Deadpool e a metalinguagem como desculpa para machismo

Laura Pires
3 min readFeb 27, 2016

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Ontem fui ao cinema assistir ao filme Deadpool e o problema de ser feminista é que isso destrói uma porcentagem bem grande das suas chances de entretenimento popular. Piadas das quais ríamos agora não têm mais graça e comentários que passavam batido agora são problematizados (#viciadaemproblematizar) e viram textão nas mídias sociais. E eu até me sinto mal fazendo isso justo com Deadpool, porque é um filme muito inteligente na questão do uso da metalinguagem. No entanto, não deixa de ser canalha usar essa inteligência metalinguística pra propagar o mesmo discurso machista de sempre.

Estamos vivendo uma revolução na cultura pop: o entretenimento está cada vez mais atento a atender as demandas sociais (não porque são bonzinhos, mas porque estamos fazendo barulho e eles descobriram que é lucrativo TAMBÉM produzir entretenimento que valorize mulheres, pessoas negras, gays etc.). Vivemos um momento em que Mad Max foi mais sobre a Charlize Theron do que sobre o protagonista (ainda é protagonista?) e que fãs (racistas) se revoltaram com a escalação de um ator negro em Star Wars. Esse povo revoltado é aquele que acha que não tem nada de racismo nem de machismo no entretenimento e que hoje em dia está tudo sendo estragado pelo “politicamente correto”. Pra essa galera, o filme Deadpool é um ALÍVIO.

Só que Deadpool joga com você. Para quem não sabe, o personagem sabe que é um personagem e que está dentro de uma narrativa e ele usa essa autoconsciência para contar sua história e faz piadas o tempo inteiro dentro desse contexto (morri com a piada sobre ele próprio, o Ryan Reynolds, com a referência à falta de outros X-Men no filme e com o Liam Neeson). E é também nesse contexto em que ele faz piadas machistas. É um paradoxo, pois ele é um vilão e faz e fala um monte de coisas que todos entendemos que são erradas, afinal, ele é um vilão. As piadas machistas podem ser perdoadas nesse sentido, mas, viciada em problematizar, não deixo de me incomodar, porque será que o público está mesmo rindo da ironia? Ou será que está levando a piada a sério?

Esse é o grande problema da ironia. Se a pessoa concorda com o absurdo que está sendo falado, ela não percebe o que é irônico e o que não é e, quando a ironia passa despercebida, o discurso é efetivamente propagado da mesma maneira que seria se todo mundo estivesse falando seríssimo. Deadpool é um filme interessantíssimo no que diz respeito à narrativa e faz um uso muito inteligente da metalinguagem. Por isso mesmo, é decepcionante que essa metalinguagem seja usada como ferramenta estratégica para fazer mais do mesmo. Isso é, inclusive, intelectualmente desonesto. E a sensação que tenho, hoje em dia, é que gostar desse tipo de filme (estereotipicamente masculinos) é que nem gostar muito de pizza, mas ter que aturar um atendimento horrível no restaurante pra conseguir comê-la. Será que vale mesmo a pena?

Tenho certeza de que os homens que andam histéricos com o aumento da representação feminina em filmes tradicionalmente feitos para homens aplaudiram de pé ao resgate machista de Deadpool. E é por isso que eu até curti o filme, mas vou ficar sentadinha.

(EDIT) Um exemplo: se uma pessoa chega pra você e pergunta quantas vezes por semana você se masturba, você considera essa pergunta inapropriada? E, se a pessoa, antes de fazer a pergunta, introduz assim: “sei que é uma pergunta inapropriada, mas”, ela continua sendo inapropriada? A questão central é essa: o contexto (humorístico, irônico, metalinguístico) como desculpa pra fazer assim mesmo.

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Escrevo na área de Relacionamentos & Sexo da Revista Capitolina e atuo no Ajuda, Miga!, vlog de conselhos para as leitoras da revista. Trabalho como professora de inglês e sou mestre em Linguística Aplicada (Discurso e Práticas Sociais), com estudos focados em amor, relações amorosas, gênero e sexualidade.

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Laura Pires

Escrevo sobre relações de afeto. Instagram: @_laurampires . Contato profissional: contato.laurampires@gmail.com .