O amor não vai curar suas questões emocionais

Laura Pires
7 min readJun 12, 2020

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(ilustração por Beatriz Leite | contato: beatriz.hmleite@gmail.com)

Sentir-se só talvez seja a experiência mais universal que existe. Soa quase contraditório, pois é quando bate o sentimento de solidão que nos sentimos mais à parte de todas as outras pessoas do mundo e parece ser impossível que mais gente se sinta da mesma forma.

É desde meados do século XIX que os discursos propagadores de amor romântico circulam na sociedade. Uma das características mais marcantes desse amor é ser visto como a chave para a felicidade — veja bem, não parte integrante do conjunto de coisas que pode nos trazer felicidade, mas sim o item essencial, o meio para este fim. Essa é uma ideia muito presente até os dias de hoje e, mesmo que, atualmente, haja maior produção midiática com foco em relações interpessoais diferentes de romance, a ideia do amor romântico como primordial ainda é a mais popular e convencional. Assim, até pessoas que fazem os discursos mais desconstruídos do mundo às vezes caem na armadilha social de se sentirem frustradas na falta de um romance em suas vidas.

Fiz uma enquete no meu Instagram perguntando se as pessoas gostavam ou não de Dia dos Namorados e uma surpreendente maioria respondeu que não. Os motivos eram variados, indo desde o capitalismo até simplesmente achar um saco que todos os lugares ficam com fila. O motivo mais comentado, no entanto, foi sentir-se mal por estar só nessa data, vendo tantos casais felizes na internet. Mais do que isso: algumas pessoas disseram que se sentem mal de não terem um par romântico também em outras datas festivas.

Apesar de a solidão ser um sentimento comum, percebo que ele é visto de maneira muito superficial, como se pudesse ser resumido entre não ter companhia ou sentir inveja de quem tem. Vamos destrinchar um pouco isso?

Nem todo casal é feliz

Primeiro de tudo, acho importante reafirmar: as redes sociais não devem ser referência pra nada no que diz respeito à felicidade dos outros. É o tipo de coisa que, racionalmente, todo mundo sabe, mas, na prática, vive esquecendo.

Muitas pessoas fazem postagens incríveis com declarações de amor lindíssimas e fotos que poderiam ser propaganda de felicidade a dois e, ainda assim, o relacionamento é um cocô. Ninguém compartilha em público os problemas do casal, claro, então as fotos são sempre felizes. Mas se sempre que vemos fotos felizes de casal nós aceitamos sem questionamento que ter alguém é ser feliz, estamos sendo seduzidos não pela felicidade das fotos ou daqueles casais específicos, e sim pelo conceito de amor romântico como caminho para a felicidade.

Ok, então estou falando que é pra nos consolarmos com o fato de que alguns desses casais estão tão infelizes quanto nós? Não, inclusive acho que o ideal é torcer pra que eles de fato sejam felizes (e nós também). O que quero dizer é que precisamos rever essa correlação automática entre ser feliz e integrar um casal. Estar em um relacionamento não significa estar em um bom relacionamento. Além disso, o que nós consideramos bom pode ser muito diferente do que outras pessoas consideram. Algo que sua amiga celebra no relacionamento dela pode ser algo que você não gostaria se fosse no seu.

E, sim, muitos casais são mesmo felizes. O problema é acreditar que os indivíduos daquela relação são felizes apenas por estarem juntos, quando, na verdade, uma das coisas mais saudáveis pra um relacionamento é ser capaz de viver bem sem ele. A ideia de duas pessoas já felizes que se encontram pra somar essa felicidade é muito mais positiva do que a ideia de duas pessoas que precisam uma da outra pra serem felizes.

Buscando preenchimento nos lugares errados

Em uma postagem aleatória sobre ser feliz sozinho, vi uns comentários desaforados de pessoas dizendo que “autossuficiência é papo furado de quem já tem um amor” e que “ninguém quer ficar sozinho”. Comentários desse tipo não são exatamente errados, mas eles partem de uma oposição inexistente entre autossuficiência e estar em um relacionamento. Nós somos seres sociais e buscamos conexão o tempo todo, seja ela romântica ou não. Todo mundo quer se sentir emocionalmente conectado com alguém. Isso não quer dizer, no entanto, que não possamos ter e investir em certo grau de autonomia, para podermos ter relacionamentos saudáveis, sem dependência emocional.

Conexão é diferente de preenchimento de vazio. Quando nos conectamos, nos sentimos mais compreendidos e menos sozinhos, sim, mas o amor não vai curar nossas questões emocionais. Quando buscamos felicidade através do amor, estamos camuflando nossos problemas e tentando encaixar uma solução externa para algo que é interno. O amor certamente vai trazer alguns prazeres pra vida, mas se não nos sentimos bem com nós mesmos, ele será só uma ilusão temporária, com muito potencial para frustração. Para resolver o problema, precisamos ir à raiz dele.

Transformando solidão em solitude

O que resolve o sentimento de solidão, então? Bem, em certo grau, nada. Antes de qualquer outra coisa, precisamos entender e aceitar que sentir-se só, até certo ponto, faz parte da condição humana. Não é nos cercando de gente que vamos resolver algo que simplesmente é intrínseco à existência. O que acho interessante questionar é por que estar só carrega um estigma tão pesado, como se fosse sempre necessariamente ruim. Acredito que momentos de solidão podem e devem ser tão positivos quanto momentos de conexão com outros e que o ideal seja encontrar um equilíbrio entre esses dois contextos. Somos seres sociais, sim, mas também temos um universo interno que precisa ser bem cuidado.

É importante ter hobbies e prazeres individuais, saber a que dedicar o tempo quando estamos sozinhos. Quando só nos sentimos bem na companhia de outras pessoas, nossas relações podem ganhar um caráter utilitário e virar território fértil para co-dependência. E é muito tentador, fácil, e até convencionalmente estimulado, transformar nossas relações amorosas nesse refúgio que é, no fim das contas, nocivo. Por esse motivo, tão importante quanto investirmos em prazeres individuais, é cultivar outras relações interpessoais além das amorosas. Quantas pessoas se fecham dentro de relações amorosas e se afastam das amizades?

Vale acrescentar aqui que pessoas que integram um casal também se sentem sozinhas. Às vezes mantemos relações amorosas que não nos preenchem e caímos no clichê de que sentir-se só estando com alguém é ainda pior do que estar completamente só. Mas sentir-se só também acontece mesmo quando o relacionamento é feliz. Às vezes, porque não cultivamos outras relações e toda a nossa conexão emocional depende da relação amorosa, mas às vezes acontece apenas por ser o normal da existência e não sabermos o que fazer com isso.

Há inclusive pessoas que entram no estilo de vida não monogâmico para não se sentirem sozinhas. Concluem, conscientemente ou não, que a solução para nunca se sentir só é ter mais de uma opção de afeto, pois a probabilidade de se estar sempre acompanhada aumenta. Mais uma vez, isso é buscar uma solução externa para uma questão interna. Não resolve e talvez frustre ainda mais.

Projeção do sentimento de solidão

Sendo a solidão uma questão interna, nos sentirmos sós não é culpa dos casais felizes das redes sociais. Outras pessoas serem felizes não nos impede de sermos felizes também. É um mecanismo de defesa comum, no entanto, projetarmos nossa vontade de sensação de pertencimento naqueles que vemos pertencer. Esse recurso, nesse caso, pode ser resumido no que chamamos de inveja.

Entendo que o maior problema do sentimento de inveja é que ele é paralisante e nos acomoda a não resolver nada. Quando sentimos inveja da aparente felicidade dos outros, não temos pra onde ir a não ser fazer queixas vazias. Assim que compreendemos que a questão é interna, temos um ponto de partida para tentar uma mudança; podemos trabalhar o que realmente nos incomoda e resolver o problema.

O bônus disso é que, quando estamos bem internamente, é mais fácil olhar pra aparente felicidade de outras pessoas e nos sentirmos felizes por elas também, em vez de automaticamente pensarmos em como gostaríamos de ter aquilo em nossa vida e não temos.

Outros motivos pra não gostar de Dia dos Namorados

Mas esse texto não é uma defesa do Dia dos Namorados e insistir na questão interna que podemos trabalhar não é negar que existe toda uma sociedade que parece se esforçar pra que nos sintamos mal. Somos indivíduos e temos poder de agência, mas existimos dentro de um contexto social que constantemente nos direciona e limita. O desafio é encontrar nossa própria forma saudável e equilibrada de lidar com quem somos e queremos ser no meio de tudo isso.

Há, também, outros motivos mais interessantes pra falarmos mal do Dia dos Namorados. Algumas pessoas comentaram que a data é uma chuva de casal hétero nas redes sociais e casais LGBT se sentem excluídos. Esse é o grande problema do padrão: exclui qualquer variação que não se encaixe totalmente nele, isto é, mesmo se você tiver alguma relação amorosa na sua vida, você ainda pode acabar se sentindo mal nessa data por ser LGBT, por não ser monogâmico, por ser assexual, e por aí vai.

Até pra quem está dentro do padrão a data causa estresse. Existe cobrança, expectativas e toda uma idealização das demonstrações de afeto. O problema do padrão vai além de excluir quem automaticamente não se encaixa nele: ele dita como devemos nos comportar, o que devemos fazer, dizer e até sentir em determinadas ocasiões sociais.

Sou, é claro, a favor de problematizar o padrão e ir contra ele quando ele não nos contempla. E certamente há também quem goste da data. Muitas pessoas, por não serem parte de grupos sociais privilegiados, valorizam celebrações tradicionais exatamente por terem isso negado a elas normalmente. Considerando, porém, que não conseguimos mudar sozinhos como toda uma sociedade funciona, acredito que o primordial para vivermos bem é entendermos quem somos e reagirmos às normas padrão de maneira produtiva, sem nos estagnarmos em falta de pertencimento e insatisfação.

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Laura Pires

Escrevo sobre relações de afeto. Instagram: @_laurampires . Contato profissional: contato.laurampires@gmail.com .