Xiwangmu e as origens xamânicas do Daoismo

Monika von Koss
4 min readMay 22, 2019

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Como escola esotérica, o Daoismo surgiu no século V antes do tempo comum. Suas origens, contudo, remontam à pré-história. Emergindo da tradição nativa chinesa, caracteristicamente xamânica, é dela que o Daoismo retira a força para se tornar um culto do povo, abarcando divinação, magia, medicina e cerimônias da vida cotidiana.

Como primeira manifestação religiosa da humanidade, o xamanismo é oriundo do povo Tungu da Sibéria, região que faz fronteira com o norte da China, onde foram localizados assentamentos neolíticos datados entre 6500 e 5000 antes do tempo comum, com uma agricultura bem desenvolvida, a domesticação do cão e a prática de uma cerâmica rudimentar.

Em 1899, uma enchente do Rio Amarelo (Huang He), trouxe à tona centenas de milhares de peças divinatórias da dinastia Shang (1523–1027a.t.c.). Decifradas e interpretadas, elas revelaram a história da China arcaica e a figura de Fu Xi, autor do I Ching, considerado o verdadeiro pai da identidade chinesa. Os praticantes do milefólio (como eram conhecidos os decifradores do oráculo) eram chamados de Shi, um ideograma formado pela combinação dos signos ‘xamã’ e ‘bambú’, o que equivale a chamá-los de ‘xamãs do livro’.

Além de seus ancestrais, os Shang veneravam os espíritos do sol, da chuva, das montanhas, do trovão, dos rios e do vento, a quem ofereciam animais em sacrifício, que deixavam queimando até chegar aos ossos. Acreditavam que o fogo tornava o alimento ‘celeste’, isto é, apreciado pelas divindades. Observando que, no final das cerimônias, os ossos apresentavam rachaduras, tomaram-nas por mensagens das divindades e passaram a exercer a divinação por meio delas.

Conforme demonstrou Mircea Eliade em seu livro sobre Xamanismo, apesar de não pertencerem à mesma ideologia e período cultural, pode-se comprovar a presença de todos os elementos xamânicos na concepção daoista, tais como a ascensão ao céu, o resgate da alma, a incorporação de espíritos, o domínio do fogo e, principalmente, o estado de êxtase, fator que distingue a atuação do xamã. Através da dança extática, o xamã se torna capaz não apenas de ascender aos céus, mas de realizar viagens fantásticas a todas as regiões do universo, ‘exteriorizando’ sua alma, ‘viajando em espírito’, ou como diríamos hoje, trabalhando em estados expandidos de consciência.

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Na China, de acordo com os registros escritos, o primeiro a realizar o ‘vôo mágico’ foi o imperador Shun, que recebeu o ensinamento da ‘arte de voar como uma ave’ das filhas do imperador Yao (aprox. 2357 a.t.c.), pois até então as mulheres eram a fonte do poder mágico. Até determinada época, a quantidade de xamãs mulheres (wu) ultrapassava em muito a de xamãs homens (hih), a ponto de wu ser a designação geral para xamã.

Outro aspecto do xamanismo é a relação com os animais. Em parte dependentes da caça para sua sobrevivência, a relação do ser humano primitivo com os animais era muito complexa. Ao realizar a ‘dança do animal’, a pessoa xamã entra em contato com seu espírito, assegurando a abundância e o êxito na caça.

Mas não apenas a provisão de alimento estava em questão. Entrando em contato íntimo com um animal, o xamã recupera sua relação com todos os ritmos cósmicos, harmonizando-se com o Dao — a fonte última de todas as coisas e a teia subjacente ao universo, em contínuo movimento e mutação.

Através do êxtase, o xamã adquire poderes mágicos, a habilidade de se movimentar em estado semelhante ao transe, ser impermeável a todo mal e talvez até ser imortal. Pela quantidade de lendas a respeito da ascensão ao céu e dos milagres realizados pelos sacerdotes daoistas, parece razoável considerá-los sucessores dos xamãs. Entre as designações que recebe um sacerdote daoista está a de ‘sábio com penas’.

Mas o xamã não sobe apenas aos céus. Ele também viaja para os mundos profundos ou aos confins da terra, por exemplo para visitar a Rainha-Mãe do Oeste (Hsi Wang Mu), a grande deusa chinesa que, como todas as deusas primordiais, não é apenas uma deusa-mãe nutridora e compassiva, mas também reina sobre a morte. Na cultura chinesa, a viagem ao submundo parece ter sido absorvida pelo culto aos antepassados, primeiro indício da organização social patriarcal.

Mas a Rainha Mãe do Oeste continuou sendo cultuada como a mais alta divindade feminina no panteão daoista. De sua morada celestial, ela controla o acesso à imortalidade e promete vôos extáticos através dos espaços.

Monika von Koss

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Monika von Koss

Sou psicoterapeuta de abordagem energética transpessoal, com longa experiencia em atendimento clínico. A primeira Fractologista graduada da América Latina.