Um guia para o ambiente regulatório e legal do criptomercado brasileiro — Parte 1
Este projeto é o potencial início (assim espero) de uma série de textos em relação a meus estudos sobre o tema criptomoedas e criptoativos, principalmente em relação ao andamento do ambiente regulatório e institucional em território brasileiro.
Se para você todo esse universo de criptomoeda, bitcoin e blockchain ainda é algo muito novo, recomendo que você leia aqui e aqui (textos em inglês) antes de continuar.
O objetivo, ao final de tudo, é termos algumas sugestões claras para legislações e regulações no Brasil, que possibilitem não só a estabilidade e desenvolvimento desse novo mercado, mas também segurança jurídica para os players envolvidos com esses ativos digitais.
Nesta primeira parte, gostaria de focar nas conclusões que tive em relação a um panorama mais geral do ecossistema, tanto na parte conceitual quanto em algumas consequências práticas de algumas manifestações regulatórias no Brasil.
Veremos mais adiante o quão importante se tornou a definição do que é valor mobiliário e o que é commodity para o criptomercado, tanto no Brasil quanto no mundo em geral.
Mas, antes de entrarmos nesta discussão, vamos trazer um pouquinho mais de contexto.
Captação de recursos: O motor da atividade empresarial
Para aqueles que já transitam no mercado financeiro há um tempo, ou ao menos conhecem um pouco de história, não é difícil concordar com o quão importante foi a instituição das primeiras ofertas públicas de ações (em inglês, IPOs), como forma de fomentar as atividades empresariais pelo mundo.
Não é o objetivo deste texto contar para vocês a história do capital de investimento (ou venture capital, para os mais íntimos), afinal, o Wikipedia já faz isso melhor do que ninguém. O que preciso que vocês entendam é que evoluímos bastante desde a época da Companhia das Índias Orientais e suas primeiras aventuras comerciais, e que no mundo do blockchain e dos criptoativos, também havia uma enorme demanda reprimida por recursos e financiamento de negócios.
É exatamente aí que surge o conceito de emissão e venda de tokens como forma de financiamento coletivo de projetos de blockchain, os popularmente denominados ICOs (Initial Coin Offerings).
É importante salientar que há uma diferenciação conceitual deste novo criptoativo em relação às criptomoedas como o bitcoin, inclusive no que diz respeito ao tratamento legal e regulatório de suas transações. Mas este é um assunto que eu pretendo explorar melhor em um próximo texto desta série.
Os primeiros ICOs e as oscilações do criptomercado
Neste novo ambiente, tão promissor e sem grandes barreiras de entrada, talvez não lhe surpreenda a euforia e o boom financeiro que essa modalidade de financiamento causou no criptomercado (algo similar ao que pudemos observar na Bolha da Internet no final da década de 1990), considerando ainda condições tecnológicas e econômicas bem mais favoráveis que as que tínhamos vinte anos atrás.
Em janeiro de 2018, chegamos à incrível marca de US$ 800 bilhões de valor capitalização no criptomercado, de acordo com estatísticas do CoinMarketCap, com um valor captado de quase US$ 20 bilhões em ICOs somente ao final do passado e início deste ano.
Entretanto, com a identificação de uma série de projetos fraudulentos, somada às suspeitas de manipulação de preços de bitcoin, e as constantes notícias de ataques a bolsas de criptomoedas, os valores de capitalização de mercado caíram significativamente, de volta aos US$ 270 bilhões de julho de 2018.
Reação das instituições governamentais brasileiras
É natural que mercados novos sejam um pouco mais sensíveis à oscilações e incertezas, e o criptomercado não está totalmente livre disso.
Entretanto, a tecnologia blockchain não é tão frágil assim, com muitos pensam.
Jimmy Song, uma das maiores autoridades no assunto, defende que o mercado está aos poucos amadurecendo e se tornando mais estável, e algumas estatísticas também demonstram isso.
Ainda assim, é natural que essa volatilidade inicial em um mercado em certo momento quase trilionário, tenha atraído a presença e o interesse de governos e reguladores de todo o mundo, com o objetivo de discutir e estudar ações que pudessem minimizar os efeitos danosos causados pelos bad actors do setor.
No Brasil, o que pudemos identificar foi uma ação eminentemente defensiva das instituições governamentais, em especial:
a) o Comunicado nº 31.379/2017, do Banco Central, alertando sobre os riscos decorrentes de operações de guarda e negociação das denominadas “moedas virtuais”;
b) declarações do presidente do BACEN relacionando criptomoedas e pirâmides financeiras;
c) o Projeto de Lei nº 2303/2015, inicialmente criado com boas intenções pelo deputado Áureo (SD/RJ), mas que acabou por submeter criptomoedas e criptoativos à nossa legislação restritiva de lavagem de dinheiro, somado ainda à proposta feita pelo relator do projeto de eventual criminalização da atividade;
d) o enquadramento de “moedas virtuais” enquanto ativo financeiro pela Receita Federal do Brasil (itens 447 e 607 do IRPF P&R RFB 2017), orientando o contribuinte a recolher imposto de renda sobre os ganhos obtidos nas operações de alienação; e
e) o Ofício Circular nº 1/2018/CVM/SIN, confirmando a proibição de fundos de investimento brasileiros na aquisição e guarda de tais ativos.
Este último manifesto de nossa Comissão de Valores Mobiliários (CVM) merece atenção especial de nossa parte.
Isto porque, com tal declaração, a CVM temporariamente (ao menos espera-se) retirou de sua competência quaisquer operações provenientes do criptomercado, sejam elas relacionadas a criptomoedas ou criptoativos em geral, conforme declarou seu Superintendente de Relações com Investidores Institucionais, Daniel Bernardo:
Como sabido, tanto no Brasil quanto em outras jurisdições ainda tem se discutido a natureza jurídica e econômica dessas modalidades de investimento, sem que se tenha, em especial no mercado e regulação domésticos, se chegado a uma conclusão sobre tal conceituação.
Assim e baseado em dita indefinição, a interpretação desta área técnica é a de que as criptomoedas não podem ser qualificadas como ativos financeiros, para os efeitos do disposto no artigo 2º, V, da Instrução CVM nº 555/14, e por essa razão, sua aquisição direta pelos fundos de investimento ali regulados não é permitida.
E na prática, o que significa? Como os outros países estão enfrentando essa questão de forma mais específica?
É o que pretendo (ao menos tentar) responder no próximo texto desta série.