As Bacantes

Leituras Orientadas I
4 min readMay 27, 2017

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Basta dizer que a obra obteve o primeiro lugar na competição teatral “Grande Dionisía”, uma entre competições comuns a essa época fértil de grandes tragédias, para ressaltar o calibre de As Bacantes. A peça, uma das últimas produzidas pelo poeta, foi representada pela primeira vez em 405 a.C., na Macedônia. A atmosfera da história mitológica anterior de que surge a obra é já repleta de figuras fortes ao espírito; a título de exemplo, o fato de Zeus costurar o feto Dioniso em sua própria coxa até que ele de crescesse, com o fim de escondê-lo de Hera, assim é semelhante a nitidez em figuras que a obra vem a ter. No início Dioniso faz a exposição do conflito central à peça: a família mortal do deus, sobretudo seu primo Penteu (rei de Tebas) e sua tia Agave, negando seu caráter divino, será punida. Disfarçado como um forasteiro e reunidas as Bacantes, retorna para se vingar da descendência de Cadmo (pai de Sêmele). Dioniso fala de si na terceira pessoa nesse início, é significativo este fato porque concorre com sua apresentação definitiva diante dos mortais — ele é um deus, e segundo, defensor de sua mãe Sêmele. É absoluto neste ponto : às suas irmãs, que propunham que Sêmele imputou falsa paternidade à Zeus, em resposta a falta de leito de algum mortal, ele as “impreguina de delírio”, deixando seus espíritos loucos, entre outras punições interessantes. O conflito se agrava quando Penteu proíbe o culto a Dioniso na cidade e o enredo sequencia quando avista Cadmo e Tirésias seduzidos (mas não enfeitiçados, como as mulheres) pelos rituais de celebração, portando as roupas da festa. Penteu declara aos soldados que prendessem qualquer pessoa que participasse do culto. Porém é o próprio Dioniso, dando seguimento aos seus planos, que se deixa prender, mais uma vez sob novo disfarce, o de sacerdote-líder das bacantes. Capturado, se impede sempre a informar a Penteu sobre os supostos acontecimentos divinos do culto, e Penteu sempre cético a esse caráter, manda encarcerar o sacerdote, e mais uma vez se abate uma tragédia providência do deus. Nesse ponto da obra Eurípedes também instiga fortemente o leitor, seja por força da criação e estímulo à imaginação narrada, seja pela bela poética das palavras que surgem, pois as bacantes estão na região monte Citéron a realizar coisas como brotar água e vinho diretamente da terra por meio de seus tirsos, a amamentar animais e pôr serpentes sobre a cabeça. Mais impressionantemente descrito é quando do envolvimento de boieiros e pastores à captura das bacantes, ocorrendo a fuga destes, mas o dilaceramento de um rebanho inteiro. Por fim Dioniso, altamente dotado de ardil, convence Penteu a se vestir de mulher como disfarce para observar os rituais, inclusive carregando um tirso. O tirso era um bastão com ramos de hera e com uma pinha no cume. O curioso é que o instrumento é aludido por vezes a um falo, isto é, Penteu passa por uma espécie humilhação completa antes de se seguir sua morte extraordinária. A vingança se consuma pela destruição da família, Cadmo e sua esposa são transformados em serpentes, Agave sofre a vingança através de uma espécie de horror psicológico muito bem arquitetado por Dionísio, sendo, juntamente com suas irmãs, obrigada a exilar-se.

É interessante observar que a “tomada de conhecimento” de todos do Deus Dionísio se dá sempre, diferente dos demais deuses, através do poderoso movimento que é seu culto. E também há um confronto com o saber instaurado. Exemplo em citações:

“ –Dioniso: Todos os bárbaros celebram seus mistérios.

–Penteu: Mas nisto eles são menos cultos que nós, gregos.

–Dioniso: A diferença talvez seja nos costumes; em termos de esclarecimento eles vos vencem”.

“Coro — Nosso desejo é adotar também a fé que a maioria das pessoas mais simples recebeu e põe em prática”.

Com relação à morte de Penteu, podemos vê-la além da mera vingança do Deus insatisfeito, mas também como um sacrifício partícipe com todo o teor simbólico que representa. Um ato purificador, pela eliminação da potência contrária que Penteu representa, e consagrador, pois sua finalidade é a reafirmação do sagrado (Dioniso). Assim, o coro fiel proclama e comemora a morte de Penteu. E estes são os papéis afinal que representam, na tensão da qual surge a tragédia: A figura de Penteu encerra a Pólis, o Estado. Representa o rei as razões do Estado e, mais que isso, a razão pura e o equilíbrio. É o pilar da religião oficial da pólis, cujos deuses não admitem qualquer desmedida dos mortais que venham almejar a imortalidade. Dioniso é o caos no sentido da quebra da consciência condicionada aos valores da razão e o aflorar mais profundo do ser, o comedimento e a ponderação em Tebas estão ameaçados pelas Bacantes. Nietzsche traz Dioniso justamente nessa dimensão do sair de si e superar a condição humana. Em O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música diz: “O embevecimento do estado dionisíaco, com seu aniquilamento das fronteiras e limites habituais da existência, contém com efeito, enquanto dura, um elemento letárgico, em que submerge tudo o que foi pessoalmente vivido no passado. Assim, por esse abismo de esquecimento, o mundo cotidiano e a efetividade dionisíaca separam-se um do outro”.

Curiosidades:

- Se destaca o fato da obra apresentar a ação de um deus em cena.

- É o filósofo Friedrich Nietzsche, pensador representativo por excelência da moral terrena e prazeres do baixo-ventre que, ao trazer de volta a questão da relação de Dioniso com o teatro resgata de certa forma um interesse histórico pela peça.

- Durante o século XX performances da peça tornaram-se bem populares, especialmente na forma de ópera, devido aos coros dramáticos encontrados por toda a trama.

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Leituras Orientadas I

Blog colaborativo de resenhas dos livros estudados na cadeira de Leituras Orientadas I em 2017/1. — UFRGS.