Dia 12: “O que está diante dos olhos, mas a gente não vê.”
Se você não sabe o suficiente sobre o mundo em que vive, você vive num mundo que só existe pra você.
Tem uma historinha meio-boba, meio-fofa que aconteceu comigo em 2016, e que acho muito emblemática pra ilustrar o conceito da frase, ali de cima. Eu ainda trabalhava como designer gráfica e fui indicada pra criar o mascote de uma marca. O cliente queria que o mascote fosse o Gato de Botas. Literalmente. Não vem ao caso qual era o produto que a marca vendia, mas o dono dela gostava muito do Gato de Botas e queria que essa personagem, especificamente, representasse seu produto no mercado.
Um trabalho até bem fácil: não tinha de criar muita coisa, de pensar em conceitos, mensagens subjacentes, elaborar um story-telling, nada. A personagem em questão já existia há 5 séculos, estava mais do que consolidada, eu só precisava pesquisar um pouco e tentar elaborar uma nova “roupagem”. Mal sabia eu que justamente a roupagem, é que ia ser ponto de atrito daquela demanda.
Apresentei várias versões com abordagens e estilos de traços diferentes: uns mais cartunescos, outros mais estilizados, outros num traço mais clássico, imitando as ilustrações dos livros antigos. Em todos tentei manter a essência da personagem original, o florete na cintura, o chapéu tricórnio com penas e as botas de cano alto do século XVI.
Eu não tinha tido a chance de entrevistar suficientemente o cliente, porque toda a demanda veio através de outra pessoa. Por isso, eu estava intrigada sobre os porquês de alguém ter escolhido uma personagem de moralidade tão dúbia — um trambiqueiro mentiroso e espertalhão — como mascote de marca, e achava que entender isso poderia me ajudar a pensar em abordagens mais adequadas pro meu trabalho. Por outro lado, também sabia que, mesmo tendo começado a trabalhar meio às cegas, sem compreender completamente quais eram as demandas e as motivações daquele pedido, assim que eu tivesse um retorno do cliente sobre as primeiras versões propostas, eu ia conseguir entender melhor quais caminhos seguir nos próximos passos (das duas, uma: ou o cara ia amar pelo menos uma daquelas opções, ou ia detestar tudo).
No fim, o cliente escolheu a abordagem clássica. A versão com o estilo mais realista de todos. Ele só pediu um ajuste: que eu colocasse o chapéu correto e mudasse o estilo do cinto.
“Hein? Como assim?” Eu tinha pesquisado pra fazer aqueles desenhos, todos os adereços estavam acuradíssimos em relação à personagem original! Pedi que ele explicasse melhor.
O cliente disse que “o gato precisava ter um chapéu de cowboy.”
Que absurdo! Não entendi bulhufas o que estava acontecendo ali! Passei a noite e o outro dia pensando naquilo, tentando entender porque é que aquele cara achava que o Gato de Botas era um cowboy.
Fiquei encafifada por um tempo, mas então, uns dias depois, enquanto eu via televisão, a ficha finalmente caiu.
Diferente de mim, que tinha conhecido o Gato de Botas na sala de aula, com um excelente professor de literatura (de escola pública, tá!), o meu cliente provavelmente só tinha tido contato com essa personagem através dos desenhos do Shrek, que são sátiras que costuram uma centena de referências culturais de várias origens, de épocas diferentes, colando tudo isso num novo contexto misturado com um tantão de músicas pop e linguagem contemporânea. Além disso, muito provavelmente, antes do Shrek, aquele cara só tinha visto personagens masculinas usando chapéus grandes, nos filmes americanos (ou italianos) de Far West. A conexão mais óbvia que ele deve ter feito, então, talvez fosse: se tem um chapéu grandão, de aba larga, e usa botas; então só pode ser um cowboy! Confesso que considerei, por um tempo, contra-argumentar e explicar. Deixei pra lá!
Desenhei a versão do Gato que ele queria, entreguei logo o trabalho e faturei meu cachê. Ganhei de brinde essa magnífico insight sobre como o entendimento de mundo (e da percepção da realidade factual) das pessoas é delimitado pelo tipo, pela diversidade e pela qualidade das informações que ela acumula ao longo da vida.
Se uma pessoa não sabe nada dos costumes e das vestimentas do século XVI ou XVII, se nunca leu um único livro antigo (os clássicos), se nunca estudou nada de mitologia grega ou de arte rupestre, se a pessoa nunca estudou história direito e desconhece os grandes eventos da humanidade que se encadearam — um depois do outro — até desembocarem no tempo de vida dela, essa pessoa provavelmente não entende quase nada do que está acontecendo à sua volta. Nem as notícias no Jornal Nacional, nem o discurso de uma autoridade da ONU, nem o nome da cidade em que ela nasceu, e nem uma piadinha do desenho animado de maior bilheteria de 2004. É uma pessoa que vive praticamente aliena, apesar de ter acesso a tudo. Alguém sem qualquer capacidade verdadeira de formular opiniões ou chegar a conclusões sobre algum assunto um pouco mais complexo que o mero dia-a-dia.
Essa semana, a abertura das Olimpíadas de Paris repercutiu em um bocado de controvérsia nas mídias sociais. Se a mesma abertura, com exatamente o mesmo conteúdo, tivesse acontecido nos anos 20, teria tido outro tipo de repercussão, e se tivesse acontecido nos anos 80, outro tipo ainda, completamente diferente.
O que fez com que toda essa discussão de agora degringolasse pra questões religiosas a partir de um viés de homofobia descarada, é resultado da cultura que é produzida e difundida, e da visão de mundo predominantes nessa época específica em que a gente vive. Uma época repleta de informação e dados, mas dominada pela burrice e alienação.
Nesses tempos de pós-verdade, tem sido muito comum que as pessoas confundam opiniões com fatos. Que desconheçam os fatos e que, ainda por cima, elaborem opiniões bobas, vazias. Conclusões que são só burras, mesmo.
Opinião é a ideia particular que alguém faz de um fato ou de um conjunto de fatos interligados. Daí, a maneira como uma pessoa resolve interligar os fatos, relacionar os eventos e chegar numa conclusão (que é a opinião) depende do viés de cada um, dos valores pessoais que essa pessoa aprendeu e cultivou, do que é importante pra ela, do que é indispensável e do que é descartável. Só que é muito difícil (quase impossível) pra uma pessoa qualquer, formular uma opinião decente, quando ela não sabe quais são os fatos que devem embasar a tal opinião. Por mais que aquele meu cliente olhasse pro Gato de Botas e visse ali um cowboy americano, nada, nunca vai mudar o fato de que o Gato de Botas é, na verdade, um trambiqueiro do século XVI, que manipula as pessoas e distorce os fatos pra criar narrativas que ajudem ele a ganhar dinheiro, sucesso e posição social.
(Igual a um monte de gente que tem por aí, hoje em dia.)