Dia 6: “Narradores não confiáveis.”
Tem dois jeitos de posicionar o ponto de vista na narrativa de uma história. Um deles é uma merda!
Acho que nunca escrevi nada que usasse um narrador onisciente, contando os fatos a partir de um ponto de vista de fora da história, sem estar participando absolutamente dela. Quando acho que o texto não combina com uma narração em primeira pessoa, ou simplesmente quando não estou afim de usar um narrador que participe ativamente da história, apelo pra um recurso que aprendi com a Ursula K. Le Guin, que é: escrever em terceira pessoa, mas manter a narrativa circunspecta ao cérebro da personagem cujo ponto de vista serve de linha condutora da trama.
Dito de outro jeito, o narrador está fora da história, mas ele não “olha” a história como alguém de fora, ele não critica, não julga, não rotula, não classifica as atitudes da personagem, mas sim repete e representa no texto todos os seus preconceitos, seu medos, todas as suas limitações morais e intelectuais, como se fosse o pensamento delas. Como se fosse a personagem falando de si, só que na terceira pessoa.
O George R. R. Martin também faz muito isso nas Crônicas de Gelo e Fogo, só que ele leva o negócio pra outro nível, entrando na cabeça de cada uma das personagens, a cada capítulo, ao longo dos livros.
Isso dito, o que eu gosto mesmo é de um bom narrador participante, que não seja nada imparcial, que seja cheio de defeitos, de medos, inseguranças, vieses e preconceitos, porque isso é que o dá tempero, isso é o que dá picância pra um romance. Só que, quando a gente tira a crítica e o julgamento moral do narrador em um texto, automaticamente outra pessoa precisa se apropriar desse papel e cumprir a função de julgar o que está sendo apresentado na trama, a essência dos fatos, o que não está escrito mas que, mesmo assim, está descrito no subtexto. E esse trabalho — claro! — passa a ser uma atribuição do leitor.
Ultimamente isso tem sido um problema. (Lá vou eu, passar recibo de velha, que ver?) Fuçando pela internet adentro é muito fácil identificar uma turminha de pessoas, normalmente gente mais jovem, que simplesmente não consegue lidar com protagonistas polêmicas, imorais, com gente errada no papel principal. Parte delas começa a admirar aquelas más-condutas como se fossem valores desejáveis, como se a existência daquela obra, com aquela personagem no centro da trama desse pros leitores um aval pra se espelharem e se inspirarem naquilo. Como se aquelas condutas passassem a ser toleráveis porque estão representadas na protagonista de um livro, de um filme ou de uma série. E a outra parte dessas pessoas, critica as obras que apresentam protagonistas problemáticos como se o texto estivesse fazendo apologia ou defendendo condutas erradas ou inaceitáveis.
Só que é isso, gente: pessoas são escrotas. Umas mais, outras menos, mas — de modo geral — todo mundo está errado a respeito de alguma coisa. Gente perfeita não existe e, se existisse, não renderia nem um conto, nem uma cronicazinha que fosse, quanto mais um livro, um filme ou uma série de seis temporadas. O que movimenta qualquer trama é o problema, o conflito, por isso que, em todo livro de romance, assim que o casal da história se entende e se dá bem, o livro acaba!
Não paro de pensar em como seria se o Nabokov tivesse publicado Lolita hoje em dia. (Não que tenha sido tranquilinho, quando ele publicou em 1955, mas imagina só, o tanto de review conservador que seria postado no Youtube, a moção de repúdio dos deputados evangélicos, a galerinha de esquerda cancelando o autor, no Twitter…)
Tem um monte de gente que acha que Pobres Criaturas ou Me Chame Pelo seu Nome são obras problemáticas. Tem um monte de gente que acha que o Mr. White de Breaking Bad é um cara legal, e que a esposa dele, a Skyler, é que é a escrotinha da história.
Enquanto acompanho esses movimentos todos, acho graça de tudo. É importante discutir os elementos que provocam e que sustentam esse tipo de ignorância, essa preguiça intelectual. É divertido tirar sarro da burrice, de vez em quando, e também é válido o choque que a gente eventualmente sente por essa burrice existir, ainda hoje. (Eu, inclusive, acho que parte desse achatamento intelectual e crítico que as pessoas vem sofrendo é consequência de um consumo massivo da produção cultural norte-americana, que é simplista, dicotômica, moralista e rasa pra caramba. Mas vou entrar nesse tema, em outro post).
Um dia — só de pirraça — quero escrever alguma coisa com narração em primeira pessoa, onde a personagem que narra, seja o indivíduo mais errado, idiossincrático, preconceituoso… Mais insuportável do mundo! Só preciso encontrar uma história e um tema que comportem isso.