A bissexualidade como fator de desigualdade social na saúde mental

Larissa Rainey
8 min readSep 23, 2018

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Disclaimer: eu escrevi esse texto para o curso de Psicologia da Saúde, ministrado na University of Sussex. Como ele foi traduzido para o português, me perdoem se alguma frase soar estranha. Eu dei o meu melhor. Como o texto tinha um limite de palavras, não tem a profundidade que eu gostaria. Digamos assim que é um pontapé.

Foto retirada do Huffington Post.

A saúde mental de um indivíduo pode ser afetada por inúmeros fatores; dentre eles estão a predisposição genética, fatores ambientais, história de vida e desigualdades socioeconômicas. A orientação sexual vem sido estudada como um importante aspecto nessas desigualdades — sabe-se que indivíduos não-heterossexuais sofrem discriminação e violência em diversas áreas de suas vidas, afetando negativamente a saúde mental dessa população. Enquanto os estudos de orientação sexual dentro da Psicologia vêm aumentando, a comunidade bissexual continua sendo ignorada — essa mesma comunidade que tem os maiores números de depressão, transtorno de ansiedade e comportamento suicida. O objetivo desta dissertação é discutir o porquê da comunidade bissexual se encontrar em risco, bem como questionar a qualidade dos serviços de saúde mental que lhes são oferecidos e sugerir possíveis linhas de pesquisa e intervenção para o futuro.

A desigualdade econômica é uma das mais visíveis; é mais fácil entender como a falta de dinheiro, emprego e oportunidades pode afetar a saúde de um indivíduo. Entretanto, aspectos sociais são mais difíceis de serem detectados, com efeitos igualmente devastadores. Quando uma pessoa tem acesso desigual a recursos e serviços oferecidos por conta de certos critérios — como gênero, etnia e orientação sexual — considera-se que ela é vítima de desigualdade social (Blackburn, 2008).

Meyer (2003) identificou e categorizou três diferentes formas de estresse relacionadas à orientação sexual. O primeiro processo é externo, relacionado a eventos e condições estressantes; o segundo é a expectativa desses eventos, causando grande ansiedade; o terceiro é a internalização de atitudes sociais negativas. A partir desse modelo, entende-se como a discriminação cria um ambiente social hostil — o estresse constante vivenciado por essas minorias resulta em sofrimento psicológico (Persson & Pfaus, 2015). Contudo, o modelo de Meyer se limita quando considera apenas a homofobia — descartando a bifobia, nome dado ao estigma e discriminação específicos sofridos por bissexuais (Persson & Pfaus, 2015).

Uma rápida linha do tempo pode ser traçada para melhor compreender o relacionamento entre orientação sexual e saúde mental. A atração por indivíduos do mesmo sexo e comportamentos relacionados eram considerados patológicos, e os serviços de saúde mental destinavam seus esforços para converter a pessoa para a heterossexualidade. Depois de 1970, houve um grande esforço por parte de grandes órgãos da Psicologia (como a American Psychological Association) em afirmar que essas atrações e comportamentos não eram intrinsecamente doentios (Page, 2004). É interessante notar que enquanto a homossexualidade já foi considerada uma doença mental, a bissexualidade não. Entretanto, ela é constantemente esquecida pelos estudos da Psicologia — geralmente é ensinada como um subtópico da homossexualidade ou deixada totalmente de lado. Por exemplo: a escala Kinsey, inicialmente utilizada para entender a orientação sexual como um espectro, foi estabelecida em 1948 e mesmo assim a palavra “bissexual” não é usada em momento algum (Volpp, 2010).

Uma definição compreensiva de bissexualidade é “o potencial de ser envolvido sexualmente e/ou romanticamente por indivíduos do mesmo ou de qualquer outro gênero” (Dobinson et al., 2005). Essa fluidez desafia hipóteses binárias e é a maior causa da bifobia — gerando estigma, discriminação e exclusão, tanto nas comunidades heterossexuais quanto nas homossexuais. Por conta dessa bifobia, pesquisadores identificaram altas taxas de ansiedade, depressão, suicídio e automutilação entre indivíduos bissexuais (Johnson, 2016).

Enquanto há um maior número de pessoas bissexuais do que homossexuais, eles recebem menos atenção nas pesquisas científicas (Ross et al, 2016). Bissexuais correspondem a 10% ou menos dos entrevistados nos estudos que teoricamente os representam (Dobinson, Macdonnell, Hampson, Clipsham & Chow, 2005). Na verdade, é comum colocar bissexuais na mesma categoria de homens gays ou lésbicas, sem considerar as especificidades de cada comunidade.

Alguns dos estereótipos negativos associados à bissexualidade são: sua invalidação enquanto orientação sexual; entender bissexuais como sexualmente promíscuos, confusos, desonestos com seus parceiros; associados às DSTs/HIV, entre outros. Um estudo conduzido em 2003 sugere que jovens bissexuais são mais propensos a desenvolverem doenças mentais, por conta de sentimentos de não-pertencimento à comunidade alguma e pressão para escolher uma identidade hétero ou homo. Também foi reportado um aumento na isolação e confusão desses jovens, porque grupos voltados para jovens LGBT geralmente não são acolhedores aos bissexuais (Dobinson et al., 2005). Ou seja, enquanto o envolvimento ativo na comunidade LGBT pode ser extremamente benéfico para homens gays ou lésbicas, pode ser igualmente prejudicial para a saúde mental de pessoas bissexuais (Persson & Pfaus, 2015).

O efeito desses estereótipos negativos é uma explicação possível para a deterioração da saúde mental de bissexuais. Outros resultados parecidos são encontrados em diferentes contextos socioculturais. Enquanto algumas pesquisas sugerem que predisposições genéticas são cruciais para entender como alguém responde ao estresse, compreende-se que sofrer discriminação constante muda efetivamente os padrões de pensamento do indivíduo. Por exemplo, ao desconsiderar a bissexualidade como uma orientação sexual válida significa que pessoas bissexuais têm maior gasto de energia emocional diária. Eles devem decidir se desafiam as normas binárias (constantemente expondo ou não sua sexualidade) ou se permanecem escondidos, até para os próprios parceiros. (Barker, 2015). Estudos apontaram que mulheres lésbicas são mais propensas a terem atitudes negativas em relação às mulheres bissexuais, fazendo com que muitas não revelem sua sexualidade nos relacionamentos (Persson & Pfaus, 2015).

Quase metade das mulheres bissexuais e mais de um terço dos homens bissexuais já consideram ou tentaram suicídio. Mulheres bissexuais são 5,9 vezes mais propensas a cometer suicídio do que mulheres heterossexuais; comparando com mulheres lésbicas, esse número vai para 3,5 vezes (Johnson, 2016). Os diagnósticos mais comuns entre essa população é: depressão (38%); transtorno de ansiedade generalizada (10%) e transtorno de estresse pós-traumático (7%). Outros diagnósticos incluem transtorno bipolar (7%) e transtorno de personalidade Borderline (< 3%) (Page, 2004). Este último, inclusive, tem sido constantemente sobreposto à bissexualidade, já que os critérios para o diagnóstico Borderline envolve muitos estereótipos direcionados aos indivíduos bissexuais (ex: autoimagem negativa, comportamento impulsivo, relacionamentos intensos e instáveis). Isso pode causar um excesso de diagnósticos dentro da comunidade bissexual, erroneamente diagnosticada com TPB. Pesquisas também indicam que uma porção alarmante de profissionais da área de saúde mental enxergam a bissexualidade como uma parte inerente de qualquer problema mental, a ponto de sugerirem terapias de conversão — seja para a heterossexualidade ou para a homossexualidade (Barker, 2015).

Ao mesmo tempo que estudos sugerem maior propensão de bissexuais a desenvolveram problemas de saúde mental, eles também recebem tratamentos menos eficazes e mais prejudiciais do que gays e lésbicas. Clientes homossexuais tendem a valorizar a psicoterapia como uma importante ferramenta de ajuda com questão relacionadas à orientação sexual. Já clientes bissexuais não enxergam esses profissionais como competentes o suficiente para lidarem com esse assunto. Um estudo conduzido com 271 homens e mulheres bissexuais indicou que muitos profissionais invalidavam e patologizavam sua orientação sexual. Além disso, foi indicada falta de conhecimento e habilidade com questões bissexuais e falta de intervenções proativas — por exemplo, um psicoterapeuta automaticamente assume que seu cliente é heterossexual e não lhe dá espaço o suficiente para conversar sobre isso (Page, 2004).

Ainda existem outros fatores que influenciam a saúde mental de pessoas LGBT, como status socioeconômico e gênero. Por conta da disparidade salarial entre homens e mulheres cis, é esperado que a renda familiar de casais de mulheres seja menor do que de casais compostos apenas por homens. Outros estudos também sugerem que pessoas bissexuais são mais propensas a viverem em pobreza do que gays ou lésbicas, afetando diretamente a saúde mental dessa população. Encontrar um profissional de saúde mental que entenda a identidade bissexual e seja financeiramente acessível não é tarefa fácil, dificultando o acesso a esses serviços (Ross et al., 2016).

A etnicidade também é um aspecto a ser considerado. A discriminação por orientação sexual combinada ao racismo ou preconceito étnico também podem piorar o quadro de saúde mental. Um estudo realizado em 2005 apontou que pessoas bissexuais racializadas** sentem que suas diferenças não são adequadamente reconhecidas na comunidade LGBT e muitas vezes, nem na comunidade bissexual; considerando difícil pertencer a um lugar em que possam ser genuínos (Dobinson et. al, 2005).

Ao colocar gays, lésbicas e bissexuais na mesma categoria, há uma desconsideração das necessidades especiais de cada grupo. Bissexuais ainda recebem menos atenção nos estudos científicos — mesmo que já esteja comprovado que eles sofrem com mais problemas de saúde mental. A bifobia ajuda a contribuir para esse quadro — os estereótipos negativos associados à bissexualidade trazem isolação, solidão e graves problemas de autoestima. Diferentes estudos mostraram que as taxas de ideação suicida ou tentativas de suicídio na comunidade bissexual é maior se comparada aos hétero e homossexuais. As doenças mentais mais comuns entre os bissexuais é a depressão maior e transtorno de ansiedade generalizada. Obter ajuda para esses quadros também não é fácil; grande parte dos profissionais de saúde mental é considerada incapaz de lidar com pacientes bissexuais, invalidando ou patologizando a bissexualidade. Outros fatores que contribuem com a discriminação também devem ser levados em conta, como status socioeconômico, gênero e etnicidade.

Alguns caminhos podem ser traçados para melhorar o panorama atual: o primeiro caminho seria baseado em pesquisa e o segundo, na prática. É necessário que mais pesquisas sejam feitas para compreender os aspectos distintos da bissexualidade e como a bifobia afeta a saúde mental — e não concentrar os estudos apenas na população homossexual. Esses estudos também devem levar em consideração aspectos étnicos, culturais e socioeconômicos, pois alteram a experiência do indivíduo com sua sexualidade. Por último, é imprescindível que haja mais iniciativas de desestigmatização da bissexualidade entre os profissionais de saúde mental — isso pode ser realizado durante os cursos de Psicologia, ou ainda proporcionando palestras e discussões em grupo. Combinando esforços de pesquisa e prática, há uma maneira viável de ajudar um grupo de alto risco que tem sido constantemente negligenciado.

** pessoas racializadas foi o termo sugerido pela Camila Cerdeira para traduzir “people of color”, utilizado para designar pessoas que não são brancas.

Referências Bibliográficas (em inglês)

Blackburn, R.M. (2008) What is social inequality? International Journal of Sociology and Social Policy, Vol. 28 Issue: 7/8, pp.250–259, https://doi.org/10.1108/01443330810890664

Persson, T.J. & Pfaus J.G (2015) Bisexuality and mental health: Future research directions, Journal of Bisexuality, 15:1, pp. 82–98, DOI: 10.1080/15299716.2014.994694

Ross, L.E, O’Gorman, L., MacLeod, M.A., Bauer, G.R., MacKay, J., Robinson, M. (2016). Bisexuality, poverty and mental health: A mixed methods analysis. Social Science & Medicine, 156, pp. 64–72, http://dx.doi.org/10.1016/j.socscimed.2016.03.009

Johnson, H.J (2016) Bisexuality, mental health, and media representation, Journal of Bisexuality, 16:3, pp. 378–396, DOI: 10.1080/15299716.2016.1168335

Dobinson, C., Macdonnell J., Hampson E., Clipsham J. & Chow K. (2005) Improving the access and quality of public health services for bisexuals, Journal of Bisexuality, 5:1, pp. 39–77, DOI: 10.1300/J159v05n01_05

Page, E.H. (2004) Mental health services: Experiences of bisexual women and bisexual men, Journal of Bisexuality, 4:1–2, pp. 137–160, DOI: 10.1300/J159v04n01_11

Volpp, S.Y (2010) What about the “B” in LGB: Are bisexual women’s mental health issues same or different? Journal of Gay & Lesbian Mental Health, 14:1, 41–51, DOI: 10.1080/19359700903416016

Meyer, I.H. (2003) Prejudice, social stress, and mental health in lesbian, gay, and bisexual populations: Conceptual issues and research evidence, Psychological bulletin, vol. 129, no. 5, pp. 674–697, DOI: 10.1037/0033–2909.129.5.674

Baker, M.J. (2015) Depression and/or oppression? Bisexuality and mental health, Journal of Bisexuality, 15:3, pp. 369–384, DOI: 10.1080/15299716.2014.995853

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