A vida de fome e desamparo de Almerinda

Mulher de 55 anos depende de doações do Ceasa e do benefício do governo federal para sobreviver

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7 min readNov 8, 2023

Por Theo Giacobbe

A casa das irmãs Almerinda e Maria Veiga passa por reformas e inundações constantes / Fotografia: Fernanda Feltes

Na parte sul do município de Canoas, em seu limite com a cidade de Porto Alegre, está localizado o bairro Rio Branco, local onde vivem as irmãs Almerinda e Maria Veiga. Naturais de Uruguaiana, as duas moram em uma casa muito pequena e precisam de auxílios para conseguirem se alimentar. A mudança para Canoas ocorreu em 2003, na busca de tratamento para a Síndrome de Down de Maria e, por isso, foi cuidada pela irmã mais velha desde o dia em que nasceu. Por conta do forte relacionamento entre as duas e da diferença de idade — Almerinda é 25 anos mais velha -, Maria começou a chamar carinhosamente a irmã de mãe. Porém, em 2018 Almerinda foi diagnosticada com câncer, tornando a tarefa de proteger Maria muito mais complicada.

Em 2019, Almerinda realizou a primeira cirurgia na luta contra o câncer, que foi seguida de outras duas. “Quando dei alta do hospital depois da minha primeira cirurgia, fui de ônibus para casa. Não tive dinheiro para pagar um táxi porque precisava pagar a pessoa que estava cuidando da Maria”, relembra Almerinda, com pesar. A Liga Feminina de Combate ao Câncer de Canoas (LFCCC) assumiu as despesas do tratamento oncológico para auxiliar Almerinda.

Conforme o tumor foi se espalhando pelo organismo, ela teve de retirar parte do útero, ovário, intestino e mamas. “Eu costumo dizer que o tratamento do câncer é um remédio para matar e outro para morrer. Me deixa péssima, me debilita. Tem dias que eu não consigo nem caminhar”. Devido a um dos procedimentos, Almerinda desenvolveu uma hérnia e aguarda internação desde 2020.

Ao longo desses 20 anos das irmãs vivendo em Canoas, elas já foram auxiliadas por alguns benefícios, mas, atualmente, a única fonte de renda da família vem do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Almerinda contou que as duas já chegaram a passar fome. “Algumas vezes fiz comida para ela (Maria) com uma coxa de galinha. Eu esperava receber algum dinheiro para poder comprar uma banana ou uma laranja, porque nós não tínhamos”. Por conta da falta de recursos financeiros, as irmãs buscaram outras formas de conseguir comida. Então, em 2018, vizinhos relataram que estavam recebendo doações de alimentos por parte de um programa social chamado Prato para Todos.

Promovido pela Central de Abastecimento do Rio Grande do Sul (Ceasa/RS), o programa social é dividido em três eixos. O primeiro é responsável pela doação de alimentos para a população de baixa renda. Os atendimentos ocorrem nas segundas, quartas e sextas-feiras, das 10h às 11h, no portão 6 da Ceasa. A maioria dos auxiliados pelo projeto é de idosos, aposentados ou desempregados que estão em situação de extrema pobreza. “A maioria deles foram abandonados pela família e aqui encontram seu refúgio”, relata Peterson Leite Carvalho, agente administrativo do Banco de Alimentos da Ceasa.

O cadastramento no programa pode ser realizado por telefone, e-mail ou diretamente no Banco de Alimentos / Fotografia: Fernanda Feltes

Os principais alimentos doados são hortifrutigranjeiros, porém, por meio de parcerias, eventualmente outros alimentos como arroz, feijão, bolacha, chocolate e leite também são distribuídos. Um carro leva os alimentos para alguns beneficiados que moram longe ou possuem deficiência física, mas a intenção é conseguir outros veículos para auxiliar mais pessoas. Durante o mês de maio de 2023, 18.410 quilos de alimento foram distribuídos para 750 pessoas beneficiadas pelo projeto. O supervisor do Banco de Alimentos, Rodrigo Lima, ressaltou a importância do programa. “Ele vem para aproximar quem tem fome do produtor”. Além de comida, também são oferecidas roupas e calçados. De acordo com Carvalho, depois da pandemia o cadastramento de idosos na política social aumentou muito, fazendo com que não existam vagas disponíveis no momento.

O Prato para Todos também doa alimentos para 129 entidades (creches comunitárias, instituições filantrópicas, asilos e organizações oficialmente registradas que tratem de crianças ou pessoas em vulnerabilidade social) todas as quartas, quintas e sextas-feiras. Essas entidades realizam a retirada durante o período da tarde, uma vez por semana, e distribuem para mais de 32 mil beneficiários.

A doação de alimentos por parte dos comerciantes do Pavilhão dos Produtores (GNP), principal ponto comercial da Ceasa, é fundamental para o funcionamento do programa. Somente em maio deste ano, o Banco de Alimentos recebeu 113.567 quilos de hortifrutigranjeiros de todos os pavilhões da Ceasa. Vale destacar que nem todo o alimento arrecadado pode ser aproveitado. No mesmo período, 41.174 quilos foram descartados. Essa comida que não é própria para o consumo humano é levada para fazendas, com o objetivo de alimentar animais. Produtores e atacadistas também fizeram um esforço coletivo para reunir alimentos para as famílias atingidas pelo ciclone extratropical que passou pelo Rio Grande do Sul em junho. Ao todo foram doados 7,5 toneladas de frutas, verduras e legumes para as pessoas mais afetadas.

Porém, embora a ação tenha sido um sucesso, Carvalho relatou as dificuldades da coleta de alimentos durante o inverno. “O período do ano que conta com mais doações é o verão, pois os alimentos estão perto de estragar. Durante o inverno, elas acontecem menos”. Além disso, durante o transporte de alimentos dos caminhões para os pavilhões, muito acaba sendo desperdiçado, problema enfrentado em uma escala global, visto que, em geral, cerca de 20% das frutas e vegetais se perdem entre a colheita e a venda, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO).

O desperdício no Pavilhão dos Produtores no final da tarde atrai animais como cachorros e pássaros para o local / Fotografia: Fernanda Feltes

O segundo eixo do programa social visa à reinserção social de pessoas que já concluíram o tratamento contra drogas e alcoolismo, em uma parceria com 16 comunidades terapêuticas. Os 33 voluntários integrados no programa arrecadam, selecionam, higienizam e distribuem os alimentos, além de realizarem a limpeza do pavilhão. Eles são acompanhados e avaliados pela equipe da política social em conjunto com as comunidades terapêuticas, tendo a possibilidade de reinserção no mercado de trabalho.

O terceiro e último eixo do Prato Para Todos foi desativado durante a gestão anterior da Ceasa, entre 2019 e 2022, porém, existem planos para reativá-lo ainda em 2023. Ele consiste em uma ação educacional liderada por uma equipe de nutricionistas do Sesc que realizam oficinas de combate ao desperdício e aproveitamento integral de alimentos, utilizando casca, folhas, talos e outras partes normalmente descartadas. Os cursos ocorrem dentro de um ônibus-escola com 24 lugares e equipado com uma cozinha industrial. Cerca de 300 oficinas foram realizadas, capacitando mais de oito mil pessoas até 2018.

O Prato para Todos foi laureado em 2004 pela FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação no Brasil) por considerar o programa um exemplo de política pública na área de segurança alimentar. Posteriormente, em 2017, foi reconhecido novamente pela entidade. Inicialmente chamada de Tá no Prato, a política social foi criada em 2003 e completou 20 anos de história em maio deste ano.

Hoje, tirando uma cesta básica por mês fornecida pela Liga Feminina de Combate ao Câncer de Canoas, todo o resto dos alimentos consumidos pelas irmãs Veiga vem do Ceasa. “Depois que nós descobrimos o Ceasa, nunca mais faltou comida. Muitas vezes a gente não tem carne, mas tendo um legume ou uma verdura já ajuda muito”.

Maria frequenta a Apae de Canoas, instituição que tem como principal objetivo educar e incluir socialmente pessoas com deficiência mental ou múltipla / Fotografia: Fernanda Feltes

As irmãs estão cadastradas no Minha Casa, Minha Vida, porém, enquanto o programa não encontra uma nova residência, elas precisam se contentar com o endereço atual. Depois de passar o portão que divide a rua do quintal, fica difícil determinar o ínicio da casa, já que ela não tem uma porta de entrada. Primeiro é necessário passar por um corredor sem iluminação e repleto de pedaços de móveis, papelão, sacolas e tábuas para depois conseguir adentrar na cozinha. O telhado é esburacado por conta das chuvas de granizo que volta e meia atingem a região.

Recentemente, a rua em frente à casa foi pavimentada e ficou mais alta que o nível do solo da residência. Com isso, as irmãs tiveram que conviver com inundações constantes. “Aos poucos fomos aterrando o chão. Ele continua batido porque não adianta fazer um piso sendo que o solo é mais baixo que a rua”. Os alagamentos também contribuem para o apodrecimento da estrutura de madeira que sustenta a casa.

De uma família de sete irmãos nascidos na Fronteira Oeste do Estado, somente Almerinda e Maria continuam morando no Rio Grande do Sul. O forte laço que as duas desenvolveram com os vizinhos ajudou na adaptação a uma nova cidade longe da família. Além disso, elas ainda têm desejos. Maria é torcedora do Grêmio e revelou que seu maior sonho é poder assistir a um jogo do seu time no estádio. Almerinda, apesar de todas as dificuldades financeiras e de saúde, ainda demonstra vontade de voltar ao mercado de trabalho. “Eu não desanimo, quero trabalhar. Nem que seja um trabalho voluntário, em alguma ONG”.

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Laboratório convergente do curso de Jornalismo da Famecos/PUCRS