Machismo no Japão

Como a história interfere as relações igualitárias entre os gêneros na nação nipônica

Laís Botelho
6 min readSep 17, 2019
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A população japonesa é muito educada. São muito respeitosos na maioria das vezes quando veem um desconhecido na rua. Talvez seja por isso que eu passei algumas semanas sem notar o quão gritante era, assim como na maior parte do planeta, o machismo.

O assunto me veio em mente no meu período menstrual, quando fui comprar absorvente no supermercado. Pra minha surpresa, ao abrir a sacola de compras, o pacote estava embrulhado em uma sacola preta; fiquei curiosa, e perguntei à uma amiga que mora há alguns anos na Japão a razão: ela me explicou que é um modo de evitar constrangimento. Precisamos mesmo ter vergonha de algo que é natural da nossa biologia? Algo que as mulheres passam todos os meses, e que da possibilidade à vida? Pelo jeito, no Japão acreditam que sim.

A partir disso, resolvi me inteirar mais do assunto, pesquisando sobre as famílias e as relações culturais entre homens e mulheres japoneses.

Por volta do século XVIII, foi estabelecido o sistema legal ritsuryo no país com o desenvolvimento do sistema patriárquico, e as famílias começaram a ser lideradas pelo marido. Na era Meiji (1868–1912), o código civil japonês estabeleceu o koshuken, na qual a autoridade da família seria baseada no homem e passada para o filho mais velho da família, o qual também seria o único herdeiro legitimo das propriedades familiares, e o restante dos filhos não herdaria nada. Além de tudo isso, somente a esposa seria culpada de adultério. Começava então, uma cultura sexista.

Durante a Segunda Guerra Mundial, cerca de 200 mil mulheres da população japonesa foram conscritas ao que ficou conhecido como mulheres do conforto/mulheres do alívio na história; esse trabalho constituía em uma prostituição de mulheres jovens de países sob domínio do império japonês levadas de suas casas contra sua vontade para servir como servas sexuais às Forças Armadas do país.

Ao final da Guerra as coisas melhoraram um pouco; as mulheres começaram a ser consideradas como fonte de trabalho, quando o Japão havia perdido muitas vidas nos conflitos. As mulheres finalmente conquistaram o direito ao voto e direitos iguais na constituição. Contudo, ainda hoje prevalece o provérbio japonês: “Boa esposa, boa mãe.”, e as mulheres do país ainda continuam a lutar contra o machismo institucional.

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Em 2008 foram descobertas nove escolas de medicina que alteravam e manipulavam os testes no Japão, principalmente para excluir o a admissão do publico feminino nas universidades. Segundo a BBC, o motivo seria que muitas das graduadas do público feminino no final deixariam a prática para ter filhos e criá-los. Infelizmente, a norma de gênero está enraizada na cultura japonesa, e ser dona de casa e mãe em tempo integral ainda é considerada o principal papel da mulher japonesa na sociedade. Entretanto, essa visão está sendo gradativamente remodelada, já que o número de mulheres que não estão mais dispostas a desistir de sua carreira por suas famílias só cresce no Japão. Por conta disso, há ainda uma queda gigantesca no número de casamentos no país e uma das menores taxas de índice de natalidade por décadas, segundo a revista Times em 2018.

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Os papéis de gênero não são tão gritantes como eram há algumas décadas atrás, mas ainda estão muito presentes na nação. É um assunto preocupante em quesitos como o anime, que é a paixão nacional e algo que representa muito o Japão nas sociedades Ocidentais. As mulheres de anime tendem a possuir apetite sexual intenso, remetendo as Mulheres de Conforto da guerra, segundo a escritora e jornalista Kate Harveston. Além disso, passam por situações comuns, mas misóginas, como cenas em que preparam comida para um personagem masculino ou a constante representação e foco nos seus seios, com forte sexualização do corpo feminino.

Gabriela Bulkool, de 20 anos, é fã de anime desde seus 11 anos de idade, e já percebe o machismo há muito tempo: “No anime Naruto, que é um dos mais populares que existem, e meu preferido, podemos ver com clareza. Tem um personagem, o Jiraya, que é um velho tarado, mas é tratado como engraçado. E muitas atitudes dele chegam ao constrangimento da personagem, mas ele é abordado como um cara legal, para o público gostar dele”, ela comenta. Ela também salienta o fato de que grande parte do público masculino que assiste as series são machistas; mas a misoginia dos animes em geral não é descarada. “Acho que tem mudado nos últimos anos, há uma preocupação maior com essas questões nos últimos filmes e séries lançadas.”, ela termina.

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A sociedade japonesa também conta com o sexismo no esporte. O sumo, uma das práticas mais tradicionais do Japão, conta com grande influência da religião Shinto, que afirma que as mulheres são impuras por causa do sangue menstrual, e não podem entrar no ringue da competição.

Tudo isso reflete drasticamente no relacionamento entre homem e mulher no país, e segundo o site The Diplomat, ainda esse ano, o Japão atingiu o maior número de casos de violência doméstica da história. O Departamento Nacional de Polícia Japonês registrou 77,480 ligações de denuncias no ano de 2018, batendo o recorde sendo o 15th crescimento anual consecutivo desde 2003.

Nos anos 1990, a participação das mulheres no campo de trabalho era a menor entre os países desenvolvidos. Mas, como mulheres, há sempre a força de superação. No começo desse ano, o World Economic Forum, na Suiça, contou com a participação do Primeiro Ministro japonês Shinzo Abe, que ressaltou que a força de trabalho feminino bateu 67%, maior número de todos os tempos pro país, superando assim até mesmo EUA, em que a participação é somente um pouco acima de 57%. Esse desenvolvimento tão grande se deve à proposta de Abe de recuperar a economia japonesa com um projeto chamado “Womenomics”.

Esse termo, criado por pela vice-presidente da empresa Goldman Sachs,

Kathy Matsui

Kathy Matsui, une as palavras do inglês ‘women’(mulheres) e ‘economic’ (economia) e visa ampliar e melhorar a economia e o produto interno bruto com o encorajamento da força da participação da mulher no mercado de trabalho e reduzir as disparidades salariais entre os sexos. Desafiando estereótipos e empoderando a parte feminina da população.

Há, com certeza, melhoras. Em 2017, a jornalista Shiori foi a primeira mulher japonesa no país a falar publicamente sobre violência sexual a qual ela foi infligida. Nem tudo são flores, infelizmente, e houve uma repercussão negativa diante do público, incluindo ameaças de morte. Mas as mulheres tem ganhado voz. E estão cada vez mais presentes nas discussões públicas e nas decisões coletivas japonesas.

Hoje, porém, o governo japonês tem obrigações com as Nações Unidas e os direitos humanos. É necessário que o Japão, assim como todos os outros países do planeta, lute para eliminar as diferenças e descriminações entre homens e mulheres. Pequenos detalhes fazem toda a diferença e o país tem batalhado para que o sistema se torne cada vez mais igualitário.

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