Como é um cinema pornô por dentro

O que as paredes e tapumes tanto escondem?

Laura Veronese
8 min readJun 11, 2023

Dezoito de maio de 2023, 14h56. Tô parada na Júlio de Castilhos, esquina com a Vigário José Inácio, na frente do cinema, com um caderninho em mãos, fazendo anotações. Observo indiscretamente quem entra e quem sai, num intervalo de 10 minutos. No entorno há uma clínica odontológica, uma igreja evangélica, um atacado de doces, um estacionamento, uma loja de produtos gaudérios e uma ferragem. O som de catraca girando quase se perde no meio dos sons de carros e ônibus passando pela avenida.

A entrada é tão discreta que mal se percebe quem entra; parece, na verdade, que ninguém repara. Eu mesma via e não enxergava. Vista da calçada, a porta é apenas mais uma porta no meio de tantas portas do Centro Histórico, com uma placa de “Temos gelo” escorada no portão. Do lado de fora, eu e as pombas. Do lado de dentro, homens brancos, bem vestidos. Um senhor de calças branquíssimas sai lentamente pela porta vai-e-vem e espera no meio fio para atravessar a rua. Ele nota que eu estou vigiando o cinema. Deve pensar que eu sou a detetive Aline em busca do marido de alguém. Esse serviço eu ainda não oferto, infelizmente.

Um funcionário do cinema vem conversar com um cara do estacionamento que funciona ao lado. Um jovem tatuado passa pela placa e a fotografa. Respiro fundo, bem fundo, e entro. Me desloco devagar pelo espaço, arrastando o olhar pelo chão, paredes e teto. Mais ou menos nervosa, mas mais atenta.

O pavimento térreo tem formato de L. Do lado direito, a bilheteria engradada com livros da Zíbia Gasparetto empilhados no galpão. Há um guarda-volumes e muitos armários. Na parede, muitos DVDs e posteres, que, no passado, podiam ser alugados para serem assistidos no próprio cinema.

Do lado esquerdo, um corredor que desemboca a) à direita, numa sala de cinema pequena, onde só passa pornô gay; b) num banheiro sem portas, onde vi um homem lavar o pinto na pia (sem sabão); c) numa escada que leva ao segundo piso; e d) à esquerda, numa sala de cinema com a única TV de LED do estabelecimento inteiro. Em geral, nunca encontrei ninguém nessas salas. Talvez por serem mais iluminadas e menos privativas.

bora subir?

Subindo as escadas, chegamos num andar que, à primeira vista, só tem cabines privativas. As cabines são dividas por paredes e portas de compensado de madeira, e contam com uma cadeira, uma TV de tubo e um suporte de papel higiênico — quase sempre vazio. Cada cabine tem um número e são cerca de 7 ou 8 cubículos. Às vezes os filmes estão travados na tela inicial (são DVDs ou fitas VHS? Não sei ao certo ainda), e não identifiquei quem tem os controles. Das vezes em que fui, vi que o comportamento mais corriqueiro é parar na porta, assistir alguns segundos e voltar a circular. Ainda assim, há muitos pingos de gozo no chão.

porta de uma dessas cabines. a luz que sai de dentro é da tela da tv

Ao final deste corredor de cabines, há outro corredor, longo, sinistro, à esquerda. Neste corredor, iluminado por uma trêmula e fraca luz azul, há outro banheiro sem portas, a entrada de um labirinto/dark-room, um quartinho com uma cama de tijolos e um colchão de courino sem lençóis, e, ao fim, uma outra sala de cinema gigantesca, com uma TV minúscula de tubo.

As próximas fotos estão em sequência: banheiro, quarto, corredor e sala de cinema.

fala sério: todo mundo já fez xixi num banheiro de bar pior que esse
“quarto” privativo
o corredor sinistro supracitado
reparem nos papéis higiênicos no chão

Voltando para o labirinto: não sei se vocês já passaram por um túnel do terror num Halloween, mas a vibe é a mesma. Não há luzes e em cada quina tem alguém esperando pra pegar na sua bunda e te dar um susto. Não é um labirinto com o objetivo de dificultar a saída; mas um dark-room mais interessante. Você pode escolher se mostrar ou ficar na surdina. Nada que a gente já não tenha visto numa festa lotado do DCE ou do Margot.

A saída do labirinto dá no pé de uma escadaria. No hall dessa escadaria, há dois sentidos: um que desce e chega no nada, e um que sobe e que chega no piso superior. Ambas são muitos escuras e é fácil tropeçar em algum degrau e cair de boca no chão ou no pinto de alguém .No alto da escada, à direita, há um banheiro desativado; à frente, um banheiro apertado; e, à esquerda uma grande sala de cinema (a mesma onde pegaram no meu peito). Nesta, há uma tela com um projetor, ou seja, não tem uma TV. Embaixo da tela, um palco caindo aos pedaços, onde (ouvi dizer) casais costumam fazer um showzinho de sexo ao vivo 0800 (cortesia da casa), porque há, de fato, muitos homens com fetiche em comer casada e muitos casados com fetiche em ser corno. Enfatizo que não estou julgando as preferências e hábitos sexuais de ninguém. Mas que é engraçado, é.

sala do terceiro andar, com projetor

Todas as salas de cinema têm o mesmo tipo de poltrona: forradas em courino avermelhado, bem confortáveis (sem levar em consideração a assepsia, é claro), uma ao lado da outra. As paredes também são escuras, descacadas, algumas com o reboco aparecendo. A fiação elétrica mostra que, com certeza, o cinema não tem um alvará de funcionamento (ou ele foi expedido em 1987). O piso é sujo, tem muitas gotas, papéis espalhados, embalagens de camisinha — enfim, todo o tipo de fluido corporal e vestígios de pós-sexo. O teto está caindo. O lugar nada mais é do que um muquifo. Com todo respeito aos muquifos.

ambiente super seguro e familiar

O cheiro já se neutralizou pra mim. A imundície, em certa medida, também. Acredito que há um fetiche coletivo imbuído nessa sujeira, um prazer implícito em estar nela. Talvez, como mulher cisgênero, eu ache inviável fazer sexo naquele lugar porque, particularmente, jamais deixaria alguém com mãos sujas chegar perto da minha buceta. Mas isso não parece ser um incômodo para os homens que por lá circulam. Inclusive, nesse dia, um cara até se ofereceu pra me dar uma mamada, e ficou bem decepcionado quando eu disse não porque eu não conhecia ele.

A infraestrutura é extremamente precária. Há escadas de madeira espalhadas pelos corredores, encanamentos à vista, coisas quebradas. Deus queira que ninguém nunca se machuque lá dentro. Imagina o mico de chamar o SAMU porque você tomou um choque ou enfiou o pé numa estaca de madeira, de pau duro.

pelo menos o ar condicionado é novo
itens decorativos
fiquei tão impressionada a escada em cima da poltrona que a foto ficou toda tremida

Quando se é mulher, você passa o tempo todo cerceada, cercada, observada por homens. Um ou outro pede licença, se desculpa pelo incômodo, enfim, te trata como gente. Mas não é raro que alguém passe te prensando pela parede, passando a mão em alguma zona erógena sua.

O lugar é naturalmente claustrofóbico. Tudo é estreito. A arquitetura do lugar foi projetada (projetada? Não tenho certeza. Tudo me parece uma grande gambiarra) justamente para influir e promover essas interações. Ao mesmo tempo em que é um ambiente privado, longe dos olhares do lado exterior, a escuridão não inibe o que não quer ser inibido. Isto é, se você quiser, pode fazer sexo onde quiser: na frente dos outros em cima de um palco, nas primeiras fileiras em destaque, nos fundos, perto das paredes, num canto, num quarto fechado, numa cabine, na bilheteria, no banheiro sem portas. São inúmeras opções. Por mais que a penumbra seja contundente, se você reparar bem, a luz das telas é o que te guia. Esqueça as lâmpadas. Os refletores são os próprios filmes.

mapa/planta-baixa do térreo e segundo andar. nada faz sentido.

Antes que eu me esqueça, também passa filmes por lá, tá? Não se deixe enganar pela placa que diz que todos são inéditos. São inéditos se estivermos em 2004. Desconfio que muitos deles são em VHS. Pelas vestimentas, piercings, eletrônicos e decoração do set, é visível que são produções de décadas atrás. Aliás, vi vários filmes repetidos.

Nunca assisti um filme pornô inteiro porque sou da geração stories e reels. Não sei se eles duram 1h, 2h, se são uma seleção de cenas curtas sem nexo ou se tem um storytelling. O que eu vi lá eram médias-metragem mesmo. Situações de 20 a 30 minutos, sendo uns 5 de contextualização e o resto de meteção ferrenha. Diálogos e preliminares irreais. Pornô clássico mesmo. Mulheres siliconadas, loiras, homens bombados, bem dotados, imbrocháveis, imorríveis. Temáticas de colegial, saias de prega, gurias com feições jovens. Nada de novo, nada de pós-moderno, nada de pornô contemporâneo. O gemidão do zap deve ter saído dali. Certeza que o gozo delas é lubrificante. E as unhas compridas devem machucar o clicli. Não entrarei em detalhes, não tem necessidade. Acho que vocês já entenderam que o foco ali não é o filme exatamente, sim? O lance ali é fazer acontecer, lembrando que ver também é interagir.

Esse texto faz parte de uma pequena coletânea dos meus relatos de campo, realizado entre março e maio de 2023. A cada domingo de junho, compartilharei com vocês um pouco do que eu vivi lá dentro ✨

Dúvidas, comentários, elogios, sugestões, coisas que gostariam de saber? Manda uma dm pra @c.loudaura no Instagram, ou um email (eu amo emails!!!!) para lauraveronese13@gmail.com

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Laura Veronese

head de conteúdo do meu cérebro & antropológa. aqui você encontra relatos de campo, dor de cotovelo e paranoias.