Para além da literatura: o legado revolucionário de George Sand

Por: Ananda Zimmermann Simões Pires

Coluna LAGRI
4 min readOct 12, 2023
Figura 1: George Sand / Fonte: The Economist

“[…] que ela era uma mulher, e que aí estava o escândalo, uma mulher que escrevia” — Béatrice Didier sobre George Sand

Autora francesa do século XIX, pioneira feminista, e uma das figuras mais relevantes do romantismo francês. Nascida Amandine Aurore Lucile Dupin, usava o pseudônimo de George Sand e usava vestimenta masculina, pois autoras mulheres não eram bem aceitas naquela época. Publicou pelo menos 70 livros, ensaios, peças de teatro e ficou conhecida por suas histórias românticas em cenários rústicos, além de ter sido avançada e ousada para sua época ao abordar questões morais e sociais. Ela fumava em público, algo que uma dame daquela época não ousaria, mas também era mãe, gostava de bordar e em seu tempo livre fazia geleia.

Seu senso de identidade foi moldado cedo pela criação que recebeu de pais com origens contrastantes: sua mãe vinha de uma família da classe trabalhadora e com pouca idade se tornou prostituta; seu pai era aristocrata e jovem oficial do exército de Napoleão. Aos 26, Amandine Aurore era Baronesa Dudevant e mãe de dois, porém, infeliz em seu casamento e sedenta por independência, se divorcia do Barão Dudevant e se estabelece em Paris com o objetivo de ingressar em uma sociedade de jovens interessados em literatura romântica.

Nessa Paris, em plena efervescência literária e no coração da Revolução de Julho de 1830, ela levou uma vida boêmia, entre teatros, museus e bibliotecas. Rapidamente notada por seus colegas escritores, se juntou aos salões privilegiados do mundo literário e foi nesse período que ela adotou o traje masculino, também por razões financeiras e de conforto: paletó de sentinela, gravata de lã e chapéu de feltro. Embora isso não fosse ilegal, as mulheres na França do início do século XIX eram obrigadas a solicitar uma autorização para usar roupas masculinas em público para fins específicos, como andar a cavalo.

Foi por seus encontros com personalidades importantes nessa época que Amandine entrou para a equipe editorial do Le Figaro e começou a escrever sob o pseudônimo George Sand. Em 1832, estreou como escritora independente com o romance Indiana, inspirado em sua experiência de vida matrimonial, alcançando grande sucesso. Imagine o quão revolucionário isso era para uma mulher da primeira metade do século XIX!

Figura crítica dos preconceitos de uma sociedade que considerava conservadora e desfavorável à paixão, Sand aderiu aos ideais socialistas de Saint-Simon, participou ativamente dos acontecimentos políticos de 1848 e contribuiu para sustentar a comunidade intelectual de sua época, recebendo regularmente personalidades como Chopin, Liszt, Balzac, Turgenev, Delacroix, no Château de Nohant.

Na verdade, a história insiste em relembrar seus numerosos “escândalos” de amor, sobretudo sua relação com o poeta Alfred de Musset e o compositor Frederic Chopin. Dadas as convenções sociais que cerceiavam a liberdade da mulher à época, o foco recaiu sobre sua celebridade e não seu trabalho.

Não vou negar, foi assim que ouvi falar a primeira vez sobre Sand: por seu caso amoroso de longa data com Chopin, compositor clássico que admiro. Mas o que descobri, ao pesquisar sobre seu legado, foi uma escritora popular na época e que tem uma obra que fala por si própria. Talvez seja aí que more a injustiça: é preciso cavar para compreender a importância de sua figura, atitude e ousadia.

Ao longo de suas obras e vivências, George Sand examinou as relações entre os sexos dentro e fora do casamento, o sistema de classes, o significado do trabalho, as lutas das mulheres artistas e as questões de sexualidade. Para ela, a questão do gênero era particularmente complexa — falava com frequência sobre a irrelevância dos limites de gênero:

“Prenez-moi donc pour un homme ou une femme, comme vous voudrez. […] je ne suis ni l’un ni l’autre mais que je suis un être.”

(Portanto, tomem-me por um homem ou uma mulher, como quiserem. […] Não sou nem um nem outro, mas sou um ser).

Como escritora, Sand criou personagens femininos e masculinos, no entanto, foi única ao tentar realizar essas possibilidades em sua própria pessoa e em sua própria vida — na verdade, grande parte do fascínio sentido por sua figura decorre de sua ambiguidade de gênero, afinal, estamos tratando de uma figura nascida há mais de duzentos anos. Além disso, o número crescente de estudos dedicados à sua obra foi o resultado do surgimento da escrita feminina como uma disciplina e o contexto em que suas obras foram consideradas com mais frequência foi o feminista.

Claro que George Sand não foi a primeira nem a única mulher a escrever, mas seu legado persiste para além dos livros: ela se destacou na Europa do século XIX por ser uma mulher que usava calças, era economicamente independente e que buscava romance — comportamento que se tornou aceitável para uma mulher solteira na maior parte do mundo atual, nos revelando que George Sand se aproxima mais da maioria das mulheres ocidentais hoje em dia do que qualquer outro autor do século XIX.

REFERÊNCIAS:

COLOMBO, Sylvia. Ciclo desvenda mistérios de George Sand. Folha de São Paulo, 2001. Disponível em:

DIDIER, Béatrice. George Sand : écrivain. « Un grand fleuve d’Amérique ». Presses Universitaires de France, 1998

EISLER, Benita. The passions of George Sand. Los Angeles Times, Entertainment & Arts, 2005. Disponível em: https://www.latimes.com/archives/la-xpm-2005-jan-02-bk-eisler2-story.html

FEMINISM & French Women in History: A Resource Guide.Library of Congress. Disponível em: https://guides.loc.gov/feminism-french-women-history/famous/george-sand

GEORGE Sand. Uol, 2008. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/biografias/george-sand.htm

HIDDLESTON, J.A.. George Sand and Autobiography. Reino Unido, Taylor & Francis, 2017.

M. M. George Sand’s unfinished legacy. The Economist. 2018. Disponível em: https://www.economist.com/prospero/2018/07/26/george-sands-unfinished-legacy

SAND, George. História da minha vida. Brasil, Editora Unesp, 2017.

Ananda Zimmermann Simões Pires é integrante da LAGRI e graduanda em Relações Internacionais pela Universidade do Vale do Itajaí.

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A LAGRI surgiu na Universidade do Vale do Itajaí com o objetivo de proporcionar aos acadêmicos do curso um aprofundamento nas pesquisas envolvendo gênero.