Por que ‘Pokémon Gold’, ‘Silver’ e ‘Crystal’ foram os piores erros da franquia

Leo "Kitsune" Camargo
13 min readMay 4, 2020

O fã é, no geral, um ser paradoxal. Ele costuma esperar duas coisas normalmente autoexcludentes, ao mesmo tempo: inovação e tradição. Claro, estamos falando aqui de obras e artistas ainda na ativa; um fã de Led Zeppelin, por exemplo, está tranquilo em sua admiração pela banda, mais de 40 anos depois do último álbum de estúdio, podendo admirar retrospectivamente o quanto a banda se transformou e evoluiu ao longo de sua discografia sem correr o risco de um novo álbum que modifique o que ele entende do grupo através de mais uma transformação. Já quem é admirador de um artista, obra ou “franquia” (mais sobre isso mais tarde) ainda na ativa está a todo momento sob o risco iminente da novidade: se o(s) criador(es) decidirem que é hora de mudar, e essa mudança não obedecer os parâmetros muitas vezes arbitrários dos seguidores do que faz a obra admirada ser o que é… é bom se preparar para as (normalmente virtuais) tochas e ancinhos.

Bom… eu sou um fã de Pokémon.

Comecei a jogar Pokémon perto da estreia do desenho no Brasil, primeiro numa fita de Pokémon Blue alugada junto de um Super Game Boy pra poder jogar no SNES, depois em uma fita emprestada por um amigo junto do Game Boy cinza tijolão dele.

CURIOSIDADE: Este guia de ataques dos pokémons que saiu na Nintendo World 13 (setembro/1999) foi muito importante pra mim, pois eu o lia e relia com um dicionário na mão e acabei aprendendo vários verbos em inglês no processo. E hoje sou tradutor. ;)

O desenho estreou aqui em 1999, mesmo ano do lançamento de Pokémon Gold e Pokémon Silver, o segundo (ou terceiro? ou quarto e quinto? Pokémon é complicado…) jogo da série. Eu estava lá, eu lembro de como o jogo, que hoje entendemos ser bem tosco e mal programado, era a melhor coisa do mundo… e de repente, surgiu o segundo! Não podia ser melhor! E com alguns dos pokémons já previamente revelados pelo desenho (no especialzinho do Pikachu que saiu junto do primeiro filme) e, depois, com as notícias e detonados e tudo mais que iam saindo na época do lançamento, Gold e Silver prometiam ser exatamente o que o fã queria: Pokémon, SÓ QUE MAIS.

E foi aí que começou o problema.

Eu sempre gostei mais do Lugia, asas-com-dedinhos inclusas.

Tudo que fez do primeiro jogo um sucesso estava lá, intocado. Os 150 pokémons (me recuso a usar o padrão da marca de não pluralizar a palavra “pokémon” — “os Pokémon”… que horror…) que você já conhecia retornam e se juntam a 100 novos; você começa a sua jornada no novo continente de Johto em uma cidade que consiste na sua casa e no laboratório do “professor Árvore” da vez, na qual escolhe um entre três pokémons pra começar o jogo, na lógica já conhecida de pedra-papel-tesoura, com Fogo, Água e Planta; passa por várias cidades interligadas por “rotas” com sua grama alta cheia de pokémons selvagens; e a história consiste mais uma vez em reunir exatamente oito insígnias pra poder desafiar a Liga Pokémon, novamente formada por uma Elite dos Quatro + o Campeão (e vários membros desses cinco chefes retornam do primeiro jogo) enquanto detém um esquema criminoso da Equipe Rocket numa trama que também envolve mais um “trio” de pokémons lendários e, dessa vez, dois “Mewtwos” (ou seja, o lendário mais poderoso do jogo — aqui, Lugia e Ho-Oh), pivôs de boa parte da história principal; e, claro, sem esquecer do bônus do “Mew” da vez, o Celebi.

Mas Gold e Silver são muito próximos do ideal apontado no primeiro parágrafo deste texto, talvez da maneira mais óbvia possível: se o fã quer a mesma coisa que ele já gosta, que tal dar a ele exatamente a coisa que ele já gosta, de novo? Depois da história principal, o jogador pode visitar Kanto, o continente em que se passa o jogo anterior, que passou por uma pequena evolução desde então. Os oito líderes de ginásio retornam com um visual e equipe levemente modificados e algumas pequenas mudanças que o fã vai curtir (como o rival de Red/Blue ter se tornado o líder do ginásio de Viridian depois de seu líder anterior, Giovanni, ser derrotado pelo jogador no primeiro jogo), incluindo um desafio final contra o agora lendário Red. É como se Gold e Silver fossem uma continuação direta e uma expansão do primeiro jogo: os mesmos pokémons + pokémons novos, os mesmos personagens + personagens novos, os mesmos lugares + lugares novos… enfim, você entendeu.

Outra prática que retorna nessa geração é o “terceiro jogo”: Depois de Red e Blue (e Green, no Japão) saiu Pokémon Yellow, uma experiência mais próxima do animê, com algumas pequenas mudanças e melhorias em relação à versão anterior; logo, depois de G/S veio o lançamento de Pokémon Crystal, também com várias adições e melhorias em relação aos seus predecessores.

Agora, no Crystal, os pokémons se mexem um pouquinho. Claramente, um jogo que precisávamos.

Ou seja, toda a fórmula, todo o padrão da franquia Pokémon, se repete.

A questão é que não existia padrão nenhum.

Um pensamento comum quando se entra em discussões de fandom é a ideia da “essência”: o que faz do Batman “o Batman”, e o que uma história do Batman precisa ter para ser uma “história do Batman”. Muitas vezes esse padrão é arbitrário, baseado apenas no que o indivíduo viu primeiro, ou viu com mais frequência, ou em um padrão específico do que faz mais sucesso entre os lançamentos daquela “franquia” (eu já chego lá) mas que não exatamente reflete a totalidade da obra. Alguém que conhece Vingadores pelos filmes Hollywoodianos pode bater o pé e achar que a equipe essencial é formada por Capitão América, Homem de Ferro, Thor, Hulk, Viúva-Negra e Gavião Arqueiro, e se surpreender com o fato de a primeira formação nem sequer contar com o Capitão, ou com o fato de o Fera dos X-Men ter sido um importante e icônico membro dos Vingadores por muito tempo, ou de Clint Barton ser o Golias em vez do Arqueiro em um dos maiores clássicos da equipe (a Guerra Kree-Skrull) e ser o Ronin em outra fase importantíssima para a publicação (a passagem de Brian Michael Bendis, que também envolve a construção até Guerra Civil e suas consequências), numa formação que envolve até Luke Cage, Homem-Aranha e Wolverine. A ideia de “essência” pode ser argumentada com mais facilidade em obras menores (e não falo de importância, falo de tamanho do corpus da obra), mas vivemos numa era de megafranquias gigantescas lançadas décadas atrás. O que, por exemplo, exatamente define um Final Fantasy, afinal?

A armadilha fica ainda pior, maior e mais intensa quando se é a franquia midiática mais lucrativa da história.

Números de 2018. Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_highest-grossing_media_franchises

Mas tem um “porém”: Pokémon criou sua própria armadilha. E os culpados são Pokémon Gold e Pokémon Silver.

Às vezes, características que os fãs tomam como padrão irrevogável da sua obra preferida não estão lá desde o começo. Star Wars não começou como uma “série de trilogias”, era um filme só, que ganhou continuações — Star Wars nem mesmo tinha um “universo expandido”, mas a presença desse universo é dada como característica básica da experiência Star Wars hoje. Tudo que listei como características que se repetem em Gold e Silver se tornaram padrão a partir desses jogos, mas é sempre importante lembrar que o padrão não existia. Só havia um jogo (ou dois iguais, mais uma versão alternativa corrigida desse mesmo jogo… argh!). Havia a possibilidade de não se repetir nada do que foi feito no primeiro, e fazer com que Pokémon fosse uma série de jogos mais próxima de algo como Zelda ou Final Fantasy, onde cada uma de suas iterações se vale como uma obra solo.

O primeiro jogo tinha três pokémons iniciais de fogo, água e planta, mas por que o segundo também tinha? Por que não outros tipos, sei lá, psíquico, lutador e aço (aço? metal???)? Por que três? Por que não dar um Eevee, e o treinador precisa escolher para qual forma evoluí-lo? Por que oito ginásios? Por que uma Elite dos Quatro? Por que, mais uma vez, uma trama que envolve um grupo criminoso? A trama poderia focar-se apenas nos desafios dos ginásios, que culminariam em um torneio no final, sem nenhum envolvimento com crimes ou pokémons lendários. E por falar neles, por que mais um trio temático? Por que mais um lendário fofinho com 100 de base em todos os stats? Por que não Lugia e Ho-oh? Ou de repente o trio (a história deles na torre queimada não deixa de ser interessante)?

Aliás… por que, afinal, Pokémon Crystal existe? Yellow faz sentido: Pokémon é a maior franquia do mundo hoje, mas na época do desenvolvimento de Red/Blue/Green ele era só mais um jogo. Quando o animê explodiu e a criançada partiu pro Game Boy, muito da experiência não se transferia. Fazia sentido criar uma versão mais próxima do desenho que as crianças viam na TV: você começa com o Pikachu, precisa enfrentar Jesse e James e seus pokémons Koffing, Ekans e Meowth, etc. etc. Mas… o que justifica a existência do Crystal, além do fato de que a série anterior também tinha um terceiro jogo?

Gold, Silver e Crystal criaram, nos fãs, a ideia de que Pokémon tem um padrão que se repete. A experiência Pokémon é essa, e ela não muda. Mas não só isso. Esses jogos criaram a impressão de que essa é uma franquia cumulativa. O primeiro jogo tinha 150 pokémons, o segundo mais 100, logo este jogo tinha todos os 250… e não apenas os 100 novos. O mesmo para os ginásios e até mesmo os continentes. Tudo que você já viu continua lá, mais um monte de outras coisas.

Mas o pior pecado de GSC é que, se ele criou o tal padrão, então como o jogador e fã pode saber diferenciar o que exatamente é parte do padrão e o que não é? Se a franquia é cumulativa, isso vale pra tudo? Eu posso, então, esperar que o terceiro jogo tenha três inciais, oito ginásios, Liga Pokémon… e depois disso eu volto pra Johto, certo? E enfrento os ginásios anteriores de novo? E eu vou ter acesso a todos os, agora, mais de 300 pokémons, não é? E Kanto? Kanto volta de novo? Qual o time do Red, dessa vez? E as adições vão continuar? Todo jogo adiciona um tipo novo? Quando chega a próxima forma do Eevee?

Junte a isso o fato de que estamos em tempos em que já está plenamente normalizado uma pessoa comum dizer que “consome” tudo de uma “franquia” (eu disse que chegaria lá!) — já é corriqueiro pensar em obras de arte interconectadas através do termo “franquia”, um linguajar marqueteiro que antes era muito mais útil pra quem de fato faz dinheiro com a propriedade intelectual. Temos, assim, um ambiente em que o fã é menos um admirador, um entusiasta, um espectador, um jogador… e mais um consumidor. Logo, a obra de arte individual é um produto (sim, eu sei, discussão antiga, não é esse o ponto aqui), mas a franquia é um serviço. O mundo do videogame já conta com a ideia do “jogo como serviço”, por exemplo. E esses públicos estão interseccionados. Pensar em franquias como o universo cinematográfico da Marvel ou os filmes + universo expandido de Star Wars como um serviço não é uma ideia muito distante. E quando você “assina” um serviço, você 1) o faz por um motivo, e 2) exige continuidade da qualidade.

Mas, depois de tantos anos advogando a ideia de que “videogames também são arte”, os gamers estão agora, como todo fã, pegos num pensamento paradoxal: exigindo o máximo da arte e o máximo do serviço, sem entender os pontos nevrálgicos do conflito.

Acima: Arte.

Em Pokémon, a continuidade do serviço implica em uma série de recursos que, uma vez disponibilizados, se tornam parte da prática do usuário do serviço. Pense, por exemplo, no cenário competitivo: você não pode simplesmente eliminar pokémons do jogo porque isso mexe com todos os pressupostos que os jogadores mais hardcore conhecem e usam como ponto de partida. Ou mesmo na experiência normal da trama do jogo: eu assinei um serviço que me diz que a cada novo jogo eu terei acesso a MAIS pokémons, o que é completamente diferente de dizer que serão OUTROS pokémons.

Mas Pokémon não é só um serviço, é também uma obra de arte. Calma, calma, calma, não vou aqui argumentar que estamos falando de um filme do Scorsese ou mesmo de um The Last of Us em termos de qualidade narrativa (nunca joguei TLoU, mas o gamer diz que é bom, e o gamer sabe o que diz, não?), mas Pokémon é uma história sendo contada. A ideia é fazer com que você sinta que entrou num mundo mágico, aberto à sua exploração (coisa que jogos mais recentes andam fazendo muito mal, sim…), um mundo vivo e rico e variado. Toda história é única, e precisa de recursos únicos pra transmitir a sua ideia ou sensação. Então, talvez a fauna desse novo continente simplesmente não tenha Goldeens e Tentacools, por exemplo. Não tenha Pidgeys, apenas Pidoves. Talvez só haja um único Bulbasaur em Kanto porque ele não é nativo daquela região, mas foi trazido pelo professor Carvalho das florestas de Unova, e aí, em Unova, ele seria supercomum. Talvez os autores do jogo (se é que podemos usar o termo) não queiram mais trabalhar a ideia de dia e noite, como em GSC, apenas a ideia de estações do ano, por algum motivo temático desse novo jogo hipotético específico, e assim eles tirem essa funcionalidade atrelada ao relógio interno do jogo e, por consequência precisem mudar o modo como o Eevee evolui para Espeon ou Umbreon. Em Ruby e Sapphire, por exemplo, foi introduzido o recurso das “natures”, traços de personalidade inerentes a cada bicho individual, que têm consequência nas características físicas dele. Um pokémon é mais tímido (“timid nature”), logo é mais veloz (mais “speed”), mas mais fraco fisicamente (menos “attack”), etc. Isso poderia valer pra esse jogo. E se num seguinte isso fosse completamente limado ou modificado pra trabalhar com a ideia de ambiente em contraste com personalidade? De repente nenhum pokémon é inerentemente “tímido”, mas num certo ambiente selvagem uma dada espécie fica mais tímida por ser presa de um caçador (pense em Caterpies se escondendo de Pidgeys) mas esse mesmo caçador, em outra parte, se torna presa de uma espécie local (Persians caçando Pidgeys) e, logo, naquele local, esses são mais medrosos e acuados — e isso se reflete nas mecânicas de jogo, e descartaria as mecânicas do jogo anterior, pois elas não refletem mais as ideias que serão contadas neste.

fig. 1: Sassy Mr. Rime à frente, Pissed-off Lapras ao fundo.

Mas não é assim que Pokémon opera, pois não foi isso que Gold, Silver e Crystal escolheram fazer. GSC escolheu repetir e adicionar, em vez de desconstruir e mudar. Ele tinha a chance — era, na realidade, a única chance, ou pelo menos a melhor — de fazer dessa franquia uma série de obras únicas interligadas por um conceito central. O que ele fez, em lugar disso, foi, voluntária ou involuntariamente, acostumar o fã à ideia de que Pokémon é um serviço, e que cada novo jogo não é uma nova experiência única, mas um upgrade de um serviço continuado. E a consequência é que, quando a franquia quer fazer algo diferente, o fã entende como uma traição.

Vide: Pokémon Sword e Pokémon Shield.

Se todos os jogos até o momento davam acesso à todo o catálogo de cartas pra montar o meu “deck”, por que agora só posso usar 400? Se dois jogos atrás a empresa disponibilizou a funcionalidade das megaformas, e no jogo seguinte a funcionalidade dos Z-Moves sem eliminar as megaformas, por que agora eu não tenho nenhuma das duas, só as formas Dinamax/Gigantamax? Se em Sun, Moon, Let’s Go Pikachu e Let’s Go Eevee eu podia montar em pokémons, por que nesse só tem a bicicleta? Por que limitar a minha experiência?

“Eu tô pagando.”

“É verdade — a Game Freak mentiu”; “Pokémon é a franquia mais estagnada e preguiçosa da Nintendo”; “…parece que eles só desistiram”; “Não é o jogo que eu queria”.

Some à isso a comparação com outros serviços aparentemente concorrentes, dos quais Sword e Shield “deveriam” estar no mesmo nível, como Zelda: Breath of the Wild, por exemplo, e temos aqui, obviamente, na cabeça de um fã inserido nesse ambiente e já acostumado a esse pensamento, um serviço defasado em relação ao mercado e com menos recursos que a versão anterior… quando na verdade, deveria ser uma experiência artística única.

O fã pode pensar de outra forma, se quiser. Eu mais ou menos penso diferente disso, por exemplo. Não vou argumentar aqui que estou completamente imune ao sentimento: não terminei Moon porque, entre outros motivos, uma parte da fórmula Pokémon que eu gosto muito, os ginásios, foi descartada, e o que entrou no lugar — que faz muito mais sentido pro mundo daquele jogo do que 8 ginásios — realmente não me agradou. Eu fui de mente aberta mas não gostei porque o jogo não atendeu aos meus parâmetros arbitrários do que faz um jogo de Pokémon ser um jogo de Pokémon.

Mas as “Alolan Forms” são exatamente o que eu citei, sobre a fauna de cada lugar poder ser única — e isso também nos trouxe os pokémons mais lindos de todo o jogo, acima.

Mas esses parâmetros não são só meus. Porque a arte, assim como o mercado, é uma via de mão dupla. Pokémon, como franquia, criou os próprios problemas de relacionamento com seus fãs — e os fãs, em contrapartida, escolhem coletivamente se prender ao pensamento mercadológico e simplesmente não engajar com as novas ideias apresentadas. É um ciclo complicadíssimo de ser quebrado, porque nenhuma das partes pode ceder, à essa altura; além de fazer parte de um contexto capitalista muito maior que só esta franquia. Pokémon não é a marca de cultura pop mais lucrativa da história à toa, afinal.

E o assinante pode até reclamar do serviço, mas os números provam que ele continua assinando.

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Leo "Kitsune" Camargo

Editor sênior Marvel pela Panini, tradutor (Batman, Imortal Hulk, Desafio Infinito etc.), futuro dublador. Ouça meu podcast: shorturl.at/xCHZ3