Poesia provençal— Uma tradução.

Leonardo Chagas
10 min readApr 4, 2018

Guilherme de Aquitânia (1071–1127), o trovador, ou em langue d’oc — Guilhèm IX de Peitieus. Foi um dos primeiros poetas líricos da idade média, sendo assim, um dos primeiros poetas do amor cortês, fin’amor. Apesar de ser um nobre, tinha como característica de sua escrita, temáticas hegemonicamente eróticas & contra a moral e os bons costumes. Resistiu a diversas ameaças de ser excomungado, e seguiu com a produção de sua arte subversiva.

É sabido que o amor cortês, surge no século XII na França, esse amor se trata não de um delírio individual, de uma exceção, de um extravio cultural, mas surge como um estilo de vida, um dado cultural da sociedade da época, uma filosofia que indica a idealização de uma vida superior, para além das noções tipicamente dadas pela igreja ou pelas doutrinas filosóficas da grande nobreza, o fin’amor surge a partir da poesia, ainda que fruto de uma expressão da nobreza feudal, não nasce em um grande império, hegemônico politicamente na Europa, mas sim, de um conjunto de senhores semi-independentes, que insistem na noção do amor como princípio central de seu pensamento e obra.

O amor cortês, é sobretudo um advento do século XII, historicamente conhecido como o século do nascimento pelos Europeus, neste período da idade média, surgem fundamentais criações da civilização ocidental, como a poesia lírica e a ideia do amor como princípio, ou estilo de vida.

O EROTISMO E O AMOR NO MUNDO PROVENÇAL –

“ Eros pode confundir-nos, levar-nos a cair no pântano da concupiscência e no poço do libertino; também pode nos elevar e levar-nos à mais alta contemplação. Isto é o que chamo de erotismo, ao longo dessas reflexões e o que tento distinguir do amor propriamente dito. Repito, falo do amor tal como o conhecemos desde a Provença. Este amor, embora existisse em forma difusa como sentimento, não foi conhecido pela Grécia antiga nem como ideia, nem como mito. A atração erótica por uma única pessoa é universal e aparece em todas as sociedades; a ideia ou filosofia do amor é histórica e brota só onde existem circunstâncias sociais, intelectuais e morais. Platão sem dúvida teria se escandalizado diante do que chamamos de amor. Algumas de suas manifestações lhe seriam repugnantes, como a idealização do adultério, o suicídio, a morte; outras o teriam assombrado, como o culto à mulher. E os amores sublimes como o de Dante por Beatriz ou de Petrarca por Laura, pareceriam a ele doenças da alma”

(OCTAVIO PAZ in: A Dupla Chama: Amor e erotismo. São Paulo: Siciliano, 1994.)

A partir deste trecho, de Octavio Paz a respeito do conceito de Eros, e suas diferentes concepções de acordo com o tempo histórico, antiguidade, idade média, modernidade, é importante que seja minimamente delimitado o conceito de “amor” e “erotismo” para os poetas provençais. Na primeira poesia medieval, aquele que -amava- era também alguém que temia, e se angustiava, ao pensar na hipótese da perda ou da impossibilidade da conquista. A ideia do amor que trazia encantamento aos homens provençais em sua maioria, tratava-se de um amor, que fosse capaz de lhes trazer a completude, quando concretizada a união, era a busca pela poção milagrosa de Tristão e Isolda, capaz de unir os amantes e assim os completar enquanto seres.

O ato de cantar poemas, era para o homem provençal uma grandiosa virtude, a experiência da poesia no entanto estava intrínseca a sua filosofia de vida, se trata no entanto de uma necessidade condicional de existência, a felicidade, ou seja, o objetivo da vida dos homens medievais, estavam estritamente vinculados à conquista do amor pleno, e para conquista-lo não era só necessário amar, mas sim realizar, a poesia no entanto não é apenas o meio para estes homens, mas é também a finalidade, pois esta, para além de permitir aos adeptos a realização de seus desejos, também os permitia se elevar através do fazer poético, a poesia lírica surge como um ato nobre em todos os sentidos.

Os provençais da primeira fase, como é o caso de Guilherme, cantam o amor, a alegria, e a juventude, para além de estabelecerem regras inicias na arte da lírica, no ato de “trobar”, vão além da elaboração artística, e passam a serem constitutivos para a experiência humana, no sentido de definirem as regras de uma refinada “arte de amar”,onde inclusive, a figura da mulher, passa a ser fundamental, ela a partir da poesia provençal é quem conduz o erotismo dos versos, é a ela quem o trovador deve obedecer e servir, o fin’amor no entanto, surge como oposição não apenas aos tradicionais contratos sociais amorosos, estabelecidos pela igreja, a partir da instituição do casamento, estabelecendo a vida de regra das relações entre o sexo, mas também se opõe a ideia de pura satisfação dada pelo comércio sexual, que faz da mulher um mero objeto de prazer.

O amor para os provençais é inseparável do desejo, mas também da cortesia, que emana da ideia de cortes, onde esta cultura nasce, e tem como objetivo separar os fin amam dos amantes vulgares, esta distinção é, no entanto, uma distinção não só social, mas também intelectual, já que se contrapõe a nobreza inculta. Para além disto, a experiência do amor provençal, ou seja, a chamada “arte de amar” é do início ao fim uma pulsão erótica, dado que o movimento de conquista, se dá a partir da observação (olhar) e culmina na concretude da ação, quando o observador, torna-se amante (drutz).

O fin’amor era também em princípio, herege, dado que a igreja condenava qualquer manifestação erótica ou sexual que não tivesse como finalidade a procriação, mesmo que dentro de uma relação matrimonial, sendo assim, a poesia provençal, não só ignora os princípios da igreja, mas também exalta o prazer físico, que nada tem a ver com as finalidades da formação de família propriamente, principalmente quando se trata de Guilherme IX, como já visto anteriormente. Enquanto a igreja elevava a castidade como principal virtude, os trovadores, pensavam em uma exaltação extremamente terrena, que ainda é misteriosa, mas trata-se de um prazer físico e espiritual que os mesmos chamavam de “Joi”, que se tratava da recompensa dada pelo amor, não se tratava tão somente do gozo, ou da simples alegria, mas de uma felicidade indefinível, idealizada, tal qual o céu para os cristãos, porém não ocorre com o advento da morte, mas surge como uma graça natural dos amantes de desejo depurado.

Muito desta experiência reflete um tanto a erótica árabe, que os provençais tiveram contato com o advento das cruzadas, é imprescindível aos trovadores a experiência amorosa. O amor é fruto de um refinamento social, incorporado pelo poeta, não se trata de uma mera tragicidade, pois o sofrimento do poeta existe para que possa ser alcançado o seu objetivo final: a “joi”. A união entre o gozo e a contemplação, a partir do mundo natural e do espiritual, não se trata do gozo físico, meramente, o gozo é parte de um processo de purificação do amante, que é capaz de ilumina-lo. O amor é um mistério, é privilégio de poucos e almejado por muitos. É a busca e o objetivo fim dos provençais a partir da conquista e experimentação da “joi”.

“Farai un vers pos mi somelh”, o poema de qual realizei uma tradução, trata-se do poema provavelmente mais sensual e satírico de Guilherme. Um poema carregado de sentidos eróticos carnais, e metáforas acerca do ato sexual. É neste poema, que mais se evidencia o caráter libertino e dinamismo da vida mundana. O trovador relata uma situação entre ele e duas senhoras, que ao se enganarem que o mesmo é incapaz de falar e ouvir, o levam para dias de sexo em um castelo. Há a imagem da dor física representada pelo arranhar de um grande gato em suas costas. É interessante notar a imagem da dor atrelada ao ato sexual, no séc. XII, muito antes de Marques de Sade e demais poetas eróticos, que se empenharam em escrever e refletir a respeito da sexualidade e perversões humanas, e suas representações literárias.

O poema também possui um clima primaveril, onde as pessoas se conversam e se cumprimentam nas ruas. Também traz a imagem do sonho, que pode ser associada ao delírio provocado pelo desejo carnal. Essas imagens que serão tratadas incansavelmente na literatura universal, a partir de então, até a contemporaneidade.

A tradução abaixo, trata-se de um poema onde as senhoras não denotam, respeito ou cortesia, mas agem instintivamente, trata-se ainda, de um relato de amor vulgar, carnal. No entanto é presente no poema, o julgamento moral explícito sobre as duas senhoras, onde o trovador afirma que a mulher que trai seu senhor, deve sofrer as consequências da lei e ser queimada por um tição, por cometer um pecado mortal, imperdoável — Enjoy -

https://www.youtube.com/watch?v=KhlCtF7JJ6Q — Para ouvir o poema original.

Um verso faço, pois estou sonhando —

I.

Um verso faço, pois, estou sonhando

caminho, ao sol que vai raiando

perversas mulheres por aí vão andando

e sei eleger o tipo qual

aquelas que o amor do cavalheiro

levam a mal.

II.

Tal dama que comete um pecado mortal

que não dá amor ao cavalheiro leal

mas sim ao monge ou ao clerical fá-lo

sem razão

pois devem ser queimadas por lei

por um tição

III.

Para Auvérnia, perto de Leimosinho

apenas com uma capa, caminhei sozinho

Encontrei com a mulher de dom Guarinho

e a de Dom Bernardo

me deram as boas vindas, rapidinho

por São Leonardo.

IV.

Uma me disse em seu latim

“Deus o abençõe, Dom Peregrim

Você parece bom e raros homens são assim

corretos e bem educados

pois quanto mais andamos por este mundo

mais encontramos amalucados.

V.

Juro a vocês, que não respondi

nem bla bla bla, nem tititi

nem ferro lá, ou madeira aqui

foi só

barbarian, barbariol

barbarió.

VI.

Dona Agnes falou a Dona Ermelina, então:

“Encontramos, o que queriamos, perfeito

varão

pelo amor de deus, levemos de prontidão

é todo mudo, o coitado

assim para ninguém nosso segredo

será revelado

VII.

levou-me sob um manto, para me esconder

e dentro do seu quarto, para me aquecer

havia uma lareira, belo, bom de viver

O fogo era bom

e segui me aquecendo, tranquilo

próximo ao carvão

VIII.

Para comer, me deram frango capão

mais de dois, grande refeição

Não tinha cozinheiro, mais ninguém no salão

em companhia nossa

só os pães que eram brancos, o vinho bom

e a pimenta grossa.

IX.

“Irmã, se este homem age de forma falsa

e se faz de mudo, só por causa nossa

veja se está acordado o nosso gato rosa

Traga ele, o fará falar.

Se for de todo mentira

o que estás a contar.

X.

Dona Agnes se pôs a buscar o gato

era enorme, um bigodudo nato

e quando o vi, na sala nós quatro

me assustei tanto

que por quase perdi o valor

e o encanto.

XI.

Após o vinho e a comilança

me desnudei e não só a pança.

Por trás, o gato feito lança

mal e feroz,

a dama arrastou das costas aos calcanhares

o meu algoz

XII.

A dona o puxou pelo rabo, de improviso

me arranhou sem sequer aviso

mais de cem chagas onde antes era liso

ele me causou

mas eu sequer me movi na hora

não me matou.

XIII.

“Irmã” dessa vez disse Agnes, contudo:

“Está claro agora, que o tipo é mudo”

“preparemos um banho, com direito a tudo

para descansar”

Por oito dias, e talvez mais naquele forno

estive a passar.

XIV.

Tanto as fodi, que é difícil dizer

cento e oitenta e oito vezes a meter

por pouco não vi minhas correias romper

até meu arnês

e não posso nem dizer o quão mal me senti

o quanto ainda me dói esta vez.

XV.

Não posso mal dizer minhas angústias

e o quanto ainda me dói esta vez

Poema Original:

I

Farai un vers, pos mi somelh,

E.m Vaue e m estaue al solelh

domnas i a de mal conselh,

e sai dir cals :

Cellas c’amor de cavalier

Tornon a mals

II

Domna fai gran pechat mortal

qe no ama cavalier leal

mas si es monges o clergal

non a raizo:

per dreg la deuri hom cremar

ab un tezo

III

en Alvernhe, part Lemozi

M’en aniey totz sols a tapi

Tobei la moller d’en Guari

E d’en Bernart;

Saluderon mi simplamentz

Per sant Launart

IV

La una m diz en son latin:

“E dieus vos salf, don pelerin:

Mout mi semblatz de bel aizin

mon escient

Mas trop vezem anar pel mon

De folla gent”

V

Ar auzires qu’ai respondut.

anc no li diz ni bat nit but

ni fer ni fust no ai mentaugut,

mas sol aitan

Babariol, babariol

babarian

VI

So diz n’agnes a n’Emerssen:

“Trobat avem que anam queren

Sor, per amor Deu, L’alberguem

Qe ben es mutz,

E ja per lui nostre conselh

Non er saubutz”

VII

La una’m pres sotz son mantel

Menet m’en sa cambra, al fornel

Sapchatz qu’a mi fo bon e bel

E’l focs fo bos,

Et eu calfei me volentiers

Als gros carbos

VIII

A manjar mi deron capos,

E sapchatz ac i mais de dos,

E no’i ac cog ni cogastros

Mas sol nos tres,

E’l pans fo blancs e’l vins fo bos

E.l pebr’ espes

IX

“Sor, aquest hom es enginhos,

E Laissa lo parlar per nos:

Nos aportem nostre gat ros

De mantenent

Qe’l fara parlar az estros,

si de re’nz ment”

X

N’Agnes anet per l’enujos,

E fo granz et ag lonez guinhos:

Et eu, can lo vi entre nos,

Aig n’espavent,

Q’a panc non perdei la valor

E l’ardiment.

XI

Qant aguem begut e manjat,

Eu mi despoillei a lor grat.

Detras m’aportero lo gat

Mal e felon.

La una’l tira del costat

Tro al tallon

XII

Per la coa de mantenen

Tira l gat et el escoissen :

Plajas mi feron mais de cen

Aqella ves;

Mas eu no m mogra ges enguers,

Qui m’ausizes.

XIII

“Sor, diz n’Agnes a n’Ermessen,

Mutz es, qe ben es conoissen :

Sor, del banh nos apareillem

E del sojorn”

Ueit jorns ez encar mais estei

En aquel forn.

XIV

Tant las fotei com auzirets:

Cen e quatro vint e ueit vetz,

Q’a pauc no i rompei mos coretz

E mos arnes;

E no us puese dir lo malaveg

Tan gran m’en pres

XV

Ges no us sai dir lo malaveg

Tan gran m’en pres

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