Jefferson Botega, 2012

Leões na cabeça

Resenha de “O beijo na Parede” de Jeferson Tenório

Leonardo Cortes
4 min readFeb 11, 2016

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Ésta al fin me engulle, y mientras por su esófago
Paseo, voy pensando en qué vendrá.
Pero se destruye cuando llego a su estómago
Y planteo con un verso una verdad.

Silvio Rodriguez

Em nosso palpável exterior, e em nosso apaixonado interior, todos enfrentamos forças clandestinas à nossa percepção. Silvio Rodriguez sonhou ser engolido por serpentes grandes e transparentes; Dom Quixote desafiou, cômica e pateticamente, moinhos de vento que cuspiam fogo; já o desafio de João era menos fantasioso: além de muitas pessoas o tratarem com indiferença, quando não com desdém, João foi dispensado não só por uma sociedade, mas por Deus; isso não era só um desafio para o menino, era também um aviso de que seu desenvolvimento não seria calmo em nenhum momento.

“O beijo na parede” é uma história de resistência. João, um menino de 11 anos, é forçado a abandonar o suado conforto de sua cidade natal, Rio de Janeiro, para Porto Alegre, uma capital estranha e vertiginosa para ele. Desde sua chegada, uma série de desventuras como a morte inesperada dos pais, a ameaça de viver sem teto, o peso de ser invisível o afligem sucessivamente. Porém João é um motor de resiliência, ele transforma a falta de possibilidades na própria motivação para seguir em frente — o que o faz um personagem otimista, cativante e, até para seus semelhantes desprezados pela sociedade, um tipo de herói.

Contando os acontecimentos de maneira despretensiosa, chegando até a subestimar a sua pessoa para o leitor, quem narra a história é o próprio João. A agilidade do cotidiano está explicitamente imaginável na narrativa de Tenório. A drástica sucessão de infortúnios dá a entender que João vive em um mundo imprevisível e alheio. Porém, a imaginação de João não o abala contra o mundo. Uma figura muito simples e linda do livro são os leões na cabeça de João. A confusão e a raiva. Dois sentimentos que o garoto não entende que circulam em nossa mente quando enfrentamos situações muito extenuantes e complicadas.

O elemento que se impõe contra a frieza do mundo real são as respostas simples de criança que João dá aos personagens. Como um grande reconhecedor, ele percebe que de nada adianta o lamento quando se está inserido em uma vida insensível e que não devemos guardar o que nos corrói por dentro. João inventa sua dança e quer que seus amigos dancem junto com ele. Assim como o eu-lírico da canção de Sílvio Rodríguez, ele planta a sua verdade, destruindo as temidas serpentes. Isso diferencia o protagonista do espaço narrativo: João quer quebrar a estática da cotidianidade maçante para ver a vida com olhos mais otimistas. A simplicidade das respostas lembra a sensibilidade vivida por Miguilim, personagem infantil conhecido na novela “Campo Geral” de Guimarães Rosa.

Além disso, uma característica importante na obra de Tenório é a questão da negritude. João é filho de um pai branco e uma mãe negra; ele já sofreu uma discriminação por ser o priminho mais escurinho da família do pai; aí entra-se na questão da invisibilidade. Frente à uma sociedade fundamentada em padrões específicos e excludentes, crianças como João são relegadas à condição de problema — problema para o adulto, como o próprio João fala. O racismo — anacrônico em sua essência — é um dilema tão avassalador e sistêmico que não percebemos sua presença em uma primeira análise, só sabemos que é mais forte que a vida de algumas pessoas. Portanto, maior que João; mesmo ele sendo o herói e protagonista dessa história.

Pessoalmente, foi uma resenha muito calorosa, porém eu só consigo dizer que foi um dos melhores livros que eu esperava ler. Sempre queria ler mais histórias focando nessas pessoas que não enxergamos no turbilhão do dia. Essas pessoas que são jogadas ao esquecimento por algo maior que nós, em um cotidiano que fabrica as mesmas bestas furiosas e descontroladas que João abriga na mente. Foi um livro que acalmou os meus leões e que me deu vontade de ler mais material do escritor. Jeferson Tenório tornou-se um nome que lembrarei para ler mais coisas dele.

Informações técnicas:

“O beijo na parede” de Jeferson Tenório
Lançado em 2013 pela Editora Sulina
134 páginas
Para comprar o livro: clique aqui

(parênteses)

Agora um (): daqui em diante, terei a disciplina para fazer resenhas de livros nessa plataforma. E: não só quaisquer livros, livros feitos por negros e/ou que falem sobre a temática negra.

Então, quando quiserem ler sobre novidades da literatura feitas por negros e que falem deles, fiquem à vontade aqui ^^

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