“Maioria dos que usam crack não são dependentes”, afirma ex-coordenador do programa Braços Abertos

Laio Rocha
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16 min readJan 29, 2017
Foto: Mídia NINJA

Especialista em drogas,o professor Dartiu Xavier conversou com a Mídia NINJA sobre os desafios no pós-Guerra às Drogas e no tratamento do crack nas grandes capitais

A política proibicionista em relação às drogas começou no Brasil a partir da ditadura militar, instituída em 1964. Esse movimento foi iniciado nos Estados Unidos, e influenciou países de todo o ocidente a adotarem práticas repressivas para banir o consumo, no que se chama Guerra às Drogas.

Foi dessa guerra que nasceu o tráfico de drogas e os diversos conflitos sociais que dele se desdobram. Dentre esses conflitos, está o consumo abusivo de drogas, como o crack, problema identificado em todo o mundo. Especificamente em São Paulo, o problema é mais evidente pela cena de uso na rua na chamada Cracolândia.

Para além do tráfico, a cracolândia é fruto de uma série de políticas governamentais frustradas no bairro da luz, região central da capital paulista. A partir de 1990, momento em que a miséria e a desigualdade social presente neste território passa a se combinar com a força do tráfico de crack, os problemas se aprofundaram sem que ações do poder público fossem tomadas, a não ser as velhas práticas repressivas.

Passados mais de 20 anos, em 2012 a cracolândia tornou-se foco da mídia após mais uma ação repressiva conhecida como Operação Dor e Sofrimento. A violência foi condenada e o governo foi obrigado a agir sem armas. A partir disso nascem novas políticas públicas para tratamento de dependentes químicos, o programa De Braços Abertos (DBA) e o Recomeço, com métodos e resultados diferentes.

Agora, 4 anos mais tarde, a nova gestão municipal do prefeito eleito João Dória (PSDB) coloca em voga novamente a Cracolândia. O tucano promete alterar profundamente o programa DBA e atuar com mais repressão no território, o que vem criando um clima de confusão em medo nos profissionais e dependentes daquela área.

É nesse contexto que a Mídia NINJA conversa com Dartiu Xavier, professor do ProAD (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes) da Universidade Federal de São Paulo, ex-coordenador do programa De Braços Abertos e um dos mais renomados especialistas brasileiros no tema de drogas.

A política de drogas no Brasil é muito repressiva, se baseando exclusivamente na Guerra às Drogas. Por que ainda não evoluímos nesse tema como outros países da América do Sul?

É difícil analisar as causas exatas. A minha impressão é que estamos indo na contramão da história, cada vez mais retrógrado nas políticas públicas para drogas. Embora a gente veja uma tendência mundial mais reacionárias, o mundo inteiro está revendo suas políticas de drogas e se flexibilizando. Há vários países regulando e legalizando. Os Estados Unidos e o Canadá, por exemplo, estão indo para uma linha francamente de redução de danos, se abrindo para outra visão, muito mais parecida com a Holanda.

Por outro lado, acho que também não há muita vontade política. Os políticos fazem o discurso que agrada o povão, que tem uma visão muito distorcida do problema das drogas, através da diabolização das drogas, que é fruto da Guerra às Drogas, iniciada nos EUA na década de 1970.

Mas os Estados Unidos já mudou, eles tem feito plebiscitos sobre o tema. A Califórnia realizou um para regular o uso recreacional e medicinal de maconha. No entanto, aqui os políticos estão mais interessados em ganhar voto do que desenvolver políticas eficazes. O mais eficaz é fazer regulação estatal, despenalizar e descriminalizar, ter políticas mais tolerantes. As políticas proibicionistas deram todas errado, foram um desastre no mundo inteiro, e estão sendo aqui.

O que a gente precisa e é o grande objetivo final é a legalização das drogas, a regulação estatal, não tem mais para onde ir com o proibicionismo. Só que para isso você precisa realmente esclarecer a população, por isso acho que a mídia é tão importante, para informar a população.

Ninguém está liberando drogas, está simplesmente dizendo que um assunto tão complicado não fique na mão de traficantes, e sim na mão de gente que vai ser responsável na regulação desse mercado. Ninguém deixa de usar drogas porque ela está proibida, prova disso é o número de usuários e dependentes.

Se você quer melhorar as coisas, e isso está acontecendo no mundo inteiro, propõe a regulação estatal e pronto. É preciso mudar a mentalidade pública, porque todo mundo entende errado esse fenômeno.

Recentemente houve um depoimento de um dos indivíduos que era um dos braços direito do Nixon, quando ele iniciou a Guerra às drogas. Ele declarou que na verdade isso foi um pretexto para eles fazerem um controle social de migrantes mexicanos e de negros. Ou seja, tinha um forte viés, não era a guerra, eles não estavam preocupados com a droga, foi uma desculpa para eles fazerem um controle social contra grupos indesejáveis.

Esse é ponto central, a partir desse movimento de Guerra às Drogas norte-americano foi feita uma lavagem cerebral no mundo inteiro, e a população brasileira é fruto disso, o que eles pensam sobre drogas é o discurso da Guerra às Drogas e é isso que precisa ser mudado.

Eles dizem que proibir diminui o número de usuários e de dependentes. Isso foi pesquisado com números, não aconteceu nada disso. Não é proibindo que você resolve, ao contrário, o proibicionismo incita formas mais perigosas de consumo.

Qual deve ser o caminho para a legalização das drogas no Brasil?

O modelo ideal é a regulação estatal. As pessoas perguntam: “mas você está defendendo a liberação?”, não, a liberação já existe. Você consegue droga em qualquer lugar, na hora que você quiser, principalmente nas grandes cidades do Brasil. O problema é que o controle desse mercado está na mão do traficante, e dessa forma não há controle de qualidade do que é vendido, nem preocupação de prevenção.

O uso medicinal no Brasil ainda é criminalizado, e constantemente ações são levadas ao STF para a corte decidir. Há chances do STF regulamentar o uso?

Chance existe, eu não sei se existe vontade política. Está muito claro hoje em dia que há uma indicação do uso de cannabis medicinal para uma série de doenças. Mas isso esbarra em dois problemas. Um é preconceito da população, com essa questão que já falei, e por isso políticos não querem associar o nome deles com drogas ilícitas.
Mas no caso da cannabis medicinal, tem um outro agravante. Os médicos reacionários que trabalham contra isso. Grande parte deles por ignorância, e uma outra parte por interesses escusos,

Existe um lobby de médicos que lucram muito com o proibicionismo. Por exemplo, essas internações compulsórias em hospitais psiquiátricos. Na verdade esses hospitais não estão cheios de dependente químicos, que pra começar nem deveria ser tratado internado, esso é um outro erro da medicina. Dependente deve ser tratado no modelo ambulatorial.

Você vai nesses hospitais e não vê só dependentes, também vê usuário. Ou seja, existe um lucro muito grande gerado pela internação de usuários. A maioria dos médicos acham que o fato da droga ser ilícita já é indicação de internação, mesmo que o cara seja usuário ocasional.

A lei brasileira abre uma brecha para uma definição subjetiva entre traficante e usuário de drogas, o que, de acordo com alguns especialistas, leva a um encarceramento em massa. Como a legislação pode avançar nesse sentido? Com o congresso que temos há alguma possibilidade disso acontecer?

Tem muita gente trabalhando em cima disso, inclusive eu e um grupo de pessoas na Plataforma Brasileira de Drogas. O ideal é a legalização e a regulação estatal, isso já resolveria esse problema. Isso não sendo viável a curto prazo, outras medidas podem melhorar muito a situação.

Descriminalizar o usuário: deixa de ser um crime o uso. Isso é uma escolha pessoal, O que justifica a criminalização é dizer que o indivíduo que está usando drogas está se matando. Isso não é verdade, quem usa drogas de maneira controlada não está se matando coisa nenhuma, está se divertindo, como quem usa álcool. A maioria das pessoas que usam álcool não estão se matando. Ainda assim, mesmo que a pessoa esteja se matando, a gente pode comparar com o suicida. Você vai querer criminalizar um suicida? Ninguém prende um indivíduo porque tentou se matar.

Temos que mudar a legislação e descriminalizar e despenalizar. No máximo haver uma sanção administrativa.

Outra medida que também não é o ideal, mas que já seria muito melhor, é estabelecer quantidades mínimas de porte. Por exemplo, se você estiver com até 100 gramas de maconha, ninguém tem que falar nada para você. Agora, o que não pode é você chamar de traficante o indivíduo que está com menos de 100 gramas de maconha. Há casos de pessoas que foram enquadradas como traficante com apenas 2 gramas de maconha,

Diversos estados norte-americanos estão mudando sua política de drogas. Muitos já legalizaram o uso medicinal e também o recreativo. No entanto, a política federal ainda privilegia a Guerra às Drogas. Por que isso?

Essa é uma grande dicotomia norte-americana, que existe em todas as áreas, não só na área de drogas. Há leis federais que não batem com as leis estaduais. Nesse caso, acaba valendo muito mais a lei estadual.

Tem muita gente lucrando com a Guerra às Drogas e é difícil ir contra isso. No Canadá, por exemplo, a coisa é muito mais fácil, porque tudo é estatizado, não é um país essencialmente capitalista. Para você ter ideia, todo o sistema médico lá está na mão do estado, não tem gente tirando lucro com a medicina.

Como é do estado, eles fazem a coisa mais eficaz e mais barata, que é a redução de danos. Por isso que as coisas funcionam muito bem lá em termos de políticas de drogas, de tolerância e de flexibilidade. Agora com o novo primeiro ministro, Trudeau, melhorou ainda mais.

Por que tantos estados norte-americanos estão regulando o uso, em especial nas últimas eleições em que Donald Trump foi eleito?

É horrível alguém como Donald Trump vencer as eleições, mas já estamos vendo que aquelas histórias dele construir um muro entre o México e os EUA era um jogo de campanha, não vai construir muro nenhum, seria ridículo. Apesar dele ser de direita, é suficientemente inteligente para saber que seria um desastre.

A gente precisa lembrar que grande parte dos EUA é muito conservador. Esses estados que regularam a maconha são estados mais desenvolvidos, o Oregon, o Colorado, a Califórnia, em que o Trump provavelmente não teria ganhado.

A política de Guerra às Drogas começou nos EUA e se estendeu por todo o mundo. De lá pra cá, facções criminosas cresceram vertiginosamente e uma guerra social foi instalada em todo o mundo. No Brasil, não foi diferente. Como você vê o crescimento a nível nacional de facções criminosas nos últimos 10 anos e qual a influência da Guerra às Drogas para isso?

Não dá pra justificar tudo em cima disso, mas tem um peso importante. Os dois maiores mercados do mundo são o das drogas ilícitas e o das armas. São as coisas mais lucrativas do mundo. O proibicionismo interessa sobretudo aos traficantes. Você está reforçando o crime no mundo inteiro quando apoia o proibicionismo. É da proibição que nasce o tráfico.

Desde a famosa “operação dor e sofrimento” do governo Alckmin e Kassab na região da Cracolândia, duas políticas públicas de tratamento foram implantadas, os programas Recomeço e o De Braços Abertos, do qual você ajudou na construção. Quais as diferenças entre os dois programas?
O Recomeço é um herdeiro dessa ação anterior, Dor e Sofrimento, não é uma inovação. Ele vem naquela mesma linha do modelo médico baseado na Guerra às Drogas, e é por isso que ele defende abstinência total como único objetivo de tratamento. Também é por isso que defende justiça terapêutica e internação compulsória. É um modelo coercitivo, impositivo, repressivo e reducionista.

Um estudo norte-americano muito interessante mostra que se você impõe a abstinência a um dependente, 70% deles não vão conseguir, será um fracasso terapêutico. Agora, se você não exige abstinência como pressuposto básico e tolera esse uso, que é a redução de danos, depois de dois a três anos, por volta de 70% está abstinente. Ou seja, a abstinência não induzida é muito mais fácil de ser conseguida do que aquela imposta.

O De Braços Abertos segue mais esses modelos pós-Guerras às Drogas, modelo que já foi utilizado em vários países da Europa, como Inglaterra e França, em que uma brasileira, Lia Cavalcante, coordenou um programa semelhante,

Outra questão é que o pessoal da Guerra às Drogas e o pessoal do Recomeço, tende a ver a população da cracolândia como uma população em que todos são dependentes. Isso não é verdade. Tanto que têm exemplos do De Braços Abertos de pessoas que só o fato de ir para um hotel e ter acesso à moradia, comida e trabalho, pararam de usar crack.

A gente precisa lembrar que a maioria das pessoas que usam crack não são dependentes. O uso do crack, como o uso de drogas no geral, não é o que faz essas pessoas estarem em situação de rua e miséria social, é o contrário, pessoas que não tem acesso a nada e tem uma vida tão miserável que a única coisa de bom que sobra na vida deles é usar a droga. A droga é consequência daquilo, não é a causa.

Logo, não podemos ter um programa para a cracolândia em que o pressuposto é a abstinência. É preciso dar alternativas de vida saudáveis para o dependente químico não precise usar droga, e se for usar, que seja de forma controlada. Essa é basicamente a grande diferença dos dois.

O problema é que o DBA foi o primeiro programa no Brasil de redução e danos em larga escala. Houve programas pontuais, tanto nosso lá do Proad, na Bahia teve outro, mas assim em larga escala em uma cidade foi a primeira vez. No entanto, teve só quatro anos para construir esse programa, que encontra muita resistência.

É difícil você ter um programa já pronto e maduro em quatro anos. Precisaria ter de 8 à 10 anos de programa para ter os resultados ideais, e mesmo em pouco tempo a gente já observou resultados muito satisfatórios.

No entanto, o DBA deixou de fazer muitas coisas, um pouco por que não deu tempo de amadurecer, e um pouco porque confiou que o Recomeço faria. Esse foi um ledo engano. Não dá para fazer uma parte, e um programa que tem uma ideologia absolutamente antagônica ficar com outra. É um contrassenso você delegar a um programa que defenda internação compulsória fazer alguma parte de alguma coisa que tem a ver com redução de danos, isso foi um grande equívoco. Acho que foi mais uma aliança entre o Alckmin e o Haddad.

Qual parte da assistência entrou nesse acordo?

O De Braços Abertos não tinha ambulatório para tratamento da população de dependente. Quando a gente começou a trabalhar lá, eu falei: “isso não vai funcionar”. Mas eles falaram, “o Recomeço tem, vamos usar o do Recomeço”. Eu avisei que não dá para usar um serviço que parte do pressuposto da abstinência, que não vai deixar o usuário entrar se você tiver usado drogas. Isso não funciona e não funcionou mesmo.

João Dória, prefeito eleito, disse que deve encerrar o programa. Seu secretário de saúde, por sua vez, disse que irá incorporar o programa ao Recomeço. Essa integração é possível, uma vez que os dois atuam em modelos diferentes de tratamento?

Eu acho que não, é impossível, porque eles partem de pressupostos diferentes. Só se você fundir os dois e mudar a mentalidade para que tenham uma ideologia única, mas não pegar o Recomeço junto com o De Braços Abertos. Se um vai entender que a abstinência é uma coisa a ser conquistada e o outro parte do pressuposto que a abstinência tem que ser uma coisa imposta, não dá nem pra começar a abordar os pacientes.

A redução de danos, método de tratamento do programa De Braços Abertos, é contestado pelo médico e coordenador do programa Recomeço, Ronaldo Laranjeiras. Em entrevista ao programa Roda Viva, ele disse que o método se mostrou pouco eficaz e está caindo em desuso. O que você acha sobre o método e quais as referências mundiais de sua utilização?

É, mas paradoxalmente ele [Laranjeiras] assina um artigo publicado em uma revista inglesa onde defende redução de danos. Então eu acho que ele ataca ou defende de acordo com os seus interesses pessoais.

Na Inglaterra, país razoavelmente reacionário em políticas de drogas, todo mundo está defendendo a redução de danos, e eu fiquei muito surpreso de ver um artigo científico publicado em uma revista inglesa onde ele é um dos autores. Ou seja, o discurso para a comunidade médica ele fala uma coisa, na prática faz outra. Quer dizer, que pessoa é essa?

Após três anos de funcionamento, o programa De Braços Abertos já sofreu diversas críticas dos próprios beneficiários, entre elas a falta de manutenção de prédios e a proximidade dos hotéis da cracolândia. Em palestra recente você afirmou que também tem uma série de críticas ao programa. Nesse sentido, qual é sua avaliação dos primeiros três anos do programa e em quais aspectos ele deve avançar para o futuro?

Essa questão dos hotéis, acredito também que não é o lugar ideal para se colocar essas pessoas, sobretudo porque esses hotéis estão cheios de traficantes. Na verdade parece que houve algum tipo de arranjo entre os traficantes e a prefeitura para que o programa pudesse ser implantado, mas você fica refém dos traficantes uma vez que aceita que o alojamento seja no lugar onde moram os traficantes. É um contrasenso.

Além disso, outras coisas teriam que ser mudadas. Primeiro a parte da moradia. Devia ter uma moradia mais adequada, não ficar alugando quarto de hotel onde alguns deles são de propriedade de traficantes. Isso tem que ser uma coisa separada.

O segundo ponto é a questão do trabalho. O trabalho oferecido não é de acordo com a capacidade do usuário. Por exemplo, se o indivíduo é um mecânico, ele vai ter que trabalhar catando lixo na rua? Qual é o sentido disso. Arruma um trabalho de mecânico. A secretaria do trabalho deveria ser mais adequada e ver que tipo de trabalho a pessoa se encaixa melhor e potencialmente vai dar mais certo.

A terceira mudança que eu acho fundamental é ter um ambulatório para tratamento de saúde, inclusive de dependência e de saúde de um modo geral, que a prefeitura não tem ainda. Quer dizer, eles tinham aqueles CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), mas isso é mais teórico, na prática não está funcionando e grande parte das pessoas em situação de rua continua sem assistência médica.

A internação compulsória, com a ampliação do programa Recomeço, proposto por Dória em sua campanha, deve ganhar força. Ela é efetiva? Há alguma pesquisa que legitime a utilização desse método? Quais outros países adotam essa política com sucesso?

Os países que adotam medidas mais repressivas e coercitivas em saúde são os países fundamentalistas, islã, China, todos os países mais evoluídos são incapazes de defender esse tipo de coisa. Isso reflete muito mais uma maneira totalitária de ver o mundo, higienista e segregacionista, do que uma preocupação com saúde pública.

Tem estudos mostrando que a eficácia é muito baixa de internação compulsória. Mais de 90% de quem é internado compulsoriamente recaí ao sair. Que raio de modelo é esse?

A explicação dessa recaída é primeiro porque atribui-se à situação de miséria à droga, e não é. Não adianta tirar a droga e o indivíduo permanecer miserável. Por isso o De Braços Abertos acertou. Em vez dele focar em tirar a droga, foca em dar moradia, trabalho, educação e saúde.

Um tratamento ambulatorial é 50 vezes mais barato do que uma internação de um dependente e é muito mais eficaz. Então para que você vai defender um modelo que não é eficaz e é 50 vezes mais caro? Porque tem algum interesse financeiro por trás, tem alguém lucrando. Justiça terapêutica e internação compulsória é mal caratismo de quem está propondo.

Eu lembro quando eu estava lá dentro [do De Braços Abertos], que tinham casos de pessoas que precisavam de internação, e eu dizia: “essa pessoa está grave, não tem só dependência, tem uma doença mental associada e está correndo risco de vida, precisa ser internado”. Não tinha vaga. Como é que você não tem vaga nem para quem quer e precisa ser internado, e vai por internação compulsória? É só para defender a ocupação de leitos de alguém que seja dono de hospital psiquiátrico e que está lucrando com isso. O estado e a prefeitura não tem leitos, eles terceirizam, e compram leitos da rede privada. Isso é um comércio horroroso e nojento, e tem muita gente lucrando com isso.

Fala-se muito sobre uma “epidemia de crack” e que o crack sendo utilizado uma só vez já vicia seu usuário. Isso é verdade ou mito?

Isso é um mito. Em primeiro lugar não poderia falar em epidemia porque epidemia é um aumento abrupto da quantidade de usuários, logo você precisaria ter duas medidas, e a gente não tem, temos uma medida. Como você vai dizer que uma coisa aumentou se não mediu duas vezes?

O único estudo sobre crack no Brasil que foi feito com seriedade é o estudo da Fiocruz, do Francisco Bastos, que mostra que a prevalência dos usuários de crack é muito menor do que sempre se disse. Não dá pra falar de epidemia.

O estudo da Fiocruz derrubou uma série de mitos, por exemplo, de que o indivíduo que entra no crack morre em poucos meses. Não é verdade, a média de tempo de uso de crack é de oito anos. São mitos que vão sendo jogados fora.

A outra questão é que existe usuário que crack que não é de população de rua, que é usuário de classe média, usuário controlado de crack. Tem estudos americanos que já mostraram que a maioria dos usuários de crack não é dependente.

Agora o grupo do Ronaldo tem um livro chamado ‘O tratamento do usuário de crack’ (risos). Imagina se eu publico um livro ‘O tratamento do usuário de álcool’, todo mundo vai ficar chocado, mas era pra ficar chocado com o outro título também. Eles acham que o usuário de qualquer substância ilícita é igual dependente. Isso não tem base científica, não existe qualquer lugar da ciência que diga isso, mas essas pessoas começam a manipular a população para ela acreditar.

A questão do uso está relacionada também à questão do tráfico e, por sua vez, a segurança pública. Por dia, o PCC, facção que domina o território, entra com milhares de quilos de crack, muitas vezes transportadas pelos próprios usuários. Sendo assim, os programas somente sem a atuação policial parece que enxugam o gelo. É factível a regulação do uso de crack para solucionar esse problema, através de sala segura, por exemplo?

Sobre a sala segura, é algo que fui consultado pelo governo da Colômbia. Eles me chamaram porque queriam instalar sala segura para uso nas cracolândias de Bogotá, que são muito maiores que as nossas, lá são vários quarteirões enormes de gente, de população de rua. Eles implantaram um modelo de redução de danos e a proposta era instalar várias salas de uso seguro.

É claro que esse modelo enxuga o gelo, porque não se faz a legalização. Se legalizasse ficava muito mais fácil. A sala de uso seguro já é um progresso e é um grande ganho, mas o ideal é que a droga seja fornecida pelo estado, não pelo traficante.

A nova Secretária de Desenvolvimento Social de São Paulo, Soninha Francine, defendeu o uso de maconha no processo de tratamento do crack. O que você acha desse método?

O estudo pioneiro sobre isso é nosso, do ProAD, que mostrou que um grupo de usuários de crack conseguiu largar o crack através do uso da maconha. O problema é que para dizer cientificamente que a maconha é um bom tratamento para o usuário de crack é preciso fazer um estudo chamado ensaio clínico, que eu não conseguir fazer ainda. Aliás está para está para ser feito, eu espero fazê-lo ano que vem, já está aprovado.

Mas o estudo preliminar é nosso, e fui propor isso na Colômbia, eles me chamaram por causa desse estudo. Eles viram que como medida de redução de danos, embora ainda não dê para falar que maconha é um bom remédio para o crack, dá para falar que ela é uma estratégia de redução de danos. Mas acho que a Soninha tem razão. Só que que com essa mentalidade Recomeço ela não vai conseguir implantar nada.

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