Dia 1: "O livro antes do livro, antes do livro, antes do livro…"

Laura Perini
6 min readJul 18, 2024

--

Tudo começou porque eu queria escrever um livro.

Na verdade, queria escrever um monte de livros, pois me interesso por um monte de gêneros, um monte de estilos, um monte de temas. Mas, pra começar, eu precisava escolher um.

Daí escolhi escrever um livro sobre uma idéia que eu tive quando tinha 14 anos de idade. Era um tipo de conto de fadas moderno, bem erótico. Gosto de contos de fadas, e a maior parte dos contos de fadas mais antigos era bem erótica (antes dos Irmão Grimm e da Disney lavarem todos eles com o sabãozinho da moralidade cristã e branca).

Acontece que, pra escrever meu conto de fadas e fazer com que ele fosse minimamente crível, era preciso que eu fizesse um tantão de pesquisas dentro de um escopo imenso de temas, e isso tudo estava consumindo bastante tempo (e me entediando um pouco, pra falar a verdade): comecei a fazer essas pesquisas e todas as anotações que vieram delas em 2015, e até hoje não terminei. Então veio a Google, um dia, e deletou por engano a maior parte das minhas anotações mais recentes (que estavam todas salvas na nuvem). Me desanimei.

Mais do que só me desanimar, me deprimi um pouco.

Na depressão tive uma idéia, e foi minha primeira idéia absolutamente inédita em muitos, muitos anos. Foi uma excelente idéia pra uma história relativamente simples, sobre um relacionamento abusivo entre mulheres lésbicas, que poderia ser escrita a partir de quase nenhuma pesquisa e muito material próprio, acumulado ao longo de alguns anos.

Só que, pra fazer aquela história ser palatável, eu decidi que ela precisava ser contada de uma determinada maneira, usando um estilo bem específico, e uma estrutura que acabou se tornando um grande de um problema. Precisava ser um livro de humor (sim! apesar do tema), precisava ter piadas, trocadilhos, sacadinhas, citações, brincadeiras, ironias, duplos sentidos e… não consegui sustentar aquilo. Difícil demais escrever humor! Principalmente humor negro. Principalmente humor negro com coisas que eu tinha passado e que ainda não estavam muito bem resolvidas no coração. Não ainda. Não agora. Mas quando chegar a hora, vai ser bom pra caramba, juro!

Qual seria a próxima idéia, então? Qual seria a tentativa seguinte? Bom, a tentativa seguinte é o motivo desse diário de escrita: me deu vontade de escrever um romance, daqueles bem açucarados, em que a gente acompanha o casal por anos e anos, desde a juventude, testemunhando seus momentos de descoberta, de decepção com o mundo e consigo mesmos, a conquista da maturidade e, enfim, o ápice. No caso desse projeto, especificamente, o ápice seria o fim, o divórcio do casal. E, pra ficar mais cafona, decidi que não seria um romance, seria um folhetim, e que eu ia publicar os capítulos, um por um, toda semana.

Fiz uma escaleta pra facilitar na progressão da trama, pra organizar os arcos, as subtramas, as reviravoltas e foi — surpreendentemente — muito fácil.

Comecei a escrever o primeiro capítulo e saiu rápido. Três mil e oitocentas palavras vieram assim, como se fossem nada.

Só que daí notei que o ritmo estava muito acelerado, as cenas estavam muito superficiais, parecia mais uma reportagem relacionando acontecimentos interligados, do que uma peça de entretenimento. Com apenas um capítulo escrito eu já tinha usado metade do material da escaleta. Desse jeito a coisa toda não ia passar de um conto de sessenta e poucas páginas, e eu queria um livrinho de — pelo menos — duzentas.

Recomecei o capítulo, dessa vez com mais calma, sem afobação, tentando explorar mais os sentimentos por trás de cada cena, as motivações de cada conflito, os sentimentos subjacentes, as reflexões políticas, as críticas sociais (qualquer criação, até um romancinho água-com-açúcar, pode trazer algum nível de reflexão e crítica).

(Principalmente se foi escrito por uma travesti)

Viu só?*

Só que, de novo, apareceu o problema do estilo e da linguagem: a narração seria em terceira pessoa, ou na primeira? Vai ser leve ou dramático? Vai ser irônico? O texto vai ser prolixo, ou mais econômico? Os personagens são perfeitos, são escrotos, ou são só pessoas perdidas, tentando dar o melhor de si e falhando miseravelmente (como todos nós)? Eu quero que os leitores se apaixonem pelos personagens (provavelmente sim, porque é um romance água-com-açúcar, mas nunca se sabe), ou prefiro que as pessoas olhem pra eles com algum nível de crítica, de reticência? Com algum nível de distancia?

(Observação: eu queria muito escrever um texto seco, conciso, igual o Eduardo Galeano ou a Annie Ernaux, mas percebi muito rápido que isso não ia funcionar pro que eu estava tentando fazer. Decidi ir mais pro caminho da Marian Keyes.)

Depois que isso tudo já estava resolvido e eu já tinha escrito quatro versões totalmente diferentes do mesmo texto, achei tudo muito chato. Muuuuuito chato! Não parecia ter nada de especial ali, que pudesse fazer alguém querer acompanhar a vida daquelas duas pessoas, desde a adolescência até a maturidade.

Fiquei dias me perguntando "o que será que faz alguém querer ler um livro e acompanhar a trajetória de personagens desconhecidas?" "O que faz alguém passar da página oito? E da quarenta?"

Comecei a ler um montão de romances (água-com-açúcar ou não) e, principalmente, comecei a ler um monte de coisas distintas entre si, novelas, contos policiais, livros de memórias, ficções, reportagens, biografias, livros do Chuck Palahniuk… Não cheguei a conclusão nenhuma sobre minhas dúvidas. Mas decidi que eu precisava adicionar duas coisas:

1 — Um pouquinho de ansiedade na história, e;

2 — Algum elemento narrativo de ligação, que se repetisse ao longo da história. Tipo um call back de stand-up, mas não necessariamente algo cômico.

A primeira idéia foi solucionada, começando o livro pelo fim, pela última cena. Quer dizer, a primeira cena do livro é a última coisa da historia: eu digo o que tá acontecendo ali, na situação presente das personagens (o que tá prestes a se desenrolar), que é o fim da história. Depois volto pro começo, e o livro todo vira um grande flash-back. A gente já sabe qual vai ser o final, mas não sabe o que aconteceu pra tudo desenbocar naquele final. Tem de ler pra saber.

Tendo isso eu só precisava, então, garantir que o meio do caminho fosse interessante o suficiente pras pessoas aguentarem todo o percurso até o final. E fazer com que esse final valesse a pena.

(só vai dar pra saber se deu certo, quando eu terminar)

A segunda idéia era só uma gracinha, uma firula pra dar um temperinho e colocar a pessoa leitora no clima do momento. Não vou entrar em detalhes porque ainda estou explorando isso, mas a idéia é que, enquanto o romance estiver abordando a adolescência do casal, quero que as pessoas olhem pras personagens como um adulto olha pros adolescentes: com certa ternura e indulgência, mas também um pouco de ironia. É que os adolescentes tendem a ser dramáticos, a levar tudo muito aos extremos, e eu não queria que isso estragasse as coisas. À medida em que eles forem crescendo, daí sim, quero que as pessoas possam se envolver mais com as personagens e levar eles um pouco mais à sério. Gradualmente.

E bem — isso dito — já tem dois meses que venho empacada nos dois primeiros capítulos. Faz um pouco de sentido que seja assim, porque são as partes mais importantes. Esses dois capítulos estabelecem todo o contexto da história e as personagens, seus defeitos e suas qualidades, suas expectativas, as coisas que elas projetam umas nas outras, as decisões erradas que vão motivar as próximas decisões erradas (exatamente como a vida é) e toda a maneira como elas vão ser vistas (interpretadas e entendidas) a partir disso, pelas pessoas que estiverem lendo.

É muito delicado.

É preciso pensar bastante sobre o que mostrar, o que esconder, o que entregar agora, o que deixar pra depois.

O folhetim tá saindo, vai sair. Com certeza. Mas parece que vai demorar.

De repente, três dias atrás, tive um sonho fantástico e assustador. Não vou contar como era (ainda), mas era uma história pronta, completinha: personagens, cenário, contexto, incidente incitante, plot-twist, climax, conclusão, tudo. Veio tudo! Mastigadinho. E — o melhor! — era o tipo de coisa que dava pra escrever com um texto enxuto, bruto, seco, igual o do Eduardo Galeano!

Não desisti do romance açucarado, do meu folhetim propositalmente brega. Estou perdidamente apaixonada por ele, amo coisas bregas. Mas não aguentei a ansiedade e — pelo menos por enquanto — estou trabalhando nessa outra nova ideia em paralelo ao folhetim.

Vai ser um livro policial. Tipo Dashiell Hammett, sujão, suburbano, solitário, mas no Brasil. Em Goiás (que é o lugar mais sujão, suburbano e solitário que consigo imaginar). (Pensando bem, é tão sujão, suburbano e solitário que deve estar mais pra Rubem Fonseca do que pra Dashiell Hammett).

Falo mais disso, da próxima vez.

*Aquilo foi uma piada. Se você não entendeu, na volta eu te explico.

--

--

Laura Perini

Fiz esse perfil pra postar meu diário de escrita. Espero que isso possa ser divertido, de alguma forma, pra você também.