Dia 9: “Sessão de terapia.”
Hoje temos mais uma exploração acerca de narradores não confiáveis.
Uma vez eu estava conversando com uma amiga que passava por um período difícil. Aconselhei ela a procurar uma psicóloga, a buscar terapia com um profissional, e ela me respondeu que “não gostava de psicólogos, porque o último tinha aconselhado ela a abandonar o namorado!” Achei aquilo esquisitão, pois psicólogos (pelo menos os bons psicólogos) não fazem esse tipo de comentário. Dei mais corda pro papo, e fui tentando levantar o que é que tinha realmente acontecido ali, naquela situação, pra entender se era mesmo o caso de um mal profissional ou de uma paciente enviesada.
Conversando, conversando, saquei que aquela recomendação maluca do tal do psicólogo — realmente — nunca tinha acontecido. Pelo menos não do jeito que a amiga tinha me contado, no começo. Um dia, numa sessão qualquer, enquanto minha amiga se queixava de vários aspectos de sua vida, (entre eles, o namorado) ela relatava que se sentia travada, sem margem pra crescer, pra melhorar como pessoa, se desenvolver etc. Então o terapeuta teria dito que “ela precisava abandonar todas as coisas que estivessem bloqueando suas iniciativas”. Minha amiga, então, visualizou seu namorado nessa frase, e o que deveria ter sido um ótimo insight de sessão de terapia, acabou virando — na cabeça dela— um “mal conselho" (que era um ótimo conselho, na verdade).
Se por um lado o Ego da garota tinha dado a dica de ouro, por outro o Superego resolveu boicotar grandão e, daí, rolou um tremendo choque. Em vez de ficar com raiva do namorado e abandonar o cara, ela ficou com raiva do psicólogo e acabou abandonando a terapia (pra sempre).
Apesar de ser um pouco deprimente, eu adoro essa história e todos os seus aspectos: a forma como a menina se sentia oprimida e travada, a dica eficaz do terapeuta, a intuição entendendo onde que estava a fonte real do problema e a moralidade (e o apego emocional) da menina sabotando tudo. Um tremendo conflito interno sendo travado, e sendo (mal) resolvido em coisa de alguns instantes. Numa conversa. Aquilo tudo ficou tão profundamente marcado na memória dela (o desconforto emocional da possibilidade de um rompimento forçado ou motivado por um agente externo), que mesmo depois que o tal namorado (alvo do insight terapêutico) já tinha rodado e deixado de ser namorado há um tempão, ela ainda lembrava da sessão com mágoa e ranço do psicólogo. Mas o namorado, ficou na lembrança como sendo só um ex-namorado, e não como alguém que tivesse oprimido e limitado ela.
Isso é um ótimo material pra ser usado de referência, na hora de trabalhar com narradores não confiáveis dentro de um texto.
Esse recurso (do narrador não confiável em primeira pessoa) não serve só pra quando a gente quer explorar personagens moralmente questionáveis (como o Humbert Humbert, de Lolita), mas também — e principalmente — pra quando a gente quer brincar com figuras perdidas, equivocadas e fragilizadas (como o Bentinho de Dom Casmurro). Nesse segundo caso, é importante tentar elaborar quais são os traumas, os medos e — principalmente — quais são as contradições dessa personagem.
Tendo isso em mente (e muito bem esclarecido) é preciso apresentar na narrativa os momentos em que a personagem-narradora está diante da verdade, e depois desenhar o que ela vê e interpreta dessa verdade (provavelmente uma versão bem distorcida dos fatos). As duas coisas (a verdade do mundo e a verdade interna da personagem) precisam estar claras pra quem lê, permitindo que a pessoa leitora tenha os insumos necessários pra chegar às suas próprias conclusões e entender — por conta — o quanto a narradora está perdida e equivocada em suas decisões ou em sua trajetória. Se a gente entregar só um lado da história, quem lê vai ficar sem parâmetros pra julgar.
Então, como explorar isso? Como mostrar, na narrativa, a verdadeira-verdade em contraposição com a ilusão, sem deixar a pessoa leitora perdida e mais confusa do que a personagem que ela está acompanhando? (E sem apelar pra uma cena clichê dentro do consultório de um psicólogo?)
Vamo pensar nesse problema. (corte lacaniano)