A BARCA

Tomo I — A Mapoteca

Laz Muniz
5 min readMar 6, 2019
Ilustração do autor ©LazMuniz

Ele tinha esse apelido ridículo, mas também ninguém fazia ideia do seu nome. Não interessa. Mas quando Rippie Roy atravessou aquela enorme avenida só para se aproximar de um desconhecido e pedir ajuda pra mudança, a troco de um suco artificial e algumas migalhas de uma rosca de ontem, com frutas cristalizadas já endurecidas pelo tempo e coco ralado inimastigável, eu não imaginava que carregaria aquele enorme gaveteiro saracoteando papéis aos montes, além de alguns batuques estranhos que fazia ao balançá-lo, parecendo ter umas três a cinco bolas de gude em cada gaveta. Podiam ser naftalinas, esferas, pilhas… mas eu sentia que eram bolas de gude. E durante todo o percurso do caminhão na porta da rua até o seu apartamento naquele prédio antigo, de corredores estreitos e escadas íngremes, fiquei a matutar no que um cara franzino, de meia idade e que suava como um porco, falava manso, mas por demais ríspido; que tinha mais livros do que comida na geladeira, fazia com biroscas numa mapoteca? Curiosidade boba, claro, mas a minha curiosidade era tremenda e eu queria muito abrir uma daquelas gavetas gigantes, mas eu só era um dos quatro voluntários de cada uma das quatro pontas do móvel a carregá-lo, a troco de um suco gelado com gosto de suplemento de vitamina C e uma rosca com frutas cristalizadas sabor jujubas ressecadas (eu já falei sobre isso mas precisava ressaltar com mais adjetivos).

Eu precisava esperar ficar sozinho.

Está certo, eu tenho quase dois metros de altura e os meus braços impressionam. Mas apesar de toda força física eu não era nenhum trabalhador braçal e muito menos vivia de bicos a troco de nada. Na época eu era um executivo muito bem sucedido de uma grande indústria têxtil que alimentava a vaidade da metade do país, estava de férias e queria estar de bobagem naquele dia cinza, estranho, com flashes de luzes no céu ameaçando uma tempestade e cheiro de terra molhada em plena Avenida Augusto de Lima, na capital mineira de Belo Horizonte.

Mas o cara me julgou pela aparência, já que eu estava trajando um jeans muito sujo, com respingos de tinta de parede, camiseta idem e chinelos de dedo, de borracha, com as extremidades laterais imundas. O fato é que eu estava pintando o meu apartamento por conta própria para sair da rotina e me sentir alguém normal. Então fui lá ajudar aquele pária do Rippie Roy porque eu queria ver de perto aquela coisa de pinho branco e extremamente pesado que enchia os meus olhos. Pois além de curioso por coisas do tipo, também sou colecionador de antiguidades.

Falando comigo mas olhando para o terceiro andar do prédio a frente, apontou para o caminhão do outro lado da rua e disse: _Tá vendo aquele imenso gaveteiro? Pois é, cara, eu preciso de quatro braços fortes que o levem lá pro terceiro andar, só pra começar. Mas em hipótese alguma aquilo pode balançar demais e, muito menos, levar algum tipo de pancada. — Ele deixou bem claro e reforçou com uma expressão desconfiada e austera _ Não abra, jamais. Vai se arrepender!

Queria poder acreditar que eu estava ajudando um bolha de um escritor a carregar seu precioso tesouro e queria nunca ter aberto aquela joça, ao chegar lá em cima.

Desconfiei que ele fosse escritor no momento em que entrei em seu apartamento, pois só esses tipinhos adoram empilhar livros literários daquele jeito e enchê-los de marcadores, transformá-los em objetos customizados pra tudo, como peso de papel, bases para samambaias, encosto de porta e cantoneiras, além dos milhares de papéis escritos à mão, digitados e impressos espalhados de qualquer forma pelo apartamento, além de fotos estranhas pregadas em painéis de cortiça.

Céus, esses caras ficam noites sem dormir com alguém só pra terminar sua grande obra prima de merda que nenhum editor vai suportar passar da terceira página e mesmo assim vai publicar. É uma cambada de derrotista! E eu chutei que o pulha era escritor pois não parecia ser uma pessoa bem sucedida. Mas Rippie Roy só tinha livros literários estúpidos e muitos de autores marginais. Era apenas um escritor, mais nada resume isso e o meu julgamento.

Quando cheguei em seu apartamento junto aos outros ajudantes que preferi não ter nenhum tipo de contato, carregando aquela mapoteca nada exótica mas curiosa, observei tudo de cima abaixo e por todos os lados, e de um dos papéis em cima de uma mesa ainda encostada de qualquer jeito, em um canto, tinha uma história escrita à lápis que se iniciava assim: “Ele tinha esse apelido ridículo, mas também ninguém fazia ideia do seu nome. Não interessa…”!

Queria nunca ter aberto aquela coisa. Mas eu abri para ver de qualé daquelas bolinhas de gude.

Continua…

Laz Muniz

A Barca é um conto fantástico que venho escrevendo há um bom tempo e conta a história de um mapa estranho, sua mapoteca e três biroscas de metal que vão causar muita confusão na cabeça de um grande empresário colecionador de relíquias, transformar em herói um escritor falido, o dono dessas preciosidades, além de intervir nos rumos da história, nossa geografia e as condições climáticas.

Belo Horizonte, a capital mineira, é o cenário principal dessa estranha aventura e seus personagens.

Espero que tenham gostado e deixem seus comentários e muitos claps!!!

Obrigado a todos pela leitura e aguardem o próximo capítulo.

Enquanto isso, leiam minhas crônicas das Líricas Impetuosas nos links a seguir:

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