Por outra janela (ou registros abandonados do isolamento social) — parte I

Laura Assis
3 min readJun 8, 2020

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Dia 52
Você se debruça mais uma vez na janela. Lá embaixo, pessoas transitam em uma quase normalidade e a distância dissolve qualquer sinal que poderia denunciar se estão ou não preocupadas por vagarem tão desprotegidas nesse novo universo. Em algum lugar, salas de aula trancadas e vazias estranham o longo período de esterilidade. Há quem escreva poemas sobre procurar as brechas e outras estratégias para resistir entre os rasgos, mas você tem colocado suas forças em movimentos mais imprecisos, que te deslocam da crueza cotidiana do tudo e te devolvem, apesar do mundo, um pouco mais para dentro de si. No primeiro dia do ano, houve uma discordância sobre o início ou não de uma nova década. Tão raso o tempo dos calendários. Ninguém se lembra (e você também já se esqueceu), mas pouco depois todos os celulares se apagaram, o mar tomou de volta tudo que era dele e é possível que ainda estejamos escondidos do outro lado. Desde então, ninguém ouviu mais nenhuma palavra (mas talvez esse silêncio não queira dizer nada).

Dia 54
Você desenvolveu um certo apreço pelos clichês e tudo mais que signifique algo próximo de terra firme. Qualquer um que digitar “pôr do sol” no Google (e desprezar os efeitos toscos de Photoshop) vai encontrar, lá pela quinta ou sexta imagem, algo próximo ao que você está enxergando agora. Isso costumava ter a ver com aquilo que antes a gente reconhecia como um lampejo de beleza no cotidiano, que poderia ou não merecer uma foto, um frame a mais na normalidade. Mas quando voltarmos à normalidade e se voltarmos à normalidade, ainda nos lembraremos do que era a normalidade? Você encontra anotações num caderno, algo sobre lirismo, entradas e saídas, sujeito em cena… pode ser um capítulo de livro, um poema ruim inacabado ou nenhum dos dois, não dá pra saber de onde vieram ou exatamente sobre o que falam. Na última folha, um verso deslocado: “cálculos são falsas organizações do acaso”. Esse você se lembra de ter escrito. Foi bem no final do ano passado, quando a gente ligava bem menos pro crepúsculo e esperava um tipo muito diferente de caos.

Dia 55
Você finalmente adormece e a primeira pergunta que te ocorre é: existe outra maneira de rever o dia de hoje que não seja pela lente do caos? Na narrativa das suas noites, não tem havido espaço para nada além de um intrincado sistemas de interrupções, e a cada vez que isso acontece, você se lembra de alguém que um dia te confessou ter vivido desde sempre apenas com metade da consciência desperta (a outra metade leve e suspensa na fantasia), e desde então você entendeu que aquela era a única forma possível de viver. Você sabe que resta pouco tempo dentro do sono, mas quanto menos tempo, maior a clareza. Antes de acordar, você ainda vai retornar aos primeiros textos, buscando talvez um padrão. Pode ser que encontre um ritmo, linhas retas, talvez uma repetição… mas você esperava outro tipo de reconhecimento, uma espécie de reencontro, como lembrar de repente a palavra que você parecia desconhecer completamente quando mais precisou dela.

Dia 61
Você já escreveu sobre o sol, então seria melhor contornar a obviedade de falar da chuva, mas é difícil ignorar que de repente, daí do 8° andar, a cidade parece estar sendo vista por um míope que, por um descuido qualquer, não consegue encontrar seus óculos. Nesse horizonte borrado, luzes distantes desafiam a lógica: são pequenos incêndios que se afogam, uma espécie de rebelião submersa, que vai terminar ao amanhecer. Não temos mais nada para queimar, alguém diz, mas você se lembra dos livros. Mais do que nunca é preciso saber de cor um verso que nos ensine outras maneiras de estar no mundo.

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