Bastardos Inglórios e a historicidade

História no cinema
5 min readJun 7, 2024

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Larissa Onusik
Cursando História pela UNESP Franca.

Sabemos que a ficção não necessariamente tem ligação com a realidade histórica, no entanto, as vezes há o desejo de que algumas coisas que aconteceram nos filmes fossem realidade. Essa é a sensação que há por muitos quando Quentin Tarantino, em Bastardos Inglórios, aniquila toda a cúpula nazista de uma vez, inclusive seu líder Adolf Hitler. A produção que chegou ao Brasil em 2009 foi ovacionada pelo público. O filme ganhou em diversas categorias de várias premiações, como Cannes Film Festival, Oscar, Critics’ Choice Award, dentre muitos outros. Para muitos críticos, o filme havia sido a melhor produção do diretor até então.

Tarantino com o elenco principal do filme. Fonte: IMDb/Reprodução

O diretor retrata a morte de Hitler de uma maneira em que não haveria dúvidas de sua morte, diferentemente do ocorrido na vida real. O relato mais difundido é que Hitler se suicidou já nos momentos finais da guerra. De acordo com Ângelo Otavio Garcia Rechi, o ditador desejava tomar veneno, para testar a intensidade da substância, pediu para que os seus subordinados testassem na sua cachorrinha. Quando a vê morta, conclui que é potente o suficiente. Nesse episódio de crueldade, fuhrer já estava em um bunker, onde passou seus últimos momentos. De acordo com o autor:

O que aconteceu a seguir nunca foi completamente esclarecido. Segundo declarações da maioria dos sobreviventes do bunker, só se ouviu um tiro. Logo depois, o comandante da guarda SS, Rattenhuber, entrou no aposento do casal. Hitler estava sentado, curvado sobre o sofá, o rosto ensanguentado. Ao lado dele sua esposa, com um revólver não usado sobre os joelhos. Ela se envenenara. Os autores soviéticos dizem de modo feral que Hitler também ingeriu veneno. Mas há contradições na história dos soviéticos. Por um lado, eles negam que houvesse sinais de bala nos restos do crânio. Por outro lado, nessa mesma investigação se procurou com afinco descobrir quem, do circulo mais intimo de Hitler, recebera a missão de dar-lhe, por razões de segurança, o “tiro de misericórdia”. Isso confirma a hipótese de que tenham querido fornecer uma reconstituição do suicídio ditada por motivos políticos. É como um eco dos esforços diversas vezes empreendidos antes para minimizar Hitler por meio do desprezo, como se certas mentalidades se recusassem a conceder que os moralmente repreensíveis possam demonstrar alguma capacidade de força. Assim como se tinha contestado sua Cruz de Ferro, seus dotes de estrategista político, ou, mais tarde, de estadista, agora lhe negavam postumamente a coragem exigida pela morte por um disparo único e preciso, manifestamente mais dura (FEST, 2017, p. 840).

Por dentro do bunker onde Hitler viveu seus últimos momentos. Fonte: William Vandivert/ Life Pictures/Shutterstock

O desejo que a história fosse diferente, e que o fascista pagasse por seus incontáveis crimes, é o que faz o público não se impactar com tristeza na maneira que Tarantino relata a morte da alta cúpula nazista, que acaba com todos no mesmo dia.

De acordo com o Rechi, que procurou investigar como o filme foi recepcionado em território brasileiro, relatou que as cenas de violência não incomodam o público. A narrativa do filme cativa de maneira que o faz não rejeitar a estória. As duas primeiras cenas do filme são de total contraste. A primeira cena mostra o “Caçador de judeus”, o coronel Hans Landa (Christoph Waltz), na França, na casa de Perrier LaPadite (Denis Menochet), francês que está abrigando debaixo de sua casa uma família de judeus. O modo que o personagem de Waltz é construído e o jeito que a cena se desenrola faz com que não haja uma repulsa total ao personagem nesse momento, uma vez que o mesmo é muito cordial e não causa o choque da guerra. O coronel acaba ordenando a morte dos judeus que estavam escondidos debaixo da casa, e apenas uma das meninas judias acaba se salvando, Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent).

A segunda cena mostra o Tenente Aldo (Brad Pitt), um estadunidense sulista que tem como propósito matar o máximo de nazistas que puder. Ele diz que irão para a Alemanha com o único objetivo de acabar com os nazistas. Essa cena já mostra uma realidade mais brutal, como se “caísse a ficha” que é uma guerra sangrenta e cruel e que naquele momento há um extermínio ocorrendo. Para Rechi, estes momentos se sobrepõem, como se o segundo momento fizesse o público se dar conta que se trata da Segunda Guerra Mundial. A história mostra Shosshana e Aldo com um objetivo em comum: matar Hitler e acabar com a guerra.

O filme é repleto de referências e caberia um aprofundamento de cada capítulo de maneira detalhada. No entanto, o objetivo dessa análise é perceber como a realidade percebeu essa ficção. Apesar de vários elementos curiosos e intrigantes que Tarantino coloca em seu filme, o enredo não reflete a realidade histórica. Há elementos que são referências claras a realidade, como o copo de leite que o Hans Landa pede em dois momentos no filme, e que diz muito sobre seu significado. O leite remete os grupos de supremacistas brancos que acreditam na superioridade da raça ariana.

Foto: Reprodução/YouTube

Mas em stricto sensu, o filme não reflete a realidade, reflete a indignação e revolta que esse momento ecoa até os dias de hoje.

Rechi ainda diz que, dentre todas as críticas do filme, não é incomodo com as distorções históricas que o filme faz, o que o questiona até que ponto as pessoas se preocupam com a realidade histórica. A pergunta abre um leque de possíveis respostas e inúmeras reflexões. Considerando o cenário atual, se percebe uma ignorância sobre fatos básicos, que ainda nos dias de hoje são produzidas distorções, como as fakes news. Em tempos de negacionismo é essencial levantarmos essas bandeiras de questionamento e em como a História tem um papel fundamental para a formação de cada cidadão, afinal, ela não é apenas a história do passado.

Como dito anteriormente, é claro que nenhum filme precisa cumprir com a realidade. Tarantino mistura muitas referências de estilos de produção cinematográfica, e cumpre com o objetivo de alcançar um vasto público. De todo modo, trata-se de uma produção muito importante que relembra esse episódio que nunca deve ser esquecido. No final das contas, a mensagem do filme é clara: o horror ao nazismo e todas as atrocidades feitas.

Referências bibliográficas

ANGELO OTÁVIO GARCIA RECHI, 2017, Brasília. “Bastardos Inglórios”: A recepção de um filme de guerra contemporâneo em sites especializados no Brasil (2009–2010). Brasília: XXIX Simpósio Nacional de História, 2017. 12 p.

FEST, Joachim. Hitler. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. 1056 p.

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