O monstro e a água — uma fábula por Del Toro

Larissa Costa
6 min readJan 31, 2018

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Ilustração por: Gabriel Rios

Se eu fosse falar sobre A Forma da Água — se fizesse isso — o que eu te contaria? Eu me pergunto…

Eu te contaria sobre a fotografia? Aquele azul esverdeado que dá o tom de fantasia ao filme e nos faz mergulhar no conceito da água, que marca todas as transições entre as cenas…

Ou eu contaria sobre a trilha sonora? Singela e diversa… que poderia muito bem estar saindo de uma caixinha de bonecas na França, ou de um show de Carmen Miranda no Brasil.

Ou então eu te contaria sobre a direção de arte? Um espetáculo de cenário e figurinos que imediatamente nos coloca nos anos 1960, combinando técnicas da velha e nova guarda do cinema com tanta maestria.

Ou talvez eu apenas te alertasse sobre a veracidade dos fatos desse conto, que consegue causar tanto estranheza quanto empatia em quem o assiste. Um conto de amor, perda… e um monstro.

É parafraseando a cena de abertura do mais novo filme de Guillermo Del Toro que introduzo o quanto é difícil falar dessa obra. A Forma da Água é, simples e genuinamente, um conto de fadas moderno: uma princesa sem voz encontra o amor na estranha criatura que inicia como monstro e termina como heroi.

Se você ainda não assistiu ao filme, confira o trailer legendado aqui!

Estamos num contexto de Guerra Fria e Elisa (Sally Hawkins), a princesa em questão, nos envolve em sua rotina metodicamente cronometrada, mas cheia de atrasos.

A mulher muda de poucos amigos e muitos prazeres simples na vida logo nos remete à protagonista de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), seja por seus trejeitos ou pela ambientação sonora do filme — composta pelo também francês Alexandre Desplat.

É no seu trabalho noturno como faxineira em um laboratório do governo norte-americano que ela conhece a criatura aquática nativa da América do Sul. Vinda de um lugar onde era adorada como um deus, ela passa a ser tratada como um verdadeiro monstro, uma promessa de levar os EUA à frente dos soviéticos durante a guerra. Tratado de forma totalmente hostil, o monstro só reconhece um traço de bondade humana quando conhece Elisa.

Em suas visitas sorrateiras, a faxineira vai ganhando a confiança do ser com alguns ovos cozidos e músicas tocadas numa vitrola. Pouco a pouco eles desenvolvem uma grande afeição um pelo outro, num gesto realmente lindo de se comunicar.

Sem usar palavras, Del Toro consegue nos convencer não só da racionalidade do monstro, mas também de sua virtude. Quando se der conta, você já estará torcendo pelo final feliz da mulher com o homem-peixe — exatamente como diretor mexicano se sentiu assistindo O Monstro da Lagoa Negra (1954) aos 6 anos de idade.

O filme é uma das referências mais claras em A Forma da Água, já que trata da história de amor entre um monstro aquático e uma humana. A diferença é que, no longa mais recente, o final é repaginado por Del Toro.

Uma das vontades do diretor era, inclusive, gravar A Forma da Água em preto e branco, mas teve que ceder às exigências do estúdio para conseguir o financiamento da produção. Ainda assim, manteve as cores mais escuras na fotografia.

O Monstro da Lagoa Negra (1954) vs. A Forma da Água (2017)

Quem assistiu às adaptações de Hellboy (2004 e 2008), também dirigidas pelo mexicano, vai lembrar do personagem Abe Sapien quando ver a criatura de A Forma da Água.

Ambos os personagens foram interpretados pelo mesmo ator, Doug Jones, que em entrevista já garantiu: apesar de parecerem semelhantes, são personagens completamente diferentes.

Doug Jones como a criatura de A Forma da Água (à esq.) e como Abe Sapien (à dir.)

Já os aficionados por videogames irão reparar que a ambientação do filme tem uma certa influência de Rapture, cidade fictícia do game Bioshock (2007). Del Toro já declarou não ser muito fã de adaptações cinematográficas de jogos, mas que via isso funcionando muito bem com Bioshock e adoraria dirigir uma adaptação dele para os cinemas.

Bom, se isso não vier a acontecer, ao menos tivemos um gostinho de como o diretor representaria esse cenário nas telonas.

Rapture, a cidade subaquática fictícia de Bioshock.

Dá pra perceber pela bagagem de Del Toro o gosto por monstros e fantasia, o que faz de A Forma da Água sua perfeita obra-prima até então. No entanto, ela tem sido alvo de acusações de plágio por parte dos herdeiros e fãs de Paul Zindel, autor de Let Me Hear You Whisper (1969).

A peça em questão conta a história da zeladora de um laboratório do governo que se apaixona por um golfinho — outra criatura aquática — ali aprisionado. Diversas situações encenadas em A Forma da Água teriam sido “extraídas” da peça de Zindel, apesar da Fox ter negado as acusações.

O Hollywood Nerd fez uma comparação extensa entre as duas obras aqui.

Del Toro co-escreveu o roteiro de A Forma da Água com Vanessa Taylor (uma das responsáveis por Game of Thrones) e sempre se mostra muito aberto sobre suas inspirações, o que faz toda a situação de plágio um pouco duvidosa.

Sendo verdade ou não, o filme concorre na categoria de Melhor Roteiro Original no Oscar desse ano, onde é líder de indicações: 13 no total, incluindo Melhor Filme. Del Toro já havia sido indicado apenas uma vez ao prêmio da Academia, em 2007, pelo roteiro original de O Labirinto do Fauno (2006).

A Forma da Água consegue trazer às telas o perfeito equilíbrio entre o mundo do faz de conta e a realidade. É um conto de fadas para os adultos que ainda gostam de escapar do real e expandir a imaginação. É uma reunião entre musicais clássicos de Hollywood e ficção científica, o que faz brilhar os olhos dos amantes de cinema assim como os de Del Toro com filmes de monstros.

É para todos aqueles que de alguma forma não se encaixam em padrões da sociedade e, assim como Elisa, sentem-se como peixes fora d’água — até que percebam que é preciso viver na água e não na terra se um peixe quiser ser. E essa é a moral da história, que, como boa fábula que é, A Forma da Água não poderia deixar de ter.

Mas qual a forma da água? Fica a seu critério. Algo tão poderoso e maleável como a água não poderia por definição ser uma coisa só. Ela se adapta ao que está ao seu redor e toma a forma que lhe é propícia.

Se a água não se encaixa em algum lugar, o problema não está nela, e sim no recipiente ou meio que não lhe é adequado. Assim como Bruce Lee, Del Toro quer deixar uma única mensagem àqueles que se vêem desajustados: “Seja água, meu amigo”.

A Forma da Água estreia nos cinemas brasileiros em 01/02.

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