Três anúncios para mais de um crime

Larissa Costa
5 min readFeb 4, 2018

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Ilustração por: Gabriel Rios

Imagine que você é uma mulher. Divorciada de um homem que a agredia. Mãe de dois adolescentes. Um filho que se faz cada vez mais distante. Uma filha que defende a palavra do pai acima da sua e te chama de hipócrita em meio a constantes discussões.

Sempre discutiam. Até que um dia, ela não volta pra casa. Não, ela não foi morar com o pai. Ela saiu sozinha e foi brutalmente assassinada na beira da estrada deserta que é o caminho de casa.

Já se passaram sete meses e sua morte ainda é um mistério: o responsável não deixou nenhum rastro e a polícia não chegou a lugar nenhum em suas investigações. Você quer um culpado. Você exige justiça.

Mas quem vai dar ouvidos à histeria de uma mãe solteira, cuja caveira de antipática já foi feita pelos moradores da pequena cidade de Ebbing, Missouri? Qualquer palavra valeria mais que a sua, não é mesmo? Mas você não desiste. Você se vê com duas opções: fazer grande ou ir pra casa — e a segunda não está em jogo.

Naquela mesma fatídica estrada, que pra você é tanto uma cena de crime quanto um caminho da roça, você vê a oportunidade de fazer grande bem ali, estampada na sua cara.

Três letreiros vazios em sequência. Três espaços em branco para expor sua indignação e vindicar um posicionamento da polícia local. Três anúncios… para um crime.

Confira aqui o trailer legendado de Três Anúncios para um Crime

Essa é a trama vivida por Mildred Hayes, a personagem de Três Anúncios Para Um Crime que, interpretada por Frances McDormand, domina a cena no novo longa de Martin McDonagh.

O diretor e roteirista inglês de carreira sólida no teatro fez poucos trabalhos no cinema. Esse é seu terceiro longa-metragem e o primeiro que não é protagonizado por Colin Farrell e nem fala de europeus.

Muito pelo contrário: a história toma lugar numa cidadezinha bem interiorana dos EUA, no estado de Missouri. Apesar de fictícia, a cidade de Ebbing poderia muito bem ser real.

McDonagh diz ter tido a ideia para a história há cerca de vinte anos, durante uma viagem de ônibus pelo sul dos EUA — região conhecida por seu histórico de racismo, misoginia e toda sorte de preconceito.

Na estrada, ele viu passar três letreiros com uma mensagem parecida à que Mildred usa para protestar seu rancor no filme. Desde então, o pensamento de quem teria tanta dor, raiva e tristeza acumuladas a ponto de anunciar algo como aquilo não saiu da sua cabeça.

Além disso, o fato de ainda não ter produzido nada para o cinema que contasse com uma personagem principal forte feminina foi o impulso que faltava para McDonagh decidir produzir o filme. Apesar de tê-lo feito para o teatro, o roteirista recebia algumas críticas por não ter mulheres protagonizando suas histórias nas telonas.

Em Três Anúncios, McDonagh consegue mudar esse histórico com louvor, criando uma personagem forte, complexa e muito bem atuada por Frances McDormand, atriz para a qual McDonagh escreveu o papel desde o princípio.

E por falar em papeis… é cada personagem mais interessante que o outro! Podemos ver a profundidade de cada um conforme a narrativa vai sendo construída, ainda mais combinados com atuações de tanto talento.

Essa foi, inclusive, uma grande preocupação do diretor para fazer o filme. Analisando seus dois trabalhos anteriores, McDonagh percebeu que lhe faltava uma certa empatia com os personagens, e por isso estava determinado a melhorar esse quesito em Três Anúncios — algo que fez com habilidade.

Cada personagem se revela uma camada mais denso com o desenrolar da trama, que os relaciona sem os tornar dependentes dos arcos uns dos outros. É tanta coisa ali por trás que você consegue até imaginar um spin-off dedicado para cada personagem sendo realizado.

Além de Mildred, o coadjuvante policial Dixon merece atenção na história. Interpretado por Sam Rockwell, ele é a representação de preconceitos enraizados e socialmente aceitos. Abusando do poder conferido a ele por seu distintivo, Dixon despreza negros, mulheres e gays, fazendo piadas e até usando a força bruta. Suas atitudes são completamente intragáveis e excessivamente violentas, o que não gera empatia alguma com o personagem. Entretanto, seu arco toma um rumo que nos faz questionar sua total perversidade — e é aqui que as coisas ficam delicadas. Cuidado com os spoilers!

Veja bem: à medida em que vamos entendendo as motivações de Dixon, fica clara a sua necessidade de ser o centro das atenções a qualquer custo, mesmo que tenha que bancar um herói às avessas para ser reconhecido por seus feitos no final do dia. Isso quer dizer que ele tentou se redimir? Há controvérsias.

A reflexão que se pode tirar dessa história recheada de violência e humor negro é: ninguém é totalmente bom, assim como ninguém é totalmente mau. De início, tentamos nos agarrar a algum personagem para chamar de vilão ou de mocinho, mas em meio caminho de filme já não se vê mais ninguém inteiramente “puro”. Ao final percebemos que todos são peças de um grande jogo de interesses pessoais e ninguém ali botaria a mão no fogo por ninguém.

Não há porque se prender à velha dicotomia do bom x mau. Somos uma mistura dos dois e, na perspectiva do filme, jogamos do lado que for preciso pra conquistar o que almejamos.

Os personagens são intrinsicamente movidos pela raiva, que em muitos momentos é quase compreensível. McDonagh consegue abordar temas pesados em sua obra, o que o coloca numa posição suscetível a polêmicas críticas envolvendo suas escolhas criativas.

Três Anúncios Para Um Crime traz uma crítica social muito sutil a diversos estigmas da sociedade atual, colocando suas características em traços da personalidade de personagens meticulosamente construídos, mas polêmicos. Mesmo não sendo o personagem principal da trama, Dixon e sua suposta redenção atrai muitos comentários e divide opiniões entre a crítica mundial.

Ainda assim, o filme já coleciona vários prêmios, principalmente por suas atuações. Os destaques, claro, vão para Frances McDormand e Sam Rockwell, que dão vida à Mildred e Dixon. Ambas as atuações já foram premiadas no Globo de Ouro, SAG Awards e Critics Choice Awards, e estão indicadas ao Oscar em suas respectivas categorias.

E em se falando de Oscar, o filme é um dos favoritos ao maior prêmio da celebração, juntamente com A Forma da Água. Contudo, a não indicação de McDonagh para melhor direção deixa as previsões um pouco incertas. Se Mildred estivesse desse lado da tela, seus três anúncios diriam algo diferente:

“Indicado a Melhor Filme

E nada para a direção de Martin McDonagh?

Como pode, Academia?”

Três Anúncios Para Um Crime estreia em 15/02 no Brasil.

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