Fatos e Falácias sobre a Ditadura Militar Brasileira

Leonardo Rossatto
18 min readSep 21, 2018

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Estamos em um tempo estranho, em que candidatos à presidência ganham votos quando exaltam os feitos da ditadura militar. Então, é preciso recuperar algumas verdades sobre o regime, que foi muito pior do que essa turma quer fazer parecer.

Para isso, recuperei alguns escritos antigos enumerando fatos e falácias acerca dos 21 anos de ditadura militar. Quem sabe assim as pessoas entendam o quão prejudicial o regime foi ao país.

Democracia, antes de qualquer outra coisa, diz respeito ao direito de se manifestar e de expressar opiniões. Ao direito de não concordar com as atitudes de quem está no poder sem sofrer repressões. Um governo perde toda e qualquer legitimidade quando usa a repressão, de forma sistemática, para calar quem é contrário. A ditadura fez isso por 21 anos no Brasil. E, até hoje, a perda de legitimidade pela repressão é uma regra. As deposições de Hosni Mubarak, no Egito, e de Viktor Yanukovich, na Ucrânia, são exemplos da década atual. O atual momento do regime de Nicolás Maduro na Venezuela também.

Dito isso, cabe a exposição de alguns fatos que ocorreram no período e também é necessário desmistificar algumas falácias comuns dos defensores da ditadura. Muitos acham que nem deveríamos conversar com eles, mas é bom ser didático às vezes, mesmo que a gente acabe esbarrando em argumentos totalmente irracionais e baseados em ódio. Sabe por que? Porque esses caras, com a militância odiosa diária e incansável, convencem cada dia mais gente de seus pontos de vista distorcidos. É necessário um contraponto.

DITADURA MILITAR — FATOS

1) Em 1964 tivemos um Golpe de Estado, e não uma “Revolução que nos salvou do Comunismo”

Sejamos francos: João Goulart era um governo legalmente constituído. Fruto de uma enorme pataquada do Udenista Jânio Quadros, populista da pior estirpe, que renunciou ao cargo em 1961 após sete meses de governo, esperando que sua renúncia fosse rejeitada pelo Congresso enquanto o vice-presidente João Goulart estava na China comunista (a mando de Jânio).

Sobre isso, é necessário esclarecer:

a) Naquela época, o vice-presidente era eleito em processo eleitoral semelhante ao do presidente. Isso incorreu no fato de que o vice-presidente João Goulart era um herdeiro do Varguismo, adepto do populismo trabalhista, enquanto o presidente Jânio Quadros era um representante populista das direitas paulistas.

O “respeito a ordem e aos valores da família” já rendia capital político naquela época. Tanto que, dentre outras bizarrices, Jânio Quadros proibiu a execução de músicas de rock’n roll em bares quando governador de São Paulo, em 1957 e o biquíni em praias quando se tornou presidente.

Com a renúncia irreversível de Jânio Quadros, foi aberto espaço para que um oposicionista assumisse o poder.

b) Tentaram dar o golpe em 1961. Mas graças a Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Brizola, essa tentativa de golpe não obteve êxito.

c) Tentaram limitar os poderes de João Goulart tornando o Brasil uma república parlamentarista. Porque os mesmos setores golpistas não admitiam a posse de João Goulart. E, de fato, o único período da história em que o Brasil foi uma república Parlamentarista foi entre setembro de 1961 e janeiro de 1963. Nosso único primeiro-ministro foi Tancredo Neves. E o parlamentarismo foi extinto após plebiscito convocado pelo presidente João Goulart.

d) Goulart não era comunista. No entanto, pretendia aderir ao Movimento dos Países Não-Alinhados, iniciado em 1961 pelo presidente iugoslavo Josip Broz Tito. Obviamente, tal posição foi olhada com ressalvas pelo governo americano, ressabiado com Cuba e sua adesão recente ao comunismo. E o governo americano, nesse contexto, colaborou com a implantação de um regime que, alguns anos depois, tornou-se praticamente um Gendarme dos EUA na América Latina, junto com outros regimes ditatoriais.

e) Em 1964, militares assumiram o poder, com apoio da elite conservadora paulista, materializada por Adhemar de Barros em sua triste “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, conclamada em resposta ao anúncio das Reformas de Base por João Goulart. Culturalmente, a propriedade no Brasil é vista como um direito absoluto, diferentemente de outros países. E a Reforma de Base de João Goulart previa a mudança desse paradigma. Em uma sociedade que vivia em um estado de ebulição interna provocada pela dicotomia entre esquerda e direita, tais anúncios acabaram catalisando o golpe de estado que afundou o Brasil na Ditadura. Golpe motivado por elites econômicas e apoiado pelo governo norte-americano. Não tem nada de Revolução ou de heroico nisso, apenas na cabeça de quem não conhece nossa história.

f) A chance de consolidação de um governo comunista na América Latina no momento mais tenso da Guerra Fria, após a Revolução Cubana, era algo em torno de zero. O que aconteceu no Brasil não deve ser comparado ao que aconteceu em Cuba, mas com o que aconteceu na Guatemala em 1954. O golpe de Estado no país, planejado e instrumentalizado pelo CIA, foi o balão de ensaio para todos os golpes de estado em governos latino-americanos nas décadas seguintes. O que aconteceu em Cuba foi um acidente de percurso.

Leiam e compreendam as similaridades com o caso brasileiro (na visão da própria CIA): Congress, The Cia, And Guatemala, 1954

Inclusive, se você quer reparação histórica, vote 54 pelo neojanguismo! (vou fazer proselitismo aqui sim)

2) O argumento da “isonomia de investigação” não é válido

“Se vocês querem investigar os militares, vocês tem que investigar os criminosos terroristas assassinos que cometiam crimes contra a ordem pública, como a própria Dilma”.

Pior argumento possível. Por um único motivo: esses “criminosos”, independente de lutarem por uma causa, já foram julgados, condenados e torturados pelos próprios militares. Muitos deles morreram sem deixar pistas até hoje. Não sabemos onde estão os corpos, provavelmente foram enterrados em valas comuns como indigentes. Esse argumento implica na vontade asquerosa de julgar alguém duas vezes pelo mesmo “crime”, por um único e deprimente político: divergência política.

Dane-se se o governo petista é bom ou ruim, não é essa a discussão. Mas o fato é que, pela primeira vez, os interesses de certos grupos que sempre estiveram ligados ao poder e à manutenção das desigualdades sociais no Brasil tem sido combatidos. E isso gerou o recrudescimento de um conservadorismo tosco, cru, sem escrúpulos e que desrespeita a dignidade humana.

Um conservadorismo que envergonha mais a direita do que a esquerda, por um único motivo: se alguém se declara de direita no Brasil hoje, não será visto como defensor do Estado Mínimo, mas como um defensor desses valores indefectíveis, de obscurantismo e de resgate da ditadura. E isso explica o fato de que por muito tempo o governo petista praticamente não teve oposição. Ninguém queria se alinhar com um ideário político que remetesse à ditadura militar. Infelizmente, o que era vergonha até alguns anos atrás de tornou motivo de orgulho hoje.

Então, toda vez que alguém pensar em julgar “os militares e os guerrilheiros”, saibam que os guerrilheiros já foram julgados e condenados. Pagaram muitas vezes a pena capital. Só falta o julgamento dos militares, e mais uma vez sou obrigado a dizer: o Brasil é um dos únicos países sul-americanos que ainda não acertou contas com a sua história, que ainda não condenou seus terroristas de estado.

3) Ditadura nunca representou “ordem”

Uma das maiores falácias dos defensores da ditadura militar é o de que “na ditadura havia ordem, não havia corrupção”. Mais mentira, impossível. Os militares se apropriaram da máquina estatal de forma grotesca. Os casos de corrupção não apareciam por um único motivos: eles não eram investigados, em um governo em que não havia democracia. E, quando eram investigados, eram censurados previamente, de acordo com o Decreto-Lei nº 1.077, de 21 de janeiro de 1970. Esse decreto estabelecia duas modalidades de censura inimagináveis nos dias de hoje:

a) Em alguns casos, uma equipe de censores instalava-se permanentemente na redação dos jornais e das revistas, para decidir o que poderia ou não ser publicado

b) Quando não havia uma equipe de censores dentro das redações, os veículos eram obrigados a enviar antecipadamente o que pretendiam publicar para a Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal, em Brasília.

Isso causava um terror brutal para qualquer um que trabalhasse com a produção de conteúdo. Mas, para o cidadão comum, o reflexo era apenas o estranhamento por, de vez em quando, ler trechos aleatórios de Camões ou ter receitas de bolo no meio do jornal.

Folha do Estadão com poema de Camões, colocado após a censura prévia. Fonte: Buzzfeed

Daí, para o cidadão comum, a percepção era de que estava tudo bem. Mas a verdade é que o cidadão comum estava sendo manipulado por um regime cruel, sem nenhuma transparência, que torturava e matava pessoas, desviava dinheiro, geria extremamente mal as obras públicas e endividava o país. Um estelionato político sustentado com armas por 21 anos.

O período da ditadura foi o período de maior desordem política da história do país. As informações obviamente eram truncadas pelo regime (e pela imprensa amplamente favorável aos militares, representada por órgãos como a Rede Globo e a Folha de São Paulo). Mas os milhares de desaparecidos que ainda restam são a prova viva de que o Brasil vivia um momento institucional péssimo. E ninguém sabe explicar até hoje como o dinheiro arrecadado de impostos pelos militares simplesmente DESAPARECEU. Nem as políticas econômicas absurdamente equivocadas explicam isso.

4) O governo militar foi uma catástrofe econômica, e não um sucesso

Entre 1964 e 1970, a carga tributária brasileira saltou de 17 para 26% do PIB. Foi o maior aumento proporcional da história da carga tributária brasileira em um período tão curto. E nem mesmo esse aumento absurdo impediu que o governo militar fosse uma completa catástrofe econômica:

Fonte: brasilfatosedados.wordpress.com

O governo militar pegou um Brasil precisando de melhorias em seus sistemas financeiro e tributário. E entregou um Brasil com a maior dívida de sua história, dando fim a um período de 40 anos de crescimento econômico intenso, baseado na substituição de importações. Os anos de “milagre econômico”, entre 1969 e 1974, foram promovidos por uma pujança econômica falsa, promovida pelo gasto público desenfreado proporcionado pelo aumento exponencial da arrecadação do governo. Tal pujança foi extremamente mal aproveitada, servindo apenas para aguçar as já enormes desigualdades sociais existentes em nosso país. A urbanização do período nas grandes cidades tornou-se uma catástrofe nos anos 80, quando a irresponsabilidade cobrou seu preço e o Brasil quebrou,

As duas crises do petróleo foram os estopins para derrubar o castelo de cartas econômico montado pelos militares. Que caiu de vez com a moratória mexicana de 1982. Em mais de uma década de pujança, os militares não conseguiram tornar o Brasil minimamente invulnerável a solavancos externos.

Em 1964, quando os militares assumiram, fizeram uma extensa reforma econômica, o PAEG (Programa de Ação Econômica do Governo). Para não ficar explicando o que é o sistema de substituição de importações e facilitar a compreensão, vamos simplificar, olhando apenas os efeitos do PAEG. E são dois os efeitos principais:

– Aumento da capacidade de arrecadação do governo: até 1964, sem correção monetária e com a Lei da Usura, que limitava a cobrança de juros a 12% ao ano, VALIA A PENA sonegar impostos do governo em um cenário em que a inflação beirava os 90% ao ano. Com a implantação da correção monetária, as dívidas fiscais passaram a ser corrigidas, e novos mecanismos de arrecadação foram criados. Com isso, a relação entre impostos e PIB, que era de 16.1% em 1963, subiu para 26% do PIB em 1970, em um cenário de crescimento econômico que fez com que o governo tivesse muito dinheiro na mão. A estrutura tributária do período dura até hoje, com algumas mudanças importantes.

– Por outro lado, o PAEG organizou o Sistema Financeiro Nacional, aumentando a capacidade de endividamento do governo. Com isso, o governo passou a subsidiar todo tipo de indústria nacional, alguns produtos de importação (como petróleo) e a fazer uma série de investimentos megalomaníacos em infraestrutura. Quando o excesso de liquidez internacional acabou, no início da década de 70, o dinheiro internacional começou a ficar mais caro. E, sem o bônus do aumento da carga tributária que havia na década anterior, passou a recorrer a empréstimos mais caros para as obras de infraestrutura. A dívida externa brasileira explodiu. Passou de 3,3 bilhões de dólares, em 1964, à 105,1 bilhões de dólares, em 1985:

Fonte: IBGE e IpeaData

Num resumo simples: o Brasil, na época da ditadura, teve bônus financeiro suficiente para fazer um Plano Marshall. A disponibilidade de dinheiro para reformar o país de forma significativa foi a maior da História. No entanto, a incompetência, a teimosia e os agrados aos “amigos” (os elefantes brancos construídos no período são exemplo disso) frustraram completamente a estratégia de integração e modernização do país, que chegou aos anos 80 com elevada carga tributária e uma dívida externa impagável. Esse foi o fruto verdadeiro dos cinco anos de “milagre”

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Agora, vamos enumerar algumas falácias do regime:

FALÁCIAS

  1. “Mas teve investimento em infraestrutura”

Sim, teve. De forma pouco criteriosa, irresponsável e incompetente. A Transamazônica é, até hoje, um exemplo clássico do desperdício de dinheiro em uma obra faraônica. E, além disso, pairam até hoje suspeitas de assassinatos em massa de populações de índios e de povoados que cometeram o crime de morar no caminho da estrada.

A represa de Itaipu, além de causar problemas diplomáticos com Argentina e Uruguai, foi responsável por uma das maiores perdas ambientais do Brasil no século XX: o fim do Salto das Sete Quedas, que virou parte da Represa de Itaipu.

Salto das Sete Quedas. Fonte: Vida Sustentável

Essas obras (e outras, como a Ponte Rio-Niterói) tem todas elas algo em comum: ninguém sabe, até hoje, o quanto custaram. Além disso, os governos da ditadura idealizaram obras desastrosas completadas após o regime, como a Usina Hidrelétrica de Balbina, que também é uma das maiores catástrofes ambientais da história do país.

Usina Hidrelética de Balbina, uma catástrofe ecológica da ditadura

Não é à toa que, na época, surgiram com tanta força movimentos de trabalhadores em prol do meio ambiente, com expoentes como Chico Mendes e Marina Silva. A ditadura militar gastou muito, mal, e deixou um rastro de destruição ecológica e cultural com o qual temos que lidar até hoje.

2. “Ah, mas na Ditadura havia respeito”

Errado. A ditadura deturpou a ideia de respeito e ajudou a formar uma geração extremamente bunda mole, que confunde “respeito” com “aceitar tudo calado”. Isso ajuda a explicar o fato de que, após a ditadura, a participação do brasileiro na política não cresceu como se esperava. Ajuda a explicar a “homogeneização” dos partidos políticos em nome da governabilidade. E ajuda a explicar porque não houve, de fato, um rompimento após a ditadura, mas uma transição pacífica.

O Brasil nunca teve uma tradição de estabilidade política, e, desde a Proclamação da República, vive em “ondas de democracia” cercadas por períodos de autoritarismo. Vejam só:

Autoritarismo #1: de 1889 a 1894 — logo após a Proclamação da República, o país teve dois presidentes militares que se utilizaram de violência em diversas oportunidades para garantir a manutenção do regime.

Democracia #1: de 1894 a 1930 — era uma república Oligárquica, mas que mantinha eleições e costumava respeitar o resultado delas. Alguns direitos políticos foram conquistados nessa época, e até mesmo movimentos sociais surgiram, como o dos anarquistas entre os imigrantes italianos na São Paulo da década de 10.

Autoritarismo #2: de 1930 a 1945 — o momento democrático que o Brasil vivia foi abaixo com a Revolução de 1930, que alavancou Getúlio Vargas ao poder. A repressão aumentou em 1937, com o Estado Novo, que aumentou os poderes de Vargas após as frustradas Intentonas Integralista e Comunista.

Democracia #2: de 1946 a 1964 — em 1945, no contexto da 2ª Guerra Mundial, Vargas aceitou eleições para Presidente. Mesmo com diversos fatos dramáticos, como o suicídio do próprio Vargas em 1954, a democracia se sustentou até 1964, quando os militares, através de um Golpe de Estado contra o Presidente João Goulart, estabeleceram-se no poder.

Autoritarismo #3: de 1964 a 1985 — a ditadura militar foi provavelmente o momento de maior repressão política na História do Brasil. E também foi catastrófica em diversos outros sentidos. Foram 21 anos que colocaram o país em um abismo econômico sem precedentes e em uma situação política insustentável.

Democracia #3: de 1985 até sabe-se lá quando (2016? 2018?) — a primeira eleição para presidente só ocorreu em 1989, mas já em 1985 tínhamos um presidente civil, José Sarney, vice-presidente de Tancredo Neves, que havia sido eleito pelo Congresso e faleceu antes de assumir a presidência.

O padrão é simples de perceber: no Brasil, as transições entre regimes autoritários e regimes democráticos é sempre pacífica, mas as transições entre regimes democráticos e autoritários não são.

O grande problema de transições pacíficas entre regimes autoritários e democráticos é que essas transições, ao não desqualificarem os regimes autoritários, deixando sem punição os crimes cometidos por governos repressores, fazem com que a semente do autoritarismo permaneça viva no país. E essa sanha autoritária se manifesta nos próprios regimes democráticos, com coisas inaceitáveis como a repressão policial e a tolerância ao “justiçamento” — o triste hábito de alguns cidadãos em acharem que podem tomar o papel do sistema judiciário, julgando outras pessoas, condenando-as e executando a pena por conta própria.

Repressão policial é inaceitável. “Justiçamento” geralmente não é justiçamento, é vingança. É descontar em uma pessoa qualquer a frustração pela repressão ou pela omissão do Estado. E ambas as coisas são intoleráveis em qualquer regime que se diz democrático.

No entanto, repressão e “justiçamento” são marcas históricas no Brasil. E isso ocorre, entre outros motivos, porque o país não desqualifica a repressão e é partidário de transições pacíficas entre regimes autoritários e democráticos.

A população brasileira viveu por muito tempo sob a égide do medo. E o medo acostumou tão mal a classe política que em 2013, quando explodiram as manifestações de junho, ninguém entendeu direito o que estava acontecendo.

Isso é outro efeito da ditadura. O sentimento de insatisfação represada e sem muito foco das manifestações mostrou que o brasileiro quer participar mais da política, mas não sabe como. E a política da desinformação, que foi uma política de Estado da época da ditadura, faz com que as reivindicações adquiram ares por vezes esdrúxulos, derivado da incapacidade da maioria das pessoas de enxergar o país em perspectiva.

3. “Na época da ditadura a educação era boa”

Dentre todas as falácias, essa é provavelmente a mais mentirosa. E isso porque a ditadura DESMONTOU o sistema de educação brasileiro.

Qual era o cenário da educação brasileira antes de 1964? Apesar da educação não ser universalizada (a primeira pesquisa sobre o tema do IBGE, de 1970, estimava em 33,6% a população acima de 15 anos analfabeta no país), ela tinha qualidade. A situação da época era inimaginável hoje: as escolas públicas de ensino fundamental e médio eram de excelência e mais desejadas que as escolas privadas, exatamente como ocorre com as Universidades Públicas até hoje. Havia aulas de francês e latim, por exemplo. Os alunos das escolas privadas eram vistos como alunos de segunda linha, que “não conseguiam acompanhar” as escolas públicas. Algumas escolas públicas mais tradicionais, nas grandes cidades, chegavam a ter CÁTEDRAS para os professores. E isso era um sintoma do óbvio: os professores eram valorizados e bem remunerados.

A ditadura acabou com tudo isso. Algumas matérias foram proibidas, por serem consideradas “subversivas”. Inclusive o estudo de idiomas. No lugar, entraram excrescências que só serviam para louvar o regime militar, como OSPB (Organização Social e Política do Brasil) e Educação Moral e Cívica.

Além disso, a percepção de que “era melhor” na ditadura vem de outro ponto importante: na época, o atendimento aos alunos não era integral. Em muitos casos, existiam provas de admissão para os colégios, e essas provas, por si só, já faziam o nível da escola subir, selecionando os melhores adultos ao invés de cumprir a obrigação brasileira de, enquanto país, educar todo mundo. A ditadura militar era covarde a ponto de fugir de suas obrigações mais básicas.

E o principal: professores foram perseguidos, presos, torturados e mortos pelo regime. Conteúdos eram censurados pelo regime. E os docentes sofreram uma política de arrocho salarial que foi continuada até mesmo por regimes posteriores à ditadura. A partir da década de 80, o esforço de universalização da educação pública já ocorreu com o sistema destruído pelos militares (o que dificulta o serviço até hoje).

Além disso, a ditadura IGNOROU a migração em massa do campo para a cidade, deixando de construir uma estrutura educacional que comportasse essa mudança demográfica.

4. “Na Ditadura não havia corrupção”

Não só essa afirmação é mentirosa, como é possível afirmar categoricamente que o que alimentava a ditadura, nos municípios e estados, era a corrupção. Nomes como Antônio Carlos Magalhães, José Sarney e Paulo Maluf ergueram seus impérios durante a ditadura e com apoio do governo central, com desvios notórios de recursos públicos, nunca apurados. Os repasses de dinheiro para os coronéis locais eram decisivos na sustentação do regime. Tanto que, no final da década de 70, quando o dinheiro acabou, os militares começaram a preparar a saída do poder, por saberem que não havia mais como sustentar os coronéis das cidades e dos estados, mantendo-os fiéis às custas de repasses federais.

Sobre esse assunto, recomendo fortemente o texto do Marcelo Freire, no UOL, falando de dez casos de corrupção durante o regime militar.

O fato é que muita gente ligada ao regime sempre quis o acesso ao dinheiro público sem prestar contas. E os militares só saíram de lá quando se certificaram que os privilégios continuariam. O resultado? Pensões altíssimas para filhos, esposas e netos e militares até hoje. Ainda estamos pagando a conta dos abusos financeiros cometidos pela ditadura.

Outro componente importante, fortalecido durante a ditadura, foi o isolamento da caserna em relação ao restante da sociedade. Em ambientes assim, abusos ocorrem sem que haja um agente externo capaz de julgar. Muitas questões são abafadas e só o que é realmente grave acaba sendo julgado pela Justiça Militar.

5. “Ah, mas na época da Ditadura havia segurança”

Outra mentira. E o planejamento urbano da época do regime militar explica isso.

A Ditadura foi a época em que o planejamento urbano no Brasil voltou a ser feito para as classes dominantes, com a utilização dos Planos Diretores como instrumentos de exclusão social. Nas palavras de Flávio Villaça:

“O plano (diretor) sem mapa enumera objetivos, políticas e diretrizes os mais louváveis e bem intencionados possíveis. Com isso, elimina as discórdias e oculta os conflitos.

Na verdade, o novo tipo de plano é o novo mecanismo utilizado pelos interesses das facções de classe dominante na esfera urbana para contemporizar as medidas de interesse popular. A ideia do plano diretor de princípios e diretrizes está associada à de “posterior detalhamento”, e isso nunca ocorre. Passam, então, a aparecer os planos que dizem como serão os planos quando eles vierem a ser feitos” (p. 221)

Ou seja: com essa ideia da ditadura de fazer “Planos que nunca seriam executados”, aliada à migração em massa para as cidades, foram desenvolvidos extensos bolsões de pobreza das cidades, nas décadas de 70 e 80. Esses bolsões eram intencionalmente ignorados pelos governos, que, assim, não precisavam dispender verbas instalando serviços públicos nesses locais. Graças a essa política de ignorar a parte pobre das cidades, esses bolsões de pobreza (favelas, cortiços) passaram a ser administrados por governos paralelos: traficantes de drogas, milícias, pessoas que controlavam a região através da violência.

Com isso, ainda no final da década de 70, o Brasil testemunhou a explosão da violência nas grandes cidades e o surgimento de facções criminosas que controlavam extensas áreas nas periferias das cidades. Na década de 80, Belford Roxo, na Baixada Fluminense, era considerada a cidade mais violenta do mundo. Em São Paulo, a violência que assolava as periferias na década de 90 está eternizada em letras de grupos de Rap como o Racionais Mc’s, RZO e Facção Central.

E aí está grande parte da origem do NOSSO problema de segurança pública, que atrapalha o Brasil até hoje. No regime militar. Que negligenciou o planejamento urbano das cidades, a educação, a saúde e toda espécie de serviço público, abrindo espaço para a violência em seu estado mais brutal.

E a própria falta de uma ruptura no regime, com uma transição pacífica e sem investigações, fez com que muita coisa da ideologia do período permanecesse intacta até hoje. A ideologia da repressão aos “subversivos”, do regime militar, deu lugar à ideologia policialesca da “repressão aos bandidos”, atualmente, embasada por uma parte da polícia que trouxe a truculência e a corrupção, que eram marcas da corporação na época da ditadura, para os dias atuais. A tortura e a morte de subversivos deram lugar ao justiçamento e à execução de bandidos, sem julgamento. Em ambos os casos, com apoio irrestrito de setores conservadores da sociedade. Não é à toa que hoje temos um Bolsonaro da vida defendendo todas as atrocidades do regime militar sem ser realmente questionado por isso.

Conclusão

Nesse texto, a intenção foi demonstrar que a ditadura militar foi catastrófica em diversos aspectos. A repressão torna a ditadura militar brasileira algo tenebroso, mas os demais fatores do regime não atenuam de forma alguma a questão da repressão, não importando a ideologia.

A ditadura militar foi uma catástrofe econômica, social e política. Foi um erro crasso que gera consequências até hoje. Ainda estamos pagando o preço dos 21 anos de regime militar. Esse período obscuro não só atrasou o Brasil, mas também promove o atraso até hoje. E tem candidato que quer voltar para esse período.

Por isso, mais do que nunca, precisamos condenar o regime militar da mesma forma que outros países fizeram. Precisamos compreender e de valorizar a História do Brasil, para que pessoas como o capitão defensor da ditadura que tem como vice um general não tenham a menor chance de voltar ao poder.

Referências

http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=12&op=0&vcodigo=SCN49&t=carga-tributaria-bruta

https://www.cia.gov/library/center-for-the-study-of-intelligence/kent-csi/vol44no5/html/v44i5a03p.htm

http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/lista_tema.aspx?op=0&de=8&no=4

http://trivela.uol.com.br/da-criacao-brasileirao-aos-elefantes-brancos-como-o-futebol-entrou-plano-de-integracao-nacional/

VILLAÇA, F. (1999) “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”, in Csaba Deák e Sueli Ramos Schiffer (orgs.). O processo de urbanização no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, pp. 169–244.

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Leonardo Rossatto
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A descrição deste perfil está imperdível, mas antes fiquem com uma mensagem dos nossos patrocinadores: ¯\_(ツ)_/¯

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