Akatsuki no Yona (Yona of the Dawn)

Akatsuki no Yona, shoujos feudais e a reciclagem de ideias

O que Fushigi Yuugi, Saiunkoku Monogatari e Akatsuki no Yona têm em comum vai muito além do “shoujo harem”

Jéssica Oliveira

--

Quando me deparei com Akatsuki no Yona (Yona of the Dawn) numa daquelas listas “animes que você deve assistir” — e eu não via nenhum há algum tempo — a sinopse dele logo me chamou atenção mais do que os outros, pelo simples fato de lembrar muito outros dois animes que adoro: Fushigi Yuugi e Saiunkoku Monogatari.

Um intervalo de 30 anos separa as datas de seus lançamentos e nessas adaptações de mangá conhecemos fábulas que se passam em períodos feudais. No caso da obra de Yuu Watase, Fushigi Yuugi está na China antiga. Já em Yona e Monogatari, não temos explícito em qual o país ou civilização estão situados a narrativa, podendo ainda ser fictícios. Seja como for, nos três casos, a base do plot é a mesma: uma protagonista vê sua vida numa realidade totalmente nova e desconhecida, em que precisará da ajuda de uma lenda para resolver suas questões e alcançar seus objetivos. Mas é claro que as coisas não são assim tão simples, e durante a jornada, para realizar a lenda, a garota central terá que se unir a uma equipe de belos e talentosos rapazes, fundamentais para o desenvolvimento dela e da história, e enfrentarão todos juntos os desafios que surgirem — porque aparecerão, com certeza.

Fushigi Yuugi

Não vou criticar negativamente Yona, até porque o anime conseguiu ir além das minhas expectativas iniciais, apesar do detalhe de me parecer uma cópia moderna de mangás anteriores a ele, o que me fez julgá-lo previamente. No entanto, mesmo na minha opinião pessoal aprovando de maneira geral a série, não pude ignorar pontos que a distanciam muito em qualidade das histórias tão parecidas de Fushigi Yuugi e Monogatari.

Saiunkoku Monogatari

Apesar da temática principal ser semelhante, Akatsuki no Yona não deixa de padecer do mal que parece assolar os animes e a cultura pop atualmente.

E que mal seria esse?

Muito se discute nos últimos anos sobre uma espécie de falta de criatividade generalizada no entretenimento, tanto em Hollywood como nas produções japonesas. Vemos uma enxurrada de reboots, continuações e novas adaptações de quadrinhos e livros, antigos e bem conhecidos do público. Uma reciclagem que parece infinita de conteúdos que já existem, em novíssimas roupagens ou extensões das mesmas histórias. Um exemplo recente e popular é a continuação da saga Star Wars, sendo ela aqui apenas um exemplo para ilustrar, porque se fossemos listar tudo que se vêm aproveitando novamente, a lista seria imensa e ficaríamos horas aqui só enumerando. O Despertar da Força (The Force Awakens) também é uma amostra do que não só eu, mas uma multidão gostou, porém, isso não nos fecha os olhos para deslizes e imperfeições que a obra possa trazer consigo.

Voltando para as animações japonesas, até quem não for otaku deve se recordar de um boom dos animes, não só no Japão, mas no mundo, que influenciou uma geração inteira nos últimos 30 anos, de oriente à ocidente. Tendo seu ápice nos anos 90 e começo dos anos 2000, de repente, você não precisava mais estar do outro lado do globo para se apaixonar por Cavaleiros do Zodíaco, Sailor Moon, Dragon Ball e suas histórias, com personagens que hoje são tão inerentes à cultura pop.

Mas afinal, o que aconteceu?

Tivemos essa geração hiper criativa gerando ficção de conteúdo, com histórias interessantes que nos prendiam a atenção durante anos (prendem até hoje, ainda amamos né?), com sagas enormes, personagens cativantes, que tendo super poderes ou não, eram tão profundos e humanos que conseguíamos nos identificar com eles apesar de sermos de países e culturas diferentes.

O tempo passou e com ele tivemos várias crises econômicas, principalmente nos países de primeiro mundo, e Japão incluído. Com estúdios fechando as portas e deixando muita gente desempregada, as teorias e opiniões são diversas. Algumas das declarações polêmicas e pessimistas (ou seriam realistas?) vieram de nomes de peso da indústria de criação japonesa, como Hideaki Anno, criador de Neon Genesis Evangelion, que declarou crer que o mercado de animes talvez tenha seu fim dentro de 5 à 20 anos.

Hayao Miyasaki

Outra figura importante que comentou a situação foi Hayao Miyasaki, mestre de animação do estúdio Ghibli — “Algumas pessoas passam a vida interessadas apenas em si mesmos. Quase toda a animação japonesa é produzida com quase nenhuma base em observar pessoas reais, você sabe. É produzido por seres humanos que não podem estar olhando para outros seres humanos. E é por isso que a indústria está cheio de otaku!”. Tenso né? Mas quem somos nós para discutir com Miyasaki e Anno? Senhores que em grande parte de suas vidas estiveram envolvidos nessa indústria, muito pela qualidade de seus trabalhos que falam por eles.

“Como eu poderia dizer não para o senhor Miyasaki?” Hideaki Anno e Hayao Miyasaki durante a dublagem japonesa de Vidas ao Vento

Culpar os otakus pode parecer pesado, mas de fato é um público, que no sentido mais japonês, são pessoas que vivem fechadas em seus universos particulares e não tem exatamente uma convivência social ativa. E somos nós, os fãs, sociáveis ou não, que mantemos a indústria funcionando. Como? Consumindo. Comprando todos os produtos que as séries que gostamos geram: figuarts, games, cards, adesivos, mangás físicos, DVDs, etc. Enfim, tudo que gerar receita aos criadores e estúdios. Exibições na TV não são o suficiente para manter os estúdios, mesmo que agora eles tenham o custo de produção reduzidos, graças as facilidades do digital.

Interior de uma loja em Akihabara, paraíso de consumo otaku e nerd em Tóquio, Japão.

Então, se essa geração atual de otakus e mangakas parece que ao invés de perpetuar a qualidade que víamos nos animes antigos, prefere tentar reproduzir suas fantasiais pessoais com personagens longe da realidade, como Miyasaki afirmou, fica mais fácil voltar ao tema principal e explicar porque Akatsuki no Yona não consegue ser tão bom quanto Fushigi Yuugi, parecendo uma cópia genérica.

Saiunkoku Monogatari em um ranking ficaria entre os dois, não só na ordem cronológica — foi exibido entre 2006 e 2007 — mas também na comparação, por não emular totalmente Yuugi mas ainda possuir mais profundidade em sua história do que Yona.

Fushigi Yuugi e Saiunkoku Monogatari

A galera mais jovem talvez não conheça Fushigi Yuugi. O mangá publicado inicialmente em 1992 e anime exibido entre 1995 e 1996 já pode ser considerado um clássico, tanto de animação como de gênero shoujo. E quem sabe pioneiro do shoujo harem inverso, não que isso seja um grande mérito. Publicado no Brasil pela Conrad, foi assim que conheci Miaka, Tamahome, Nuriko ❤, Hotohori e cia (há uns 10 anos atrás). O anime não chegou a ser exibido no Brasil. Coincidência ou não, Fushigi Yuugi e Akatsuki no Yona são do mesmo estúdio, o Studio Pierrot, enquanto Saiunkoku Monogatari foi produzido pelo Madhouse.

Fushigi Yuugi: Miaka e as “7 estrelas de Suzaku”

Em relação a diversidade e representatividade, Fushigi Yuugi segue os passos de Sailor Moon (1992–1997), e deixa margem aos posteriores Paradise Kiss (2005) e o filme Tokyo Godfathers (2003), ao trazer em seu elenco principal uma personagem trans. Nuriko é uma das “sete estrelas de Suzaku”, guerreiros que Miaka, como sacerdotisa lendária, precisa reunir para invocar o Deus Suzaku e fazer três pedidos para salvar o país de Konan. Nuriko, além de estar no quarteto central do anime e ter destaque durante toda a saga, é sem dúvida um dos melhores personagens (e o meu preferido). Logo nos primeiros episódios há uma cena em que ela beija na boca — sim, isso mesmo — Tamahome, ainda usando trajes típicos das mulheres do palácio do imperador Hotohori, que aliás é bem andrógino e de primeira é confundido com uma mulher por Miaka.

Nuriko nos primeiros episódios do anime

Não vou discutir agora se a representação trans em Fushigi Yuugi é boa, isso é assunto para outro texto quem sabe. Contudo, do que me recordo, Nuriko não era de personalidade simples e definida. Era fluida, visualmente, no modo como se vestia, e nas mudanças constantes entre ter a força de um guerreiro e ao mesmo tempo ser uma pessoa delicada e sensível, tornando-se a melhor amiga(o) de Miaka. Nuriko tem tanto momentos leves, como sérios, e estrela o episódio que provavelmente mais me fez chorar no anime inteiro (não vou contar qual :P).

Além de ganhar pontos em representatividade, Fushigi Yuugi aborda outros temas sérios como estupro, remetendo ao universo feminino e seus diversos medos, relacionando tudo aos desafios que as protagonistas enfrentam. Não vou opinar se o anime poderia ser considerado feminista — é uma reflexão a se fazer. Vale ressaltar ainda que se usa viagem no tempo (amo), já que Miaka e sua amiga Yui vivem no tempo presente e são levadas a China feudal ao serem sugadas por um livro da biblioteca onde estudavam.

Saiunkoku Monogatari, mangá escrito por Sai Yukino, apresenta um roteiro menos fantasioso, mais político e realista. Embora tenha uma lenda, sobre reunir os “oito sábios iluminados”, a protagonista Kou Shurei é movida principalmente por outros propósitos, pessoais, mas que visam o bem maior para toda a população pobre de seu país. Shurei sonha em se tornar uma oficial do governo, mas não pode por ser mulher. Mesmo de família de origem nobre, nossa heroína vive de forma modesta, seu pai é bibliotecário do palácio imperial, enquanto ela vive de “bicos” para ajudar em casa, como ensinar no templo, tocar Erhu (um instrumento musical de duas cordas tocado com arco) e sendo contadora de uma casa do distrito da luz vermelha, mais precisamente num prostíbulo. Deu para perceber que ela é bem esforçada né?

Kou Shurei após se mudar para o palácio imperial de Saiunkoku

As coisas começam a mudar para Kou Shurei quando um dos conselheiros do imperador a contrata para fazer parte, por tempo limitado, do harem imperial e influenciar os hábitos do imperador. A estrutura do país Saiunkoku começará a mudar para melhor depois de sua aproximação com o imperador Shi Ryuuki. Uma pena que por ser mulher ela tenha que se sujeitar inicialmente a essa posição submissa, e só assim ter chances de iniciar seus planos de participar do governo de seu país.

Em Monogatari assistimos um debate sobre igualdade de gêneros — o anime é explicitamente feminista. Também não irei analisar aqui se a abordagem é justa o suficiente ou não.

A protagonista Yona: olhar e cabelos flamejantes

Akatsuki no Yona

Anime exibido até maio de 2015, sem data para voltar e baseado no mangá de Mizuho Kusanagi, a sinopse é: Yona é filha única do segundo rei do Reino de Kouka, vivendo uma vida luxuosa e despreocupada como uma princesa deveria. Ela tinha de tudo, de roupas de luxo até um pai dedicado. Mas seu mundo quase perfeito desaba num piscar de olhos assim que acontece um golpe interno realizado por aqueles que buscam poder. [Só para constar, o golpe vem do homem por quem ela é apaixonada, seu primo de primeiro grau, Soo-won] Agora, Yona, que outrora não podia tocar em armas, anseia recuperar o que antes lhe pertencia. Ou seja, teve que aprender da pior forma a ser independente e encarar a vida real lá fora. E além disso precisará encontrar os 4 dragões lendários (tinha que ter a magia também né?).

Todos os guerreiros de Yona, da esquerda para direita: Yun, Jae-ha, Son Hak, Zeno, Shin-ah e Ki-ja.

Mas sabe os assuntos sérios e pertinentes que foram debatidos nos outros dois shoujos feudais que citei? Não vemos nada disso em Akatsuki no Yona. O anime tem sim muito emponderamento feminino, cenas simbólicas — por exemplo, quando Yona corta seu enorme cabelo ao sacar uma espada do inimigo — e consegue ter o tempo ideal para nos apresentar todos os personagens com profundidade suficiente para criarmos identificação e empatia. Porém, o shoujo carece em — 24 episódios — trazer à tona adendos para ir além do romance e da guerra.

Soo-won e Yona na abertura do anime: imagem define a relação de amor e ódio.

Percebemos eficácia em Yona ao abordar temas como: amadurecimento — através do crescimento inevitável da protagonista; inadequação social — com o personagem Shin-ah (Dragão Azul); negligência política — no arco de episódios dedicado ao pirata Jae-ha (Dragão Verde). E claro, temas de praxe de 9 entre 10 bons animes japoneses: amizade, lealdade, fé e coragem.

Conclusão

Vivemos numa época de debates acalorados na internet e em eventos de cultura pop, sobre representação, igualdade de gêneros, preconceitos, estereótipos, direitos humanos — pautas de importância social que observamos em Fushigi Yuugi e Saiunkoku Monogatari. Como é que a atual sociedade japonesa, as produtoras, os mangákas, os fãs e Akatsuki no Yona podem ignorar tudo isso?

Resta a nós, fãs, a missão de não nos alienarmos, conquistando ou mantendo um pensamento crítico para cobrar histórias melhores e personagens que condizem mais com a realidade. Precisamos discutir esses assuntos e a animação é um ótimo espaço para tal. Só que isso parece cada dia mais caro, dispensável e esquecido pelas animações japonesas, que antes tanto nos ofereceram.

Curiosidade sobre Fushigi Yuugi: a dubladora japonesa da Miaka é a mesma da Usagi Tsukino (Sailor Moon): Kae Araki. Brincam com isso em um episódio em que Miaka repete as falas de luta pelo amor e justiça que a guerreira da Lua sempre dizia em suas lutas.

Glossário:

Shoujo: Japão organiza seus gêneros literários de mangá (e anime) por público-alvo. Shoujos são as histórias para meninas. O que não quer dizer que meninos também não vão gostar, mas ok.

Shoujo harem: quando um único personagem central é amado e idolatrado por todos os outros personagens principais, de sexo e gênero oposto. Nos casos citados nesse texto, temos harens inversos ou invertidos, pelas protagonistas serem femininas.

Otaku: no Brasil, são somente fãs de anime, mangá e cultura japonesa. No Japão o termo é pejorativo, já que os otakus são considerados pessoas antissociais e são ridicularizados.

Feudalismo: sistema econômico, político e social que se fundamenta sobre a propriedade da terra, cedida pelo senhor feudal ao vassalo em troca de serviços mútuos.

Plot: enredo principal de histórias ficcionais.

VLW FLW TCHAU!

Fontes:
Wikipedia
MyAnimeList
Omeleteve
Minas Nerds
Rocket News 24

Publicado também em: AnimeSun

Além de estar nesse Medium maravilhoso, também escrevo para o site AnimeSunna coluna Além do que Se Vê, no meu blog Foca na Fotografia e agora falo para o mundo no YouTube através do Canal Representation Service.

--

--

Jéssica Oliveira

Jornalista, fotógrafa e marketeira. Escrevo sobre cultura pop asiática no medium.com/blogadqsv e no blog.kocowa.com