Lolita de Nabokov

Kahli
12 min readOct 1, 2023

--

“Ela era Lo, apenas Lo, pela manhã, um metro e quarenta e cinco de altura e um pé de meia só. Era Lola de calças compridas. Era Dolly na escola. Dolores na linha pontilhada. Mas nos meus braços sempre foi Lolita”

Lolita (1962) — Stanley Kubrick

“Lolita”, romance de 1955 escrito por Vladimir Nabokov, é definitivamente uma obra complicadíssima de se discutir. Desde o momento que eu comentei sobre a possibilidade de ler ela, assim como depois avisei que estava lendo, as reações penderam para negativamente sobre o livro, onde o livro seria, supostamente, pedófilo — no mínimo, acusações de como suas descrições eram graficamente perturbadoras e/ou fetichistas. Devido a todos estes debates, comecei a ler o romance com certa apreensão do que estava por vir, mas em pouco tempo pude entender como Lolita é rico.

Pela falta de um enredo no livro, sua apresentação é relativamente fácil, mas ainda carregada de choque: acompanhamos os escritos de Humbert Humbert, um pedófilo que veio da Europa para os Estados Unidos em uma oportunidade de emprego e acaba se apaixonando por Dolores Haze, uma criança de 12 anos.

A leitura de Lolita realmente não é fácil (situações de abuso com crianças, seja de qual tipo forem elas, nos tiram da cadeira), mas o texto, quando você consegue enfim captar o seu ritmo, torna-se extremamente claro quando pensamos na série de circunstâncias narradas pelo próprio Humbert Humbert, assim como todas as contradições que decorrem de sua narração. Por isso, já cravo aqui a constatação mais óbvia sobre Lolita: não, não “romantiza” a pedofilia.

Tentando fugir dos debates mais abrangentes sobre a tensão moral da literatura (e até mesmo de outras formas de representação que não serão vistas aqui, como as adaptações para o cinema), tento tratar como o livro de Vladimir Nabokov busca, ao contrário do que acusa-se, traçar uma crítica ao próprio personagem pedófilo de Humbert Humbert.

Campo de Guerra: crítica especializada

Esta seção seria dedicada a reunir uma série de críticas e comentários sobre Lolita que eu encontrei durante a vida ou mesmo enquanto discutia com certas pessoas sobre o romance durante minha leitura, porém acho que todo um tópico me utilizando de argumentadores hipotéticas para essa situação torna tudo extremamente maniqueísta de minha parte, assim como não acho adequado citar pessoas que poderiam eventualmente se sentir atacadas por algum comentário (porque, sendo sincero, tem muita crítica ruim sobre Lolita em redes sociais e YouTube). Como solução, tentei buscar artigos da crítica especializada (sendo específico e justo, encontrei um artigo da revista Água Viva da UnB que comenta sobre as mudanças do paradigma na crítica do romance) sobre o livro como uma demonstração da recepção mista que a obra teve até mesmo em sua época de publicação e os embates ao redor do consenso de sua análise.

Antes de tudo, é interessante termos noção que essa visão negativa de associação do livro com pedofilia existe desde os princípios de sua publicação na França em 1955 (tanto que o livro chegou a ser banido) e esta discussão ficou ainda mais acalorada com sua publicação nos Estados Unidos em 1958, embora algumas críticas já tenham saído em 1957. No início de seu período de críticas, Lolita era principalmente avaliado pelo seu conteúdo moral e, curiosamente algo que eu não encontro citado tão frequentemente em textos mais recentes, por seu humor.

Sendo sucinto sobre seu momento inicial, os críticos que viam o abuso infantil como a principal problemática da obra tendiam a avaliar de forma negativa, enquanto aqueles que preferiam dar maior atenção aos elementos estéticos e formalistas tendiam a avaliar positivamente.

Algumas das críticas estadunidenses escritas na época, como a de Orville Prescott para o New York Times, descrevem o livro como pornográfico (numa tradução livre: “Nabokov não escreve pornografia barata. Ele escreve pornografia cabeça.”); outras, como escreveu Riley Hughes para a Catholic World, diziam que o livro tratava-se de uma piada sem graça retratando uma América com aura maligna. Porém, as análises também caminhavam para o sentido oposto, como escreveu Dorothy Parker, onde diz que não considera Lolita pornografia em nenhum nível.

Após o impacto inicial no meio literário, muito baseados em quanto o crítico compra ou não o discurso erótico de Humbert Humbert, inicia-se um período onde os aspectos técnicos e estéticos do romance, assim como os padrões dentro da própria produção de Nabokov, acabaram sendo o centro do debate literário sobre Lolita. Por um desconhecimento da produção do autor, não é exatamente um ponto que me interessa, então não vou me prolongar sobre aspectos técnicos do livro e já adiantar: este paradigma muda somente nos anos 80, após os diversos processos de lutas por direitos civis.

Este novo momento de releitura de Lolita (e o último que eu vou comentar aqui) mostrou-se uma revisão do que foi a história crítica do romance, inspirados principalmente em releituras feministas que buscavam estabelecer parelos para o papel de Dolores Haze como mulher. Acredito que possamos resumir esse novo instante crítico com a autora Linda Kauffman:

Lolita não é sobre o amor, mas sobre o incesto, que é uma traição de confiança, uma violação do amor. Como os críticos puderam confundir de forma tão consistente o amor com o incesto no romance?

Nabokov no Montreux Palace

Como conclusão e reforço de toda a disputa, o próprio Nabokov no posfácio discute as dificuldades que ele enfrentou para a publicação do livro nos Estados Unidos, como a relutância das editoras americanas devido aos “tabus” que constituíam da obra (além do óbvio tema do livro, a existência de um casal interracial e o protagonista sendo um ateu) e as divergentes críticas que recebeu dos leitores da editora: entre elas, uma sugestão onde deveriam publicar apenas se trocasse a Lolita por um garoto de 12 anos e o Humbert Humbert como um fazendeiro; outro leitor avaliou o livro como “a velha Europa pervertendo a jovem América” (assim como houve, segundo Nabokov, o exato oposto comentário); e um editor chegou a afirmar que se o livro fosse publicado tanto ele quanto o autor seriam presos.

Viúvo, frustrado e pedófilo

Humbert Humbert (Jeremy Irons) na adaptação para cinema de 1997

Compreendendo o choque que Lolita causou no meio literário, resta a dúvida sobre o que há nestas páginas para causar tanta confusão. A resposta óbvia é o próprio Humbert Humbert, o escritor de “A confissão de um viúvo de cor branca”/Lolita. Entender a riqueza de Lolita é, principalmente, entender a complexidade deste personagem e de seu discurso.

Na verdade, o debate que acontece ao redor desse sentido moral de Lolita não é inteiramente desconhecido ao público brasileiro, é mais um daqueles “caso Dom Casmurro”.

O que quero dizer com caso Dom Casmurro, é simplesmente a existência de um narrador-personagem não confiável por uma série de motivos: Bentinho, por exemplo, era desde o início um homem extremamente ciumento e paranoico que tenta constantemente nos convencer que sua mulher o traiu com seu melhor amigo. A narrativa de Dom Casmurro está repleta de pistas da traição ou não de Capitu, mas ao termos noção do caráter do personagem-narrador a dúvida do leitor deveria ser automaticamente lançada para a constante insistência de Bentinho ao tentar provar que foi corno. Humbert Humbert funciona de forma semelhante, ou seja, é necessário entender quem ele é e o estado que ele se encontra para termos uma clareza no tratamento do texto.

Humbert é um europeu, vindo de uma família com uma mistura étnica que ele mesmo enxerga como peculiar, mas que era dona de um grande hotel. E onde ele se encontra no momento que nos escreve? Simples, ele está preso e escrevendo um livro de memórias para o tribunal sob supervisão médica. Acredito que o ambiente em que ele se encontra ao escrever suas memórias (preso) seja o ponto central para entender que, no final, as memórias de Humbert Humbert parecem ser organizadas como uma argumentação: sua história inicia-se ao atribuir que sua pedofilia viria do acontecimento que quando criança teve uma namorada que morreu antes que Humbert pudesse consumá-la (embora isso provavelmente seja uma piada do Nabokov com o fato dele detestar Freud). E então seguimos para uma série de justificativas retóricas do motivo de Humbert ter atração por crianças:

Quero agora expor uma ideia. Entre os limites de idade de nove e catorze anos, virgens há que revelam a certos viajores enfeitiçados, bastante mais velhos do que elas, sua verdadeira natureza — que não é humana, mas nínfica (isto é, diabólica). A essas criaturas singulares, proponho dar o nome de “ninfetas”.

E nesta complicada rede de memórias e justificativas tortas que o nosso viúvo branco proporciona, percebemos uma coisa: Humbert claramente não é uma boa pessoa, muito menos sã.

Enquanto narra sua vida na Europa, notamos as diversas vezes que ele é internado em sanatórios (assim como seu prazer em ativamente mentir para seus terapeutas) e possuía uma ex-esposa com quem era por diversas vezes agressivo. Sua ida para a América não o torna uma pessoa melhor de forma alguma, ele apenas se reveste de um elitismo cultural para encantar as pessoas a sua volta: constantemente falando francês, duvida e despreza constantemente das capacidades intelectuais das pessoas e também sente uma necessidade de ressaltar sempre sua beleza. Após uma série de acontecimentos que leva Humbert a tornar-se uma espécie de tutor legal/padrasto de Dolly, ele passa a nos tentar convencer que ele foi a vítima de uma criança lasciva que o seduziu. Este comportamento de tentar convencer o leitor de sua integridade em oposição a maldade dos outros, já era algo que víamos em HH, até mesmo quando tenta nos convencer que ele era uma vítima na separação de sua ex-esposa.

Humbert Humbert (James Mason) ao confrontar o raptor de Lolita

Apesar deste modelo quase argumentativo, o discurso de Humbert Humbert mostra-se constantemente cercado por contradições em seus acontecimentos narrados: a suposta leitura freudiana do viúvo sobre a origem de seus desejos por “ninfetas” são posteriormente desconsideradas e, talvez o mais gritante, o próprio convencimento sobre uma Lolita predadora: inicialmente, é dito que após tentativas frustradas de H.H é a própria Lolita quem o induz a ter um relacionamento. Esta acusação depois entra em conflito com todas as outras descrições (com exceção de uma, que eu acredito que realmente seja real por uma série de motivos) que o narrador nos fornece sobre o funcionamento do relacionamento dele com Lolita, sendo o mais óbvio provavelmente sendo:

“Você se lembra”, disse ela, “do nome daquele hotel, você sabe qual [nariz franzido], você sabe — com as colunas brancas e o cisne de mármore na estrada? Ah, você sabe [exalação muito ruidosa] — o hotel onde você me violou.

Portanto, o amor que Humbert afirma sentir por Lolita não é realmente um amor romântico como ele próprio diz. Não digo isso necessariamente numa tentativa de retomar o comentário de Linda Kauffman sobre o incesto ser a violação do amor, mas que o único sentimento presenciado na relação de Humbert por Dolores Haze é a necessidade por controle e uma atração não por uma pessoa, mas por uma Criança.

Mesmo após acompanhar toda a trajetória de Humbert Humbert e tendo a oportunidade de entendermos como funcionava sua cabeça, me restava uma impressão sobre o personagem: ele parecia unidimensional, uma encarnação do medo de molestadores que poderiam estar mais próximos do que esperávamos. Mas então por que acompanhamos com exaustivo detalhamento seus pensamentos? Neste ponto que começamos a tratar dos relatos finais do prisioneiro e nas dúvidas de o quanto o que Humbert nos entrega no trecho final seria um real arrependimento sobre suas ações ou apenas uma forma de aliviar sua imagem perante o tribunal? A conclusão que pude chegar no fim não é tão simples: ambas opções não são excludentes, mas sim extremamente necessárias para a compreensão de seu personagem. Acreditar no arrependimento que “A confissão de um viúvo de cor branca” carrega não é exatamente redimir Humbert Humbert, mas dar vida à Lolita!

Em meio ao seu arrependimento, baseado principalmente no quanto ele enxerga que ao violar Dolores em sua fantasia pedófila acabou por destruir sua vida e de privar uma criança de sua merecida infância, o viúvo nos oferece lapsos de uma pessoa real, de uma Lolita real! Normalmente, Lolita de H.H é constantemente descrita como uma criança implicante com um gosto para música pop chiclete e entretenimento adolescente barato como fofocas de casais e moda jovem; ou seja, uma pré-adolescente fútil. Porém, ele mesmo chega a admitir que não a conhece:

Certa vez, numa rua de Beardsley que desembocava no poente, ela virou para Eva Rosen […] e, com ar muito sério e sereno, em resposta a alguma coisa que a outra disse sobre preferir a morte a ter de ouvir Milton Pinski […], minha Lolita observou: “Sabe, o pior da morte é que deixa você completamente só”; e fui tomado de assalto […] pela ideia de que simplesmente não sabia de nada sobre o que pensava minha querida.

Assim como pouco depois conclui:

Mas a finalidade terrível de todo este argumento é a seguinte. Ficou gradualmente claro para minha convencional Lolita, ao longo de nossa coabitação singular e bestial, que mesmo a mais miserável das vidas em família era melhor que aquela paródia de incesto que, a longo prazo, era o melhor que eu podia oferecer àquela criança perdida.

Dolores Haze (Dominique Swain) na adaptação para cinema de 97

Portanto, retomo aqui meu argumento sobre a natureza deste “amor” de Humbert sendo apenas uma necessidade de controle para evitar que esta latente profundidade emocional que existe em Dolores vaze e acabe contaminando Lolita. Portanto, embora o personagem constantemente demonstre uma forma de “repulsa” por essas atitudes mais juvenis dela, o fato de ele unicamente nos revelar isso sobre Dolly, assim como a relutância dele de permitir que ela participe de atividades como teatro (uma forma de expressão artística que ele mesmo admira e considera culta), leva a acreditar que é apenas suas atitudes infantis que o atraem. Ao reencontrar Dolores uma última vez quando ela já estava grávida, o que move ele ao tentar convencer ela a voltar é apenas um vago sentimento de culpa e medo de sua própria morte que já estava próxima (essa tentativa nem chega a ter o vigor da paixão que ele carregava anteriormente ao tratar com ela).

Por isso as últimas páginas mostram-se significativas: demonstra uma passagem extremamente carregada de culpa de um personagem, de certa forma, trágico buscando uma eternidade para a fantasia encarnada que ele mesmo criou. Talvez o perdão dos críticos para com Humbert após seu arrependimento tenha sido grande demais.

Estou pensando em bisões extintos e anjos, no mistério dos pigmentos duradouros, nos sonetos proféticos, no refúgio da arte. Porque essa é a única imortalidade que você e eu podemos partilhar, minha Lolita

Conclusão

Lolita é um livro extremamente interessante. Reforço que sua leitura, mesmo não sendo realmente explicitamente pornográfica como vários tentam acusar, não é das mais fáceis, seja pelo tema retratado na história ou até mesmo pela tarefa certas vezes enfadonha de acompanhar a narração de Humbert Humbert. A forma que Nabokov consegue manter uma segurança no tratamento deste tema ao mesmo tempo que fornece o material necessário para que possamos entender as nuances dentro de sua história mostra um domínio grande de seu autor sobre o tema que ele queria comentar e suas inevitáveis problemáticas.

No fim, sua experiência está principalmente baseada no quanto o leitor compra o discurso de H.H e acredito que até o aproveitamento máximo de sua estética esteja baseado neste aspecto. Mesmo estando diante de uma clara história distorcida por seu personagem-narrador, creio que acreditar no que está escrito em “A confissão de um viúvo de cor branca” seja uma realidade que o próprio condenado resolveu acreditar antes de sucumbir à morte na prisão, o refúgio da arte.

Como curiosidade, pensei em incluir paralelos sobre Cuties (sim, aquele filme da Netflix que criou um enorme burburinho devido a sexualização infantil) enquanto escrevia, mas particularmente não lembro de coisas exatas sobre o filme além do fato que acabei não gostando, então talvez fique para a posteridade.

Referências

CONNOLLY, Julian. A reader’s guide to Nabokov’s Lolita. Boston: Academic Studies Press, 2009.

KAUFFMAN, Linda. “Framing Lolita: Is There a Woman in the Text.” In Refiguring the Father: New Feminist Readings of Patriarchy. Ed. Patricia Yaeger and Beth Kowalski-Wallace. Carbondale: Southern Illinois University Press, 1989.

LAZARIN, Denize. As mudanças de paradigma na crítica de Lolita de Nabokov. Revista Água Viva, [S. l.], v. 5, n. 3, 2020

PRESCOTT, Orville. Books of The Times. New York Times, 18 de agosto de 1958.

HUGHES, Riley. Review of Lolita. Catholic World, outubro de 1958

PARKER, Dorothy. “Sex — without the asterisks”. Esquire, outubro de 1958.

--

--

Kahli

Às vezes eu exponho a minha opinião ruim sobre algumas coisas em textos ruins sem periodicidade alguma.