Sobre esse tal “racismo institucional”

Lisimba Dafari
10 min readAug 20, 2018

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Mais um ano eleitoral e, meio século depois da sistematização do conceito da institucionalização do racismo pelos Panteras Ture e Hamilton, ainda se faz urgente elucidar algumas coisas pra não ter ninguém iludido, decepcionado nem folgado demais nesse processo. Não só porque na corrida desse ano corpos negros estão mais presentes na disputa — devido a recente necessidade de muitos partidos de agregar algum “diferencial” às suas siglas –, como também porque muitos de nós ainda demonstramos confundir representatividade presencial com representatividade substancial — embora realmente seja difícil avaliar o engajamento desses corpos negros para além do simbolismo; embora seja bastante complicado identificar se são as nossas vozes que estão se apropriando desses palanques construídos em cima das estatísticas de nossa dor ou se o contrário.

“As instituições democráticas falham em atender a população negra”

Talvez por otimismo, ou conveniência, ou estratégia, o conceito de racismo institucional se perdeu em alguma tradução por aqui. De algum jeito acabou prevalecendo a interpretação de que a mesma República instituída pelas elites coloniais — para coibir os primeiros esboços de reparação — estaria em dívida com os povos subjugados. Como se o Estado brasileiro e todas as suas instituições tivessem magicamente se transformado após a pena majestosa da sinhá Isabel ou o golpe que destituiu a monarquia. Como se os regimes de governo importados e implantados pelas elites brasileiras não fossem filhos do mesmo projeto colonial que tanto(s) desumanizou e explorou no “Novo Mundo”. Em nome de Deus, da Igreja, da ciência, da lei e da própria ideia de “civilização” e “boa cultura”. Isso é bem equivocado porque logo nas primeiras páginas do livro que sistematizou o conceito Ture e Hamilton deixam bastante escuro que o propósito das instituições coloniais foi — e ainda é — o de naturalizar corpos brancos em posições de tomada de decisão. Em outras palavras, para os principais responsáveis pelo termo, racismo institucional nada mais é que a constatação de que todas as estruturas de poder (branco) são indissociáveis do pressuposto colonial de soberania branca.

Dessa forma, fazer crer que há um ruído nos ideais democráticos quando essas estruturas coloniais falham ao não garantir a cidadania (plena) dos povos historicamente colonizados é um baita desserviço. Tanto por reforçar o caráter “universal” dos modelos de organização social europeus, como por retomar a ideia de que bastam algumas adaptações para que as mesmas engrenagens elaboradas para desumanizar e dizimar têm como reverter seu desígnio original e, igualmente, contemplar, as mesmas massas historicamente marginalizadas. Puxado, né?! Portanto não deveríamos jamais perder de vista a realidade de que todas as instituições que mantemos ainda hoje foram meticulosamente planejadas com o fim de engendrar lógicas e práticas colonizadoras. Precisamos ter sempre em mente que o racismo institucional nada mais é que o reconhecimento de que as instituições atuais mantém com muito sucesso, diga-se de passagem, as estratégias de domínio colonial articuladas para naturalizar o domínio de homens brancos sobre toda a sociedade ao longo das gerações.

Aquenda: está muito bem registrado na história dazoropa que conceitos como “democracia”, “igualdade” e “cidadania” foram pensados a partir de instâncias (verticais) de controle social. Sendo assim, em que momento da história do “Novo Mundo” foi deflagrado uma ruptura real com o projeto de tornar o Brasil a imagem e semelhança (tropical) das metrópoles europeias? Em que momento da nossa história as demandas dos usurpadores da terra deixaram de ser únicas e prioritárias e passaram a fazer eco às vozes de seus nativos originais e dos povos traficados até aqui?

“Tudo bem você ter essa interpretação”

Como mencionado, umas das principais consequências desta equivocada interpretação — de que não é o DNA das instituições que são racistas, mas sim as suas engrenagens e operadores — é a crença de que é possível redimir os pelourinhos, senzalas e a própria Casa Grande. Como exatamente ninguém ousa dizer, mas paralelamente perpetua-se a ideia de que a cada um de nós que passa a ocupar a sala de estar e os escritórios da Casa Grande, estamos progredindo como sociedade. Ledo engano (feat. ignorância histórica). Exemplos como os de Mandela, Obama e qualquer político(a) negro(a) nosso da esquerda ou direita ilustram bem que a taxa cobrada pelos donos do baralho é que acatemos às regras do jogo (colonial). Uma vez que o tabuleiro nunca mudou de mãos, quem decide quais de nós está apto(a) para sentar-se com eles no recreio nunca foi determinado por nós. Assim, para adentramos certos espaços exige-se de nós, logo na entrada, o compromisso (tácito) em não virarmos a mesa.

Sabemos bem o que significa a exigência de “boa aparência” em cargos de prestígio, todavia nem sempre percebemos que o domar de nossos cabelos, gestos e comportamento servem para ilustrar a nosso introjeção dos valores da supremacia branca.

A preferência de RHs e organizações políticas por homens e mulheres não-brancos com discursos bem versados em teorias europeias vêm disso também, pois todo discurso que destoam das publicações da Casa Grande representa uma ameaça a premissa civilizatória europeia. Não é a toa que os bibliotecários da Casa Grande prontamente nos acusam de radicalismo ou “pauta identitária” a partir da menor contestação. Como, por exemplo, a própria compreensão de que o racismo foi condição imprescindível para a fundação de todas as nossas instituições e que, portanto, são essenciais em toda e qualquer análise da nossa sociedade.

Aquenda: No contexto de redemocratização no qual o conceito desembarcou por aqui faz sentido que algum mais velhos tenha achado necessário fomentar a interpretação de que o Estado brasileiro falha com a população negra. Afinal, a sombra da ditadura militar ainda paira sobre nós. Entretanto, o próprio receio em amedrontá-los ilustra que a nossa permanência em círculos brancos não se garante somente pelos nossos “méritos” — até porque toda seleção que leva em conta méritos individuais, numa sociedade hierarquizada racialmente tende sempre a mensurar privilégios acumulados/superados –, mas sim no nosso compromisso em ser lhes útil. Desde sempre, para que a nossa presença na Casa Grande seja tolerada, é preciso que pessoas não-brancas nos comportemos, nos apresentemos e pensemos de forma a não trazer desconforto aos sinhôs e sinhás. Aquele ditado: nego que muito acata ao brankkko apetece.

“Mas reformando as instituições…”

Já reparou que a maioria dos nossos que argumentam a possibilidade de redimir as instituições responsáveis pelo nosso genocídio e exclusão costumam ter algo em comum? Em alguma oportunidade futura pretendo abordar a questão da nossa assimilação ao mundo branco, mas não poderia deixar de notar que esse tipo de argumento costuma vir daqueles e daquelas (tutupom?!) de nós que pretendem ou já galgaram (meritocraticamente) algum aval de prestígio em instituições tradicionalmente ocupadas por algum filho legítimo da Casa Grande. Todavia, por entender que sobreviver aos boletos ainda significa uma demanda urgentíssima, pontuo que ocupar esses espaços não é o problema em si, mas sim o uso voluntário da negritude como blindagem desses espaços que tanto nos marginalizam e nos toleram, somente em caráter de nossa excepcionalidade, na medida em que contribuímos para seus intuitos. Problematizo o uso de uma identidade coletiva para acomodar ganhos individuais.

Parece que escapa às pessoas negras que ferrenhamente justificam sua ascensão pessoal como ganho da comunidade é que não são indivíduos que mudam instituições, mas sim estas que nos formam, preparam e selecionam os mais adequados aos seus interesses. Não foi a troco de nada que os primeiros projetos de gestão nacional do pós-abolição priorizaram a educação até que se chegasse ao mito fundador da “democracia racial”. A institucionalidade do racismo requer cidadãos permanentemente colonizados e ávidos por um lugar ao (brankkko) sol. Proporcionar alguns benefícios a poucos de nós sempre fez parte das normas coloniais. Criar competição entre os dominados sempre foi uma tática colonial. Não é de hoje que a Casa Grande divulga toda e qualquer brecha concedida a algum de nós como um avanço para todos. O real problema, porém, não é adentrar esses espaços, mas os critérios que nos tornam palatáveis aos olhos da branquidade. Quando temos em mente o sentido original do poder estruturante do racismo, fica difícil não entender o porquê que sempre que um de nós se institucionaliza — por inserção em escola/ universidade/ presídio/ manicômio/ partido/ ONG/ sindicatos/ corporação/ etc. — somos radicalmente modificados. Muitas das vezes nos tornando incompreensíveis para os que não passaram pelos mesmos processos. A sinuca de bico é que para adentrar esferas de poder, precisamos demonstrar enorme familiaridade com os valores que os estruturam — dentre os quais o racismo. O que significa dizer que para comungar de círculos brancos acabamos nos anestesiando à diversas facetas da opressão racial, principalmente àquelas das quais escapamos enquanto a maioria dos nossos têm mínimas chances de “ascender”. Sendo que ao nos cercar de brancos para nos sentir “validados”, irremediavelmente, reiteramos a faculdade que eles se autoatribuíram de definir quem somos e quem podemos ser.

Aquenda: a partir da consciência de que o racismo este no DNA de todas as nossas instituições e que elas foram feitas para moldar e mastigar nossos corpos e mentes, a proposta de reforma não parece tão coerente nem eficaz assim. Tá mais pra secar gelo ou querer tratar os efeitos sem desmontar as causas. Não estou dizendo que não devemos ocupar ou que quando ocupamos estamos errados em fazê-lo. Nada disso! O negócio é que o preço da nossa inserção ao mundo brankkko é muito alto. Não só o emocional, mas também o discursivo, como o social, o econômico e o afetivo. E o pior, toda pequena conquista que um de nós alcança pode ser desfeita no primeiro Trump que nos suceda ou pode ser exterminado a tiros pelos jagunços de sempre. E como se isso fosse pouco, o esforço de nos galgar vagas tradicionalmente brankkkas requer que espelhemos os jeitos de pensar/agir/nos afetar segundos os termos europeus do que seria certo/bom/belos. Ou seja, quando finalmente chegamos “lá”, corremos o risco de nos tornamos incompreensíveis para a maioria dos nossos. Somos obrigados tanto a nos distanciar e sincretizar tanto que acabamos neutralizando todo vestígio de negritude para poder “subir na vida” através de algum papel que nos sirva de dispensa pelo defeito de cor. Então, quanto mais a gente chega na reta final dessa lombra, mais inviável confrontar com as instituições que nos qualificam enquanto pessoas enfim dignas de R-E-S-P-E-C-T. Ou será que precisarei desenhar porque quanto mais nos empenhamos em nos cercar de leukkkos, ser vistos como bem-sucedidos, mais difícil fica morder a mão de quem paga o nosso salário, abrem outras portas ou os braços/pernas/coração? Ou será que parece lógico reformar, internamente, todas as instâncias que nos formaram e possibilitaram a nossa entrada pra início de conversa?

“O lance é ocupar tudo”

A gente sabe que o projeto colonial deu certo quando sentimos (enorme) dificuldade em conceber qualquer realidade que extrapole os parâmetros eurocêntricos. Quando nos deparamos com pessoas negras politizadas que operam entre os maniqueísmos: direita e esquerda; casa grande e senzala; capitalismo e socialismo; conservadorismo e libertinagem; civilização e selvageria; etc. Isso porque somos levados a aceitar a Europa como exemplo Único de civilização e, nesse projeto, somos os despotencializados e não os colonizadores. Estamos condicionados a enxergar e a interpretar o mundo segundo a perspectiva deles — e a própria língua (portuguesa) nos foi imposta para delimitar isso. Por conta de tudo isso, considero utópico acreditar que, ainda que todas as instituições brasileiras fossem ocupadas inteiramente por pessoas negras — africanas e ameríndias –, sanaríamos a opressão racial. Não tem dado certo nem nas ex-colonias africanas. Pois lá o poder permanece nas mãos daqueles que, na régua e na bala, definiram o que seria o que hoje conhecemos como Congo, África do Sul, Angola etc.

Mais uma vez não tenho a menor intenção de dizer que erramos ao ocupar esses espaços para garantir o mínimo de dignidade possível nessa sociedade racista. O ponto é que mesmo depois da “abolição” permanecemos sendo instrumentos na manutenção e prosperidade de empreendimentos brancos. Incapazes de sequer ousar iniciativas que não se pareçam ou aparelhem aos estabelecidos colonialmente. Passados 130 sem os grilhões e ainda dependemos da boa disposição de contratantes brancos para garantir o pão na mesa. Permanecemos livres para nos moldar as caixinhas disponíveis para nós e nos digladiar por um cantinho minimamente confortável dentro da Casa Grande. Pois, privados das bagagens de nossos ancestrais, acabamos fadados a tentar nos igualar aos nossos opressores. Até mesmo em vãs tentativas de enegrecer as mesmas engrenagens posicionadas no intuito de moer nossos corpos, memória, desejos, cultura etc. Ansiosos pelo dia no qual nossos algozes históricos nos olharam, enfim, com uma fraternidade que lhes custaria o senso de autoimportância que os faz se sentir “naturalmente” superiores.

Aquenda: Dentre os muitos sintomas de uma introjeção dos ideais colonialistas, defender os meios que justificaram os fins racistas que nos mantem a margem da humanidade talvez seja o mais doloroso. Sonhar com o dia em que os tataranetos de Trumps e Bolsonaros se disponham a não fazer pouco caso de nossas angústias é, no mínimo, fantasioso. Assim, depois de 518 anos de convívio longe do amistoso, talvez seja a hora de pensarmos por nós mesmos. Ousar rumar outros nortes que não o Europeu. Ser insolentes ao ponto de partir do zero rumo a novas visões de mundo ou resgatar aquelas que nos foram usurpadas. Tá mais que na hora da gente aprender com a história e com os fatos recentes que enegrecer castelos de marfim — da direita e da canhota — não vale de muita coisa a longo prazo, principalmente quando nos exigem que domemos nossa negritude para comungar entre eles. Não apenas porque os centros de poder instituídos emanam do sangue e suor dos nossos ancestrais, como também porque é insensato esperar que as ferramentas do escravizador possam nos proporcionar qualquer tipo de salvação desinteressada. Portanto, nessas eleições, mais importante que preferir a candidatura de corpos negros é nos atentar a sua proximidade com o a luta pró-negritude. Precisamos, sobretudo após a eleição, cobrar e acompanhar a representação de nossas demandas coletivas, pois quando a gente segue atrás de indivíduos negros ponta de lança, inevitavelmente, criamos alvos. Ou de apagamento da nossa identidade compartilhada ou de silenciamento por extermínio. Porém, o mais importante é sacarmos que o oposto de Casa Grande nunca foi senzala, mas sim Quilombo. O oposto de subjugação até pode ser a destituição, mas enquanto os alicerces se manterem os mesmos a autoridade precisará se valer da expropriação e abate dos nossos. De fato dominar todos os processos e práticas da Casa Grande é preciso, mas esse domínio não deve ser um fim em si mesmo, mas sim o meio pelo qual possamos remover o lodo da colonização e construir algo outro e nosso. Até quando a gente vai esperar que eles aprendam a dividir a bola invés de inventar jeitos nossos de aproveitar o quintal apesar deles? Até quando a gente vai ficar apostando todas as fichas em aluguel ao invés de cultivar tâmaras a fim de fazer brotar algo que independa da boa vontade deles?

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