So-ro-ri-da-de, substantivo feminino

Raquel K.
6 min readJan 10, 2017

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Manifestação de mulheres canadenses. Fonte: Google Images.

“Sororidade” é, creio eu, o conceito-base do feminismo contemporâneo. Compreender que a união ideológica entre mulheres é imprescindível para que alcancemos nossos objetivos sociopolíticos e econômicos é o primeiro passo para a entrada consistente de mulheres no Feminismo. Precisamos perceber que não somos inimigas umas das outras, que não somos competidoras por qualquer coisa que o patriarcado queira nos impôr.

“É importante para mulheres não sabotarem umas às outras.” (Fonte: Giphy)

No entanto, sororidade é uma palavra que não existe no Dicionário Aurélio, vocês sabiam? Por outro lado, nossos irmãos lusitanos não nos deixam na mão e o Dicionário Priberam define a palavra da seguinte maneira:

so·ro·ri·da·de
(latim soror, -oris, irmã + -dade) substantivo feminino
1. Relação de união, de afeição ou de amizade entre mulheres, semelhante à que idealmente haveria entre irmãs.
2. União de mulheres com o mesmo fim, geralmente de cariz feminista.

Parece simples. Não é. Quando levamos a questão da sororidade aos âmbitos feministas, a discussão sobre o significado e o alcance do conceito torna-se fluida, permeável e repleta de inconsistências sendo, portanto, necessária uma discussão sobre este assunto, especificamente sobre a maneira como instrumentalizamos o conceito e praticamos a sororidade em si.

O grande problema que noto em grande parte das comunidades de cunho feminista é a confusão entre defender ideologicamente as companheiras mulheres em questões problemáticas e, por outro lado, defender as companheiras sob quaisquer circunstâncias, inclusive quando estão clara e obviamente erradas — e é neste ponto que desejo tocar.

Não estamos ajudando nada e nem ninguém, nem o feminismo e nem a mulher em si, quando tomamos as dores e publicamente defendemos alguém que está enganada. Apoiar incondicionalmente uma mulher, exclusivamente por ela o ser, sem critério sobre o contexto da situação em si é um erro. Um erro de conduta e uma falha de interpretação ideológica.

Como assim?

Digamos que você tem um filho. Seu filho comete um erro na escola, agride um coleguinha, sofre a sanção de uma advertência escolar. Há provas de que foi seu filho que errou. O que você faz? Conversa com ele e faz com que ele tome consciência de seu erro ou vai até a escola bater no balcão e gritar que de maneira nenhuma aquelas provas são verdadeiras. Que seu filho jamais seria capaz de uma agressão? E, no final, você sai da escola, passa na padaria e compra um sorvete pra ele, pois ele é família e deve ser defendido sob quaisquer circunstâncias?

Nananinanão. (Fonte: Giphy)

O bom senso diz que devemos conversar com a criança para que ela tome consciência de onde errou para que não cometa o erro novamente e para que possa — se der — reparar o erro cometido. Certo? Certo.

Uma criança não aprende se passarmos a mão na cabeça dela em uma circunstância como essa. Uma criança é incapaz de aprender a viver saudavelmente em sociedade se adotarmos uma postura de defesa sob qualquer argumento. Aprender com nossos erros é uma característica animal, elementar, básica. Macaco que senta em formigueiro só senta uma vez, não é?

Então porque, em nossos círculos, adotamos a postura de bater no balcão e comprar sorvete para quem está no erro baseadas no argumento de que “temos que nos defender”? Se não fazemos isso com nossas crianças, qual o motivo de fazermos entre pessoas adultas?

Sororidade não é e não pode ser um salvo-conduto pra deixar a companheira fazer merda, gente.

SEGURA MEU POODLE — que eu vou te explicar essa parada. (Fonte: Giphy)

A companheira, a mana, a mina, tá errada? Falou uma besteira? Agiu mal? Chama ela. Fala pra ela. Expõe sua opinião sobre isso. Diz, na moral, que você acha que ela cometeu um erro pelos motivos X, Y, Z. Isso é muito mais produtivo que deixar acontecer uma briga ou que deixar a companheira reproduzir qualquer tipo de besteira; seja esta um produto da invasão perniciosa do patriarcado em nossas vidas, seja um erro ordinário. Especialmente se esse erro for cometido numa questão entre duas mulheres. Medie, se possível. Não confundir essa conversa com cagação de regra, pelo amor de Dadá: é preciso jogo limpo, é preciso que não forcemos a concordância mas estimulemos a compreensão e a autoavaliação, capiche?

Esta é uma maneira muito mais honesta, muito mais viva e muito melhor de praticar a sororidade entre nós, mulheres, que fomos socializadas para sermos inimigas e a interpretarmos umas as outras como competidoras pela atenção masculina (obrigada por este insight, Chimamanda, meu amor). O apoio incondicional no erro só faz com que o erro se perpetue. É muito mais sororário a longo prazo quando você toma conta das companheiras através do diálogo e do apontamento de equívocos do que dando carta branca para qualquer coisa que qualquer companheira diz em nome do feminismo e da sororidade.

E essa é apenas uma faceta, muito prosaica, da prática sororária. Qual é a outra?

A Sororidade, com S maiúsculo, a sororidade-conceito-base-do-Feminismo-contemporâneo é muito mais que isso. Devemos nos compreender como uma comunidade mundial de mulheres que luta em prol da eliminação das diferenças entre gêneros no que concerne aos direitos sociais, políticos, econômicos e éticos. Contra a constante opressão de um patriarcado intrinsecamente arraigado nas nossas sociedades, que nos afasta de empregos, de melhores condições de vida, que mina nosso direito de ir e vir, que nos torna vulneráveis a morrer por sermos quem somos, além de ditar padrões de aparência e comportamento que são irreais e daninhos para nossa sobrevivência. Comunidade esta que tem particularidades de conduta, de contexto, de atuação, de alcance, que é horizontal — desprovida de líderes — e que deve ser constantemente consciente de que os ataques às nossas liberdades são ininterruptos.

E, acima de tudo, é necessário compreender que há mulheres que são mais cativas do que as outras nas garras do patriarcado. Por exemplo: a questão da relação entre mulheres negras e feminismo branco, sobre a qual eu não estou habilitada a falar mas creio que a leitura da Stephanie Ribeiro no texto Feminismo Good Vibe seja importante para que possamos compreender como é urgente rejeitar a postura de que feminismo é clubinho de autoajuda e precisa se ocupar das questões práticas que nos afetam enquanto grupo e nos segregam enquanto categoria social, inclusive entre nós mesmas.

Para isso temos que parar de nos preocupar com besteirinha. (Fonte: Giphy)

Enquanto não pudermos nos livrar das questões mesquinhas, das pequenas pedras no nosso caminho, enquanto não pudermos nos livrar da noção absurda de que sororidade é um clubinho, não poderemos colaborar no que realmente importa: a luta política contra o cerceamento das liberdades das mulheres. Das nossas, pessoais e individuais, e das outras, liberdades essenciais que são negadas a tantas outras mulheres que estão em risco social e que precisam desta união sororária para so-bre-vi-ver à opressão.

WORK! (Fonte: Giphy)

Sejamos defensoras umas das outras, guardiãs de todas nós, sim. Esta é a essência da sororidade.

Mas não podemos confundir esta postura defensiva com condescendência. Sejamos professoras umas das outras. O momento, especialmente no feminismo brasileiro, é de aprendizado. Uma amiga com quem eu conversava durante a escrita deste texto disse que crê ser preferível o apoio incondicional, inclusive no erro, de uma mulher a outra do que a desunião imposta pelo patriarcado. Que é uma maneira de nos proteger. Concordo com ela.

Contudo, não podemos deixar que esse momento intermediário de assimilação dos papeis do feminismo em nossas vidas dure além do necessário. É preciso amadurecer com humildade a nossa perspectiva sobre nós mesmas, nossa ideologia e nossos atos políticos, dos mais complexos aos mais triviais. Creio ser necessário combater o comportamento condescendente e adotar uma postura pedagógica. Obviamente, com respeito e empatia para com quem erra. Afinal de contas, o sambinha diz que todo mundo erra e quem não errou, vai errar. Corrijam-me se eu estiver errada.

(Fonte: Giphy)

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Raquel K.

Opiniões que se tornaram muito grandes para o Twitter e saem todas do caos da minha cabeça. Não sou especialista de absolutamente nada.