa fictícia que passou por um desafio extremado, carregado de sentimentos extremados, e então se levantou, motivado pela vontade de defender seus amigos e sua comunidade, e fez o que devia ser feito, e triunfou, a despeito de todos os obstáculos e perigos.

O triunfo desse herói e dessa heroína ficou gravado na sua alma. Pois o triunfo do herói não é sobre forças externas, e sim sobre as forças internas que nos impedem de seguir adiante; não é uma mera viagem a mundos fantásticos e distantes, e sim um mergulho dentro do âmago desafiador de cada um de nós. E é esse o papel do mito, conforme nos ensina Clyde W. Ford.

Professor e quiroprático afro-estadunidense, Ford nos atenta e nos direciona para a questão do Herói com rosto africano, em livro do mesmo nome, e que também nomeia este artigo. Segundo Ford, o herói com rosto africano é aquele que sobreviveu à medonha Travessia, sobreviveu aos horrores da barriga da fera — o navios negreiro e a escravidão em si — para se libertar com as suas próprias mãos e lutar por justiça e autonomia no outro lado do mundo. Dessa forma, considerando em que vivemos um contexto de supremacia branca, que nos domina materialmente, socialmente e espiritualmente, é fundamental que nós, pessoas negras, heróis e heroínas em diáspora, possamos nos referenciar com os mitos e lendas criados e proferidos pelos nossos ancestrais. As “histórias de infância” que citei anteriormente, os desenhos animados que mais nos marcaram, quase sempre, provavelmente todos, são protagonizados por pessoas caucasianas, provenientes de um mundo eurocentrado, inspirados em lendas europeias. Dessa forma, desde a sua infância, você não possui como referência alguém que se pareça com você e que reflita as suas tradições, os triunfos e conquistas do seu povo, e sim de um outro, que nada tem a ver com você, um outro alienígena que, na verdade, não passa de uma sombra pálida do que você verdadeiramente é. E são essas histórias eurocêntricas que até hoje pululam aos montes nos leques de séries, filmes e livros, uma propaganda extensiva do imaginário europeu em todos os seus contextos, passado, presente e futuro. Tudo isso vai muito além de serem simplesmente protagonizados ou não por pessoas brancas; trata-se de uma massificação esmagadora da metafísica europeia como pretensa verdade absoluta. Pois o mito, conforme nos diz Clyde Ford, são absolutamente verdadeiros, não como física, e sim como metafísica; não como fatos e sim como metáforas. E essas metáforas nos guiam até hoje como as forças internas de imaginação e poder que nos movem em todos os nossos aspectos da vida, e que ganham grande destaque principalmente no fazer literário. Dessa forma, é ineficaz, e inaceitável, desenvolver o herói com rosto africano a partir do prisma dito como “padrão”, ou seja, o prisma europeu que nos cerceia.

Nesse sentido, o Afrofuturismo possui grandes desafios, uma vez que romper com a lógica europeia não é nem um pouco fácil. Ora, é dito, na definição cristalizada de Afrofuturismo, que este é: um movimento estético que combina elementos de ficção científica, ficção histórica, fantasia, realismo mágico-animista e Afrocentricidade. Ora, nesse caso, o professor Molefi Kete Asante diz: “Afrocentricidade é a conscientização sob a agenda dos povos africanos” como chave para a reorientação e recentralização para que a pessoa negra, ou seja, africana, possa atuar como agente de sua própria história, e não como vítima ou dependente da história de um outro alienígena. Professor, filósofo, autor de 66 livros e teórico, o africano nascido nos Estados Unidos Molefi Kete Asante é o próprio criador da Afrocentricidade como teoria contemporânea com o lançamento do livro de mesmo nome no ano de 1980. Para todos que se dedicam aos estudos e perspectivas afrocêntricas, as obras de Asante são fundamentais, uma vez que buscam localizar a pessoa negra, africana em diáspora, a partir do seu berço civilizatório de origem: África. E uma vez que fomos raptados do nosso berço de origem, e levados à força para terras estranhas, despidos de nossa localização física, psicológica, afetiva e metafísica, não é exagero dizer, conforme nos falam Asante e outros intelectuais afrocêntricos, que toda pessoa negra é uma pessoa africana, tenha ou não nascido na África.

Por isso, diversos autores contemporâneos, africanos, tais como Alondra Nelson e Kodwo Eshun, vêm se debruçando sobre o fazer literário de orientação afrofuturista. Em seu artigo “Further Considerations on Afrofuturism” (2003), o escritor e teórico ganês Kodwo Eshun expõe e expande a trajetória e a história do Afrofuturismo; segundo Eshun, num mundo que implícita ou explicitamente exclui a pessoa africana da sua hegemônica projeção de futuro, o Afrofuturismo possui o papel fundamental de reorientar a pessoa negra na criação do seu próprio futuro, a partir da sua própria ótica. Já a socióloga e escritora Alondra Nelson destaca que a questão do “outro alienígena” é um tema frequentemente explorado no Afrofuturismo devido ao sequestro de pessoas africanas para este lugar que não nos contempla. Alondra destaca também que nas histórias criadas num contexto eurocêntrico nunca associam a pessoa africana à ideia de tecnologia e progresso, e que as discussões em torno de raça, mesmo com as “melhores intenções”, muitas vezes acabam reforçando o que a escritora chama de “fosso digital”.

Portanto, concluímos que o Afrofuturismo é fundamental para romper com o modelo hegemônico de futuro, este que é dito como “padrão”, “normal”, o qual é, na verdade, particular: o eurofuturismo. E esse eurofuturismo, tão insanamente massificado nos filmes, livros, séries e jogos do mundo de supremacia branca, como se fosse uma avalanche pavorosa de zumbis pálidos, jamais servirá para a plena formação de caráter da pessoa negra, da pessoa africana. O verão está chegando…

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O fazer ficcional que transcende a vitimização

A minha busca pela mitologia africana não compreende apenas um desejo de saciar a minha sede pela alta imaginação. A minha busca pela mitologia africana objetiva também buscar uma cura duradoura para o nosso trauma histórico.

Por isso, foi de uma alegria imensa quando me deparei com O Herói com rosto africano de Clyde W. Ford, pois encontrei ali um guia precioso para as respostas que eu tanto almejava, um ponto de partida para a jornada heroica que deveria, novamente, empreender dentro de mim. Ford nos diz que, quando enfocamos nossa experiência como pessoas africanas na perspectiva heroica da nossa mitologia, então estamos efetivamente buscando nossa cura pessoal e social. O trauma causado pelo sequestro e escravidão foge ao alcance de qualquer pessoa viva — números “modestos” falam entre 50 a 100 milhões de pessoas escravizadas; desse total, cerca de dois terços morreu durante a captura em terra e durante a viagem pavorosa nos hediondos navios negreiros. A escravidão de africanos é sem dúvida a maior tragédia e o maior holocausto de toda a humanidade.

Desse modo, ciente de que tal holocausto foge até mesmo ao seu alcance, Ford buscou se deter na seguinte questão: como se curar de tamanho trauma, cujas consequências ainda repercutem de forma desastrosa até hoje? Como é possível que a mitologia africana seja capaz de uma façanha tão… heroica? E eu mesmo me pergunto: como o fazer ficcional na perspectiva africana é capaz de transcender a vitimização?

Neste início de século 21, com o advento das redes sociais e sua crescente popularização no mundo ocidental, temos observado cada vez mais relatos de experiências vividas pelas pessoas africanas contemporâneas. Com alarmante frequência, são relatos que denunciam preconceitos sofridos, circunstâncias dolorosas, tristezas incomensuráveis. Não são poucos os estudos que correlacionam racismo com depressão; a socióloga Trenette Clark, da Universidade da Carolina do Norte, em uma nota, nos diz:

“A discriminação explícita é uma fonte frequente de problemas de saúde, embora seja negligenciada, e tem efeitos comparáveis à morte de um ente querido ou à perda de um trabalho”

Ora, num mundo de supremacia branca, em que é negada a humanidade da pessoa negra, em que nossas conquistas passadas e futuras são simplesmente ignoradas e em que nossa cultura, ciência e tecnologia são usurpadas de nós, não seria mesmo diferente. Mas como podemos ir além disso?

Molefi Kete Asante diz:

“Se você quiser falar de ciência, falaremos de ciência. Se quiser falar de astronomia, falaremos de astronomia. Os africanos devem ser vistos como atores do palco planetário, não como cidadãos de segunda classe. Os quinhentos anos de dominação europeia interromperam nossa marcha em direção ao progresso, mas não conseguiram apagar as contribuições dos milhares de anos de história anteriores à chegada dos europeus ao continente africano”.

Cheikh Anta Diop, maior estudioso africano da era moderna, dedicou uma vida inteira para estudar e comprovar suas teses paradigmáticas; destaco aqui apenas sete de suas principais teses:

  1. A humanidade começou na África
  2. O Antigo Egito foi uma civilização negro-africana
  3. A origem dos povos da África — e do mundo — remonta ao vale do rio Nilo
  4. Houve dois berços do desenvolvimento humano: o berço do sul, africano, e o berço do norte, europeu, sendo o primeiro matriarcal, que primava pela liderança das mulheres, pela cooperação mútua, harmonia espiritual e solidariedade familiar, enquanto que no segundo, rigidamente patriarcal, primava a competitividade, a brutalidade e a inferiorização das mulheres
  5. A ciência, a medicina, a filosofia, a arquitetura, a engenharia e a arte civilizada do mundo surgiram primeiro no vale do Nilo
  6. Os reinos pré-coloniais da África desenvolveram sistemas de governo e formas de governo e de organização social altamente sofisticados
  7. Há uma unidade cultural entre toda a África Negra

Somente o mero enunciado dessas teses já comprova que a pessoa negra não precisa de qualquer artifício europeu, seja do lado direito ou do lado esquerdo, para conseguir sua emancipação — e isso é ainda mais verdade no fazer ficcional de cunho afrofuturista. Ora, para criar a sua projeção de futuro, todo aquele que se pretende afrofuturista, ao meu ver, não precisa se basear na antiga Grécia, tão aclamada na academia branca como suposto berço da civilização, não precisa se basear na ciência, na matemática e na filosofia dita como padrão, que na verdade é particular da europa, quando a própria sociedade europeia em si nada mais é do que uma deturpação e pálida imitação das sociedades e nações africanas, especialmente as do Antigo Egito. Para projetar um futuro brilhante para as pessoas negras, o afrofuturista dispõe de milhares de anos de história africana, dispõe de inúmeros avanços tecnológicos e científicos criados e imaginados por africanos. A interrupção da nossa história pelos quinhentos anos de dominação europeia não é capaz nem de apagar nossas conquistas africanas, tampouco de frear nossa marcha rumo ao futuro.

Clyde Ford nos diz que o ponto de virada ocorre no momento em que nossas histórias pessoais de traumas se transformam de relatos sobre a condição de vítimas em lendas sobre autonomia e poder. Por isso, para transcender a vitimização, antes de mais nada, é preciso conhecer a sua origem, a sua história, a sua raiz. É preciso conhecer a sua mitologia de origem africana. Marcus Garvey, um dos maiores ativistas do movimento nacionalista negro, nos diz:

“Uma pessoa que desconhece seu passado histórico, sua origem e sua cultura é como uma árvore sem raízes”.

Dessa forma, estudar profundamente suas raízes africanas, estudar as teses e estudos realizados em cima da questão por estudiosos africanos, estudar nossas mitologias e nossos heróis é fundamental para o fazer ficcional do afrofuturista. Ora, o fazer ficcional compreende em vivências e conhecimentos experimentados pelo autor, por aquele que pretende tornar seus sonhos realidade por meio da escrita. O fazer ficcional por meio da literatura é a materialização das vontades e dos sonhos mais profundos do autor. O fazer ficcional é a pretensão de sonhar tão bem a ponto de criar novos mundos e novas realidades.

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A insuficiência da representatividade

“Representatividade importa”, mas está longe de ser suficiente.

Quando se fala na dita representatividade, em filmes, séries, livros, gibis, quase sempre é a adição de um único elemento negro, ao lado de outras pessoas pertencentes às ditas “minorias” — as quais, quase sempre, são todas pessoas brancas. Hoje tratadas como meros rótulos, as mulheres, as pessoas LGBT e outras, quando incluídas nas mídias da cultura pop pelo pessoal que demanda pela dita representatividade, contenta-se que sejam todas pessoas brancas, ao lado de um único elemento negro, quase sempre um homem.

Isso acontece porque vivemos num mundo de supremacia branca, cujo berço civilizatório sempre primou pela inferioridade das mulheres e de tudo que é “diferente”, cujo berço civilizatório sempre primou por um patriarcado brutal, desigual e esmagador.

O povo negro não é apenas um homem de pele negra. O povo é uma multiplicidade de nações e sociedades. As pessoas que hoje são tratadas como mero rótulo, como uma “minoria”, para o povo negro essas pessoas sempre fizeram parte de um todo muito maior, um todo que jamais oprimiu as várias formas de se relacionar afetivamente — até a invasão e subsequente dominação europeia.

O povo negro é o povo mais diverso do mundo. E o nosso berço civilizatório é matriarcal.

Ao criar suas sociedades fictícias em livre, considero fundamental que o afrofuturista tenha em mente no mínimo uma compreensão básica das raízes do seu berço civilizatório. Pois não considero chamar de afrofuturista qualquer representação artística em que meramente haja uma pessoa preta inserida, sem atentar para o lugar psicológico em que essa pessoa se encontra, sem atentar para a localização cultural e ideológica em que aquele ambiente fictício se encontra. E é por isso que digo que a chamada representatividade, ainda que muitíssimo importante, é insuficiente se apenas perpetua valores, imaginários e tradições europeus, só que com uma máscara negra.

A doutora e escritora Nah Dove nos diz:

“Os argumentos eurocêntricos contemporâneos afirmam que a África é tão diversa que a unidade cultural não pode ser encontrada como uma realidade social. (…) Da perspectiva Afrocêntrica, há um reconhecimento da enorme diversidade entre os povos africanos; no entanto, a diversidade não se opõe à uniformidade. Assim, é de se estranhar a forma como os povos europeus foram capazes de se unir como uma massa crítica cultural para dominar a África como um todo.”

Apesar de suas diferenças ideológicas e culturais, os europeus e seus descendentes como um todo perpetuam sua supremacia sobre o mundo, e o atual clamor por representatividade é, no máximo, uma boa intenção, que não contempla, nem de longe, os sistemais culturais, metafísicos, mitológicos, sociais e científicos criados pelos povos africanos.

O afrofuturista deve ter em mente que “um regime matriarcal, longe de ser imposto ao homem por circunstâncias independentes da sua vontade, é aceito e defendido por ele”, conforme nos diz Diop. Já Nah Dove, em seu livro Mulherismo Africana — uma teoria Afrocêntrica, nos elucida com mais detalhes a respeito da jornada do matriarcado africano pelos tempos e de como este vem sendo deturpado pela perspectiva do patriarcado europeu, que se diz universal sem o ser. Inclusive, Nah Dove comenta que resquícios do matriarcado africano inspiraram até mesmo mulheres europeias a buscarem a libertação do seu patriarcado ao se voltarem para o culto de deusas africanas trajadas com as vestes brancas de panteões celtas, gregos e nórdicos. Destaco estas palavras de Nah Dove:

“Mulherismo Africana é um conceito que tem sido moldado pelo trabalho de mulheres como Clenora Hudson-Weems, Ifi Amadiume, Mary E. Modupe Kolawole, e outras. O Mulherismo Africana pode ser visto como fundamental para o contínuo desenvolvimento da teoria Afrocêntrica. Mulherismo Africana traz à tona o papel das Mães Africanas como líderes na luta para recuperar, reconstruir e criar uma integridade cultural que defenda os antigos princípios Maáticos de reciprocidade, equilíbrio, harmonia, verdade, justiça, ordem e assim por diante. Nesse sentido, creio que expressar Maat possa ser um termo que desenvolverá ainda mais a teoria Afrocêntrica.”

A escritora e professora Sobonfu Somé vai mais além, e diz que “para os povos dagara, toda sexualidade tem base no espírito”. Em seu livro O Espírito da Intimidade, Somé nos conta que as pessoas hoje chamas de “LGBT” pelo ocidente para o povo dagara são chamadas de Guardiãs, uma vez que são as únicas capazes de se comunicar com os dois mundos, o mundo material e o mundo dos espíritos graças à forte conexão sobrenatural da qual dispõem. Se o afrofuturista realmente tem a pretensão de recriar e resgatar valores tradicionais africanos, então deve atentar para o fato de que, diferentemente do ocidente, do eurofuturismo, em que o foco é meramente o desejo sexual desassociado do espírito, no afrofuturismo a representatividade maior é a do espírito, como guia de suas ações e motivações. Somé nos diz que o ocidente se perdeu no momento em que deixou sua espiritualidade para trás — e eu acrescento que não é necessário se desconectar do espírito para alcançar plenos avanços científicos e tecnológicos, como bem nos provam a antiga sociedade egípcia, kemética. Com sua sabedoria guiada pelos ancestrais, Somé nos lembra que a vida das pessoas LGBT no ocidente é, de muitas formas, uma reação à opressão da sociedade que os rejeita, uma sociedade que se esqueceu tanto de si mesma que joga grupos de pessoas na marginalidade e as estripa de seus verdadeiros papéis.

“Na aldeia, os homossexuais não são vistos como diferentes. Não são forçados a criar uma comunidade separada para sobreviver. As pessoas não lhes põe um rótulo negativo. Essas crianças nascem guardiãs, com propósitos específicos e são estimuladas a cumprir o papel para o qual nasceram, para o bem da comunidade. (…) Todo mundo os respeita na aldeia, pois afinal, sem eles, não haveria acesso aos outros mundos. (…) Na aldeia, ninguém se importa com a sua sexualidade, e sim com o seu papel como guardiãs.”

Formas semelhantes de pensamento são encontradas também na tradição iorubá — super presente no Brasil graças ao Candomblé — na tradição kemética e em tantas outras, graças à unidade cultural que une os povos africanos, apesar de suas diferenças. Isso demonstra que, o que pode ser considerado libertação para aqueles que provém do berço norte, para os do berço sul, trata-se de um retorno às suas raízes antigas nas quais o respeito e a representatividade, hoje tão desejados, sempre existiram.

Portanto, conclui-se que o atual clamor por maior representatividade, embora muito importante, não é suficiente para as demandas do povo negro, uma vez que não questiona a lógica europeia responsáveis pelas desigualdades e pelo apagamento das culturas; ao contrário, esse clamor meramente camufla a perpetuação da supremacia e se satisfaz meramente com a inclusão de um ou dois elementos negros dentro de uma perspectiva ainda branca, que não foi feita para nós, pessoas africanas, e não nos contemplará jamais. Quem pretende seguir o caminho do fazer ficcional afrofuturista possui todo um paradigma ancestral, toda uma lógica matriarcal que sempre primou pela reciprocidade, pela harmonia, pela espiritualidade, pela sabedoria, pelo respeito. Do meu ponto de vista, não há nenhum sentido em tentar “subverter” ou mesmo tentar “enegrecer” uma lógica deturpada quando há raízes muito mais profundas que podemos resgatar para criar nossos próprios caminhos de heroísmo com rosto africano.

A perspectiva africana como centro da criação

Considerando tudo o que foi dito acima, está mais que nítido: um Afrofuturismo que não pretende partir da África e seus valores espirituais, culturais e filosóficos, não deveria ser chamado de Afrofuturismo. O fazer ficcional que se pretende afrofuturista deve partir da perspectiva africana para criar a sua realidade, de forma oferecer uma alternativa — afinal, a Afrocentricidade prima pelo multiculturalismo, ou seja, pelo reconhecimento da existência de múltiplas culturas criadas por seus próprios povos, e não apenas uma, imposta como universal para o mundo inteiro.

Clyde Ford nos diz:

“O herói com rosto africano pode nos auxiliar a transpor as vicissitudes da vida: ajudar-nos a encontrar força e coragem onde imaginávamos encontrar apenas fraqueza e medo; a nos aventurarmos mais fundo em nós mesmos onde imaginávamos apenas resvalar durante a vida inteira; despertar nossos deuses onde imaginávamos apenas combater os nossos demônios.”

Símbolos de heroísmo ancestral são importantíssimos. Há quem diga que os europeus e seus descendentes não valorizam a sua própria ancestralidade; porém, percebam quantas ruas e espaços são nomeados com nomes de suas figuras de destaque, quantos bustos se mantêm erguidos e orgulhosos perante grandes prédios em que se localizam centros de comando. Símbolos de heroísmo ancestral são muito, muito importantes, e estão inspirando as pessoas o tempo todo em suas atividades, afazeres, trabalhos e objetivos. O povo negro nascido no Brasil, assim como no resto do mundo, vive um contexto em que seus heróis e heroínas são constantemente apagados, invisibilizados; ainda assim, temos o maior símbolo de heroísmo com rosto africano na figura de ninguém menos que Zumbi dos Palmares, que criou um dos mais poderosos estados nacionais negros autônomos em solo colonial usurpado pelos europeus, e o símbolo do Quilombo de Palmares persiste como maior inspiração para os coletivos e ativistas negros deste nosso país — não são poucas as pessoas africanas nascidas em solo brasileiro que evocam a força espiritual e mitológica dos quilombos, maiores exemplos de resistência à supremacia branca e nosso maior sucesso de emancipação da dominação europeia.

Nesse sentido, considero mais do que coerente um fazer ficcional de cunho afrofuturista que reproduza uma sociedade altamente avançada tecnológica e espiritualmente baseada na obra Quilombismo, do professor Abdias Nascimento.

“O quilombismo é um movimento político dos negros brasileiros, objetivando a implementação de um Estado Nacional Quilombista, inspirado no modelo da República dos Palmares, no século XVI, e em outros quilombos que existiram e existem no país.”

Assim diz o primeiro propósito do Quilombismo.

Conforme eu disse anteriormente, não vejo sentido numa obra afrofuturista que meramente “enegrece” conceitos e ditames europeus, que se limita a “pintar de preto” uma sociedade fictícia obviamente eurofuturista. O eurofuturismo tão presente nos filmes, séries, jogos e livros não serve para a pessoa africana que se pretende afrofuturista; ora, se o Afrofuturismo pretende projetar uma alternativa de futuro para as pessoas negras, nada mais natural que se basear nos modelos de sociedade africanos, tais como a antiga sociedade kemética e os inúmeros povos subsaarianos do Continente, e tais como os estados pretos autônomos que foram os quilombos. O Quilombismo do Abdias, como um conceito científico histórico-social de emancipação real, alicerçado no pensamento de estudiosos como Cheikh Anta Diop, Chancellor Williams, Ivan Van Sertima, Theophile Obenga e tantos outros, também serve muito bem aos propósitos do fazer ficcional de cunho afrofuturista.

O doutor Reiland Rabaka atenta para a necessidade de relocalizar e recentralizar o que chamamos de ciência e arte. Rabaka nos diz que a Afrocentricidade julga problemática, no mínimo, a “abordagem desinteressada” que supostamente permite a “objetividade” da ciência ocidental, uma vez que essa pretensa universalidade do método científico ocidental jamais questiona as raízes racistas do empreendimento científico ocidental — basta lembrarmos que, não faz muito tempo atrás, era “cientificamente comprovado” que as pessoas africanas eram decididamente inferiores. Por isso, o afrofuturista que realmente pretende se guiar pela perspectiva, atentará para os métodos científicos, teóricos e filosóficos criados por africanos, em detrimentos da pretensa e imposta universalidade da ciência ocidental. Atentemos novamente para a fala de Reiland Rabak:

“Na visão imperial do ocidente, a ciência é uma ferramenta para dominar e manipular os seres humanos e a natureza; pela estrutura conceitual afrocêntrica, seguindo o antigo cientista kemético Imhotep, a ciência deve ser empregada para melhorar a qualidade, ajudar, curar, libertar.”

É essencial, é imprescindível, portanto, partir da África como centro. Sempre.

Para fechar, destaco mais uma fala do doutor Rabaka:

“Na sociedade da supremacia branca, a ‘brancura’ é tida como ‘norma’, ‘neutra’, ‘universal’. Para os cientistas ocidentais, parece absurdo e inconcebível observarmos a natureza hegemônica e racialmente específica das noções de conhecimento e ciência destes. Pois os brancos não se percebem em termos raciais; eles são sem raça, não racializados; só os povos de cor, particularmente os negros, é que têm ‘problemas de raça’ e pensam em termos raciais. No entanto, foram os brancos que inventaram o conceito de raça, e são eles que continuam perpetuando um sistema de supremacia branca que desnuda, degrada e nega a humanidade dos povos de cor, especialmente aqueles que são vistos como a antítese dos brancos — os negros. A afrocentricidade faz parte de um humanismo multicultural e radical mais amplo, o qual afirma a humanidade dos povos de cor, dos africanos em particular. Nesse último aspecto, a afrocentricidade vem sido grosseiramente mal interpretada e mal compreendida.”

Considerações finais

Terminamos o artigo aqui, no qual se buscou abranger algumas das facetas do fazer ficcional de cunho afrofuturista. O assunto não se esgota aqui, nem de longe, uma vez que várias leituras e possibilidades são possíveis. Deixo menção mais que honrosa à grande escritora que é a senhora Octavia Butler, heroína com rosto africano que desbravou sozinha os caminhos do fazer ficcional afrofuturista quando sequer existia o termo Afrofuturismo. É certeza que falaremos de sua obra em artigos futuros, assim como falaremos de outros autores e autoras que não foram citados aqui. Pois ratifico o que disse logo no início: pelo menos neste momento em que falo, não pretendo ser um analista, um teórico, mas pretendo sim, seguir na minha pretensão de sonhar tão bem a ponto de criar novos mundos, novas realidades, e dar asas ao herói com rosto africano que vive dentro de mim.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Asante, M. K., & Welsh Asante, K. (1990). “African culture: The rhythms of unity”. Trenton, NJ: African World Press.

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Diop, C. A. (1990). “A Unidade Cultural da Africa Negra”. Chicago: Third World Press. (Original work published 1959)

Diop, C. A. (1991b). “As Origens dos Antigos Egípcios”. ln I. Van Sertima (Ed.), Egypt revisited. New Brunswick, NJ: Transaction Publishing.

Dove, Nah. (1998). “Mulherismo Africana: uma teoria afrocêntrica”. Journal of Black Studies.

Eshun, Kodwo. (2003). “Further Considerations on Afrofuturism”.

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Nascimento, Elisa Larkin. (org.) (2008). “Afrocentricidade — uma abordagem epistemológica inovadora”. Ed. Selo Negro.

Somé, Sobunfu. (2007). “O Espírito da Intimidade: ensinamentos ancestrais africanos sobre maneiras de se relacionar”. Ed. Odysseus.

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