Sobre a compulsoriedade sexual — a construção social da prática sexual como “necessidade” para ferir a liberdade das mulheres

reflexão lésbica
18 min readJun 12, 2020

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Hildegard Von Bingen, freira que se dedicou a música, filosofia, medicina, e a formação espiritual de outras mulheres. Construiu um monastério só de mulheres para viver com outras pupilas longe da molestação masculina. Sua vida é retratada por Margareth Von Trotta no filme “Visions” (2015).

A compulsoriedade sexual afirma que prática sexual é uma necessidade vital. Chamo de prática sexual e não de “sexo” porque vamos usar sexo como o que designa a categoria social de homens e mulheres, o termo “fazer sexo” tem sua origem portanto bastante heterossexista por se remeter a fazer as genitalias femininas e masculinas se encontrarem na idéia de sua complementação supostamente “natural” e inevitável. Qual o respaldo científico dessa idéia de que todo humano necessita praticar sua sexualidade? Como afirma Sheila Jeffreys, você não morre se ficar sem transar, diferente de ficar sem comer ou respirar.[1] Assim, a compulsoriedade sexual se baseia num discurso social que se converte num dogma, que afirma que todo ser humano precisa praticar relações sexuais. Isso é parte intrínseca da instituição da heterossexualidade e sua ideologia, ao impedir que mulheres vivam independentes de homens por meio da crença de que precisam estar com eles afetivamente ou para se satisfazer, também por meio de antes instalar o dogma da orientação sexual, outro constructo do liberalismo que usa um discurso sobre a suposta natureza da atração aos homens. O feminismo radical sustenta que todos desejos são construídos e depois socializados. Ninguém nasce com sexualidade inata segundo a epistemologia feminista radical. Uma coisa seria afirmar que as mulheres foram socializadas pra serem heterossexuais a um ponto que se torna difícil reverter tal programação, o que até teria respaldo na neuropsicologia: o cérebro fica engessado nos mesmos caminhos neuronais assim como a pornografia faz com o cérebro, condicionando o prazer sexual às imagens pornográficas (e no caso de sobreviventes de traumas algumas vezes à cena do trauma na tentativa de controle sobre o medo e integração psíquica do evento inassimilável). Isso seria uma análise feminista radical aceitável embora autocomplacente. Eu veria uma certa má-fé vitimizadora: prefiro apostar na nossa capacidade humana de construir a nós mesmas, de moldar nossos destinos, na potência plástica do cérebro para desaprender, aprender e regenerar. Desaprender erotismo da desigualdade foi a aposta feminista radical por muito tempo.

Com a compulsoriedade sexual logrou-se apagar as histórias de mulheres independentes, “spinsters” (solteironas)[2], celibatárias, que recusavam a instituição do casamento. Muitas mulheres fugiram para conventos ou se associaram com amigas (casamentos bostonianos) para viver sem homens. [3] Eram tempos onde o discurso social corrente era de que mulheres não tinham desejo sexual. Muitas até tinham, por mulheres por exemplo, e viveram, mas a maioria vivia casamentos com fins pragmáticos (mulheres eram inválidas civis sem casamento e não tinham como subsistir materialmente), a prática sexual era regulada pela Igreja como tendo fins de reprodução humana. Então isso também trazia a vantagem de o sistema nem perceber o desejo lésbico e estas relações ocorrerem livremente, e também das mulheres tentarem viver independente de homens sozinhas ou em associação com outras mulheres, quando começaram a ganhar o mercado de trabalho.

Como surgiu então o discurso da “necessidade sexual feminina”? Ele foi engendrado pela sexologia e psiquiatria. Em resposta aos movimentos feministas e sufragistas. As sufragistas chegavam a defender o celibato feminino e masculino — em tempos sem contraceptivos — como profilaxia de doenças e gravidez, como independência feminina, e no caso de homens, faziam campanha pelo celibato masculino para lutar contra as infecções sexualmente transmissíveis, a prostituição e o abuso de crianças. [4]

O feminismo da igualdade tem origem na masculinidade ou pelo menos em sua colonização. Mulheres celebram ao ganhar essa igualdade com homens no discurso machista de que eles tem impulsos sexuais incontroláveis que precisam ser satisfeitos, então teríamos tanto quanto eles, desejo e necessidade sexual imperativas. Ao invés de questionar por que esse discurso existe, qual sua origem e o mais importante: a quem beneficia (sistemas e classes de pessoas).

A Solanas já dizia que era uma virtude feminina não ser igual homens com sexo que ela fala que nadariam uma piscina de merda pra alcançar uma vagina.[5] Valerie Solanas sofreu abuso infantil e depois sobreviveu materialmente através da prostituição. Ela sabia muito bem o quanto sexualidade e prática sexual não são inerentemente positivas. Quanto não ser refém disso não fazia de mulheres seres menores, e sim superiores moralmente e talvez fisicamente se isso tiver mesmo base biológica. Faz de mulheres vanguarda civilizatória, o fato de não serem predadoras sexuais compulsivas como homens. Como feministas sabemos que essa compulsão e obsessão masculina com “meter” nada tem de natural e tudo de político. [6]

A maior tragédia feminina foi a invenção por sexólogos do orgasmo vaginal, o papai noel das mulheres, porque tal coisa não existe. Uma falácia masculina para beneficiar homens como classe. E instalando nas mulheres a ansiedade de obter esse objeto mítico, favoravelmente homens logram realizar mais e mais penetrações penianas, uma prática que não é somente sexual, é política. [7] É a estética da dominação, ao longo da história foi assim construída, com essa simbologia. Essa simbologia não se apaga de um dia para o outro. A penetração peniana poderíamos chamar de coito, mas acaba igualando à natureza do coito instintivo de outras espécies não-culturais. Na sociedade humana práticas sexuais possuem uma função não apenas de reprodução da espécie, e sim de controle da reprodução como capital político, e função ideológica e política de dominação e colonização das mulheres, de guerra psicológica com o terrorismo do estupro, com a apropriação de seus efeitos traumáticos nas pessoas para funcionalidade do patriarcado como ocorre no caso do incesto e abuso de meninas. [8] Andrea Dworkin chamou de Intercourse (intercurso sexual) que existe no inglês. É um termo jurídico inclusive. Chamo de penetração peniana para diferenciar das práticas sexuais penetrativas entre lésbicas que possuem totalmente outra fenomenologia, estética, ética e poética.

A penetração peniana foi usada ao longo da história como ferramenta de terrorismo político, e também foi usada pela medicina masculina desde a antiguidade, o tratamento da “histeria” se baseava no estupro, dizia-se que o líquido seminal apaziguaria as mulheres. [9] E foi usado no século do ressurgimento da “histeria” como tema público, do surgimento da primeira onda feminista, e sempre as instituições começam a nomear um problema sempre com fins de controle social, como é o caso dos diagnósticos psiquiatricos. Quando mulheres voltam a se tornar um problema que desordena a ordem patriarcal, elas são diagnosticadas para serem tratadas. As bruxas foram queimadas até que a classe médica, que surgiu com o espólio da inquisição tomando o lugar de curandeira das mulheres, declarou que bruxas não eram possuídas e sim loucas e precisavam de tratamento[10].

A estratégia patriarcal da modernidade foi declarar a sexualidade feminina inexistente. A estratégia patriarcal da contemporaneidade foi declarar a sexualidade feminina inata, heterossexual e uma necessidade, e uma conquista das mulheres (que favorece homens). Depois para ter uma cara mais progressista, reconheceu o lesbianismo, desde que seja uma orientação sexual minoritária. E até feministas radicais incoerentemente se contentam com esse lugar, em especial as heterossexuais, com os benefícios dessa materialidade da associação com homens, mas também as lésbicas que estão traumatizadas de uma história de tentativas de correção tentam se apegar na crença religiosa liberal de que nascemos assim que agrada os heterossexuais e os dissuade de seguir tentando mudar o que elas são.

Depois dessa empreitada do liberalismo, hoje é impossível não pensar a mulher sem sexo com qualquer outra coisa que não seja como uma infeliz. E essa mulher se vê como uma infeliz e anormal. [11] Isso apaga os referentes positivos de mulheres que romperam com a heterossexualidade não por meio só do lesbianismo, mas por meio da independência sexual real. Que estão em todo mundo: mulheres na África que formam suas próprias vilas de mulheres onde homens não entram e acolhem outras dissidentes. Mães que se insurgiram contra a prática da mutilação genital feminina de suas filhas e as sobreviventes, que são discapacitadas ao estimulo sexual clitórico mas certamente possuem outros prazeres do viver e do corpo consigo. Mulheres coreanas e japonesas que estão recusando casar-se, que optam pela assexualidade e por suas carreiras devido a doentia cultura sexual misógina de homens asiáticos [12]. Mulheres como madame C. J. Walker da série da Netflix, mulher empreendedora negra, que deixou o marido e focou nas redes de mulheres (negras em sua maioria mas brancas também) de trabalho e apoio, sua filha lésbica que adotou outra menina negra ao invés de engravidar… Todas as nossas mães e avós que depois de divorciar, não buscaram mais homens por só ver neles problemas. Elas não são infelizes, elas fizeram uma escolha alegre por si mesmas. Todas mulheres que divorciaram e decidiram viver para si.

Sem a ideologia da suposta orientação heterossexual, sem a heterossexualização das mulheres e sem a farsa da necessidade de transar com homens, muitas mulheres seriam salvas de: femicídio, aborto (legal ou ilegal, ambos são um procedimento que expôe o corpo feminino, não o corpo dos homens que só gozaram), maternidade precoce, escravidão de criar filhos, doenças sexuais mutiladoras, traumas, humilhações, estupros, violência doméstica, destruição do corpo com remédios ginecológicos como contraceptivos e outros tratamentos para efeitos da sexualidade masculina na saúde, a própria forma como a gravidez compromete e modifica o corpo das mulheres é muito omitido, mulheres que desenvolver diabetes na gravidez, que terminam com complicações, a invisibilidade das mulheres e sua realidade sexual (seu corpo) é o porque de as barrigas de aluguel serem totalmente inquestionadas como se fosse uma escolha em sã consciência, não existem escolhas em sã consciência no patriarcado pelas mulheres por coisas que as prejudicam. Por fim, se houvesse a noção social como teve um dia, de que mulheres não precisam de sexo, mulheres seriam salvas de muitas ciladas nas quais caem nas relações com homens, que é uma relação que não é simplesmente afetiva, é uma relação de classe. Com a força social da exploração e violência que essa classe realiza. Essas são as relações heterossexuais.

Eu afirmo minha teoria de que sexo é condicionamento e é um hábito. Assim podemos explicar por que existe a sexualidade heterossexual feminina (existem muitas teorias muito interessantes que envolvem a questão do trauma bond, uma reação de adaptação psíquica ao estresse das violentas relações com homens que se confunde com apaixonamento, da síndrome de estocolmo, do amor romântico mas não vou me extender neste artigo, deixarei para outro)[13]. A mulher heterossexualizada se ela consegue ser gratificada com excitação na prática sexual com a corporalidade masculina (utilizo feminino e masculino aqui não como adjetivos que se referem a uma essência, mas o que é próprio da categoria de sexo referida ou homens ou mulheres), seu cérebro associa o estimulo recebido a “homens”. A partir daí vai criar a dependência suposta de homens, a classe agressora, para ter aquele prazer sexual que ela conheceu. Mulheres heterossexuais tem um espectro limitado do que é o prazer sexual porque o sistema previne elas de saber que existem outras vivências da sexualidade e outras potencialidades eróticas do seu corpo justamente, ao consolidar na suas mentes o dogma e mito da orientação sexual que possuiríam. Muitas vezes mulheres heterossexuais se contentam com prazeres que diria serem medíocres (eles nem sequer as chupam por exemplo), porque não conhecem outra coisa. Mas se foi aquilo que foi apresentado, se a um rato de laboratório você oferece ração sintética ao invés do queijo, ele ficará desesperado por ração sintética e vai achar aquilo um manjar, ainda mais se estiverem sob fome (condição constante das mulheres no mundo, a privação de relações substanciais. Por isso tantos divórcios na quarentena: eu como psicóloga não observei o fenômeno nas minhas pacientes lésbicas que moram com suas companheiras). Acredito que isso ocorre porque as relações com homens muitas vezes são superficiais e comodistas até mesmo pela forma como homens são incapazes de enxergar mulheres como humanas e jamais como iguais a eles, como vai ter profundidade uma relação onde aquele outro enxerga a mulher como um tipo de pet? Não a toa intensificando o convívio, a mulher chega a desconhecer aquele homem com quem casou. E por que divide sua vida com este homem? Um forte mandato internalizado de que devem estar com alguém, a socialização para necessitar proteção e viver com um outro, o sentimento de que estar sozinha “deve ser muito ruim”.

Podem me achar muito “extremista” e intolerante nas minhas teses aquí, mas sendo sincera, se alguém me diz se contentar com ração, vou respeitar. O único que quero é poder dizer que há muito mais que a ração patriarcal para manter aquele corpo funcional e produzindo dia após dia. Que há mais possibilidade tanto fisicamente quanto eticamente. E essas reflexões se tornaram crime de pensamento graças ao sucesso de como se instalou o liberalismo com suas idéias de “tolerância” e respeito à vida privada e decisões alheias como sendo o máximo do progressivismo. Não é ser intolerante poder dizer que toda mulher tem direito a expandir esse horizonte limitado fornecido pela heterossocialização patriarcal que tudo que visa não é sua felicidade nem dizer o que seu eu real é, e sim a garantia do contrato sexual que regula a dominação masculina e sua economia.[14]

Ainda hoje o prazer feminino com homens é um tema de queixa das mulheres. A fisiologia feminina nem é compatível com a masculina se considerarmos que eles sentem prazer no pênis bastante enervado para isso e a vagina mal tem terminações nervosas pois seria impossível um bebê passar. Mulheres tem prazer na vagina como um resquício do clitóris que se encontra para o lado da pelvis. Outra posição sexual pornográfica masculina preferida que “animaliza” mulheres, a de quatro, também dá prazer físico e o psicológico do poder aos homens, mas em termos fisiologicos muito pouco as mulheres sentem ou com dificuldade, pelo menos no corpo. O que faz de mulheres o que chamo de dissociadas sexuais, pois elas erotizam via pornografia coisas que não são prazeres sentidos no corpo e sim na fantasia erótica, prazeres psicológicos e muitas vezes não orgásmicos. Em muitos casos até hoje o prazer as mulheres confundem com a recompensa afetiva, com a recompensa da auto-estima, do sentir-se desejada, porque muitas ainda mal conhecem o orgasmo e para além disso, a satisfação real e existencial com um outro (só vejo possível na lesbiandade que tem um sentido transcendental, revolucionário, ancestral e realmente radicalmente centrado na anatomia/diferença sexual feminina). A sexualidade feminina heterossexual é portanto, contruída e socializada como ligada ao ser objeto de desejo do outro, e não sujeito do desejo. E daí mulheres chegam a pensar que estão exercendo sua sexualidade ao se exibirem objetificadamente a homens. Achar que nudes e unhas gigantes são expressão de sexualidade feminina (como já teve influencer feminista pseudo-radical reivindicando), demonstra o ápice da colonização sexual feminina, a mais radical que pode existir com um oprimido por atingir seu psicológico e o que é mais próprio de um existente: seu corpo disposto a ser invadido e tomado. Confundir por fim o ser objeto de desejo dos homens e dentro do que gratifica homens é se tornar uma versão pálida da vida sexual dos homens e afirmar isso como “sexualidade feminina” de forma assim principalmente essencialista e genérica é, além de heterossexista, a vitória final deles. Mulheres vaginais, recipiente dos significantes desse outro, inexistentes em si, inautênticas como diria Carla Lonzi[15], com suas revoluções vãs dentro dos cânones da vaginalidade, limitadas nas medíocres ideologias da emancipação que buscam igualdade e referência nas revoluções masculinas de esquerda, que no final de um ato do 8 de março voltam para casa dormir com o homem de sempre nos termos de sempre como fala Maria Milagros Rivera.[16] Não é inato precisamos lutar para que mulheres vejam além da gaiola onde se construíram desde sempre.

Chego a pensar que mulheres heterossexuais muitas vezes pensam que tem prazer sexual e vivem com esse mito, e por isso talvez precisem ficar afirmando tantas vezes desnecessariamente seu amor ao pênis, como uma formação reativa, ou seja a insistência é para tentar convencer a si mesmas e garantir a frágil estabilidade da identidade heterossexual.

Voltando ao tema da compulsoriedade sexual. Ela atinge principalmente mulheres na relação social da heterossexualidade, mas atinge lésbicas também no nível individual e não tanto político, no caso de poder ter sua qualidade de vida diminuída em função dessa dependência (quase química). Vou explicar mais adiante. No sentido político não vejo o efeito massivo de como é para mulheres heterossexuais em termos dos riscos que elas correm por pensar que precisam de homens tanto para viver como para se satisfazer sexualmente ou que precisam estar com um, pois não sustentariam ante a sociedade sua solidão escolhida pela depreciação social destas mulheres e pelo tabu, pelo estigma. Eu vejo efeitos sim políticos, ao qualificar a Lesbiandade como uma sexualidade tão meramente, quando é sobre política, cultura, intelecto, teoria, arte, e sociedade, e projeto civilizatório. A construção de homens sexólogos da orientação sexual, estranhamente acolhida por várias lésbicas feministas e ditas radicais, uma definição masculina, teve a vantagem de controle da potência dos movimentos lésbicos, ao determinar que lésbicas se definam como uma sexualidade, como uma pessoa sexualmente divergente, que resume suas vidas a buscar outra mulher com quem formar as mesmas relações sociais de parentesco de família e casamento, ou apenas um nicho de mercado e da sociedade que transa com mulheres. Isso serviu para dentro da ideologia liberal, converter lésbicas em pessoas privatizadas em suas vidas individuais com “a única diferença de que se atraem por mulheres, no restante comos iguais a vocês” (que tragédia, querer igualdade com a miséria do opressor, dos heteros…). E por isso é válido lésbicas pensarem a compulsoriedade sexual. Somos lésbicas não apenas quando estamos transando ou namorando/ficando mulheres. Somos lésbicas ao formar redes de lésbicas, ao nos nutrir da energia criativa das lésbicas, ao formar projetos de vidas lésbicos, ao projetar um futuro de fêmeas e a criar nossa cultura e apreciá-la, ao fazer política lésbica que é minha real aposta para mudar a civilização. Também estamos exercendo nossa lesbiandade.

Mesmo que a mulher heterossexual alegue ter prazer com homens, ela tem bastante prejuízos desse prazer. É uma sexualidade com altos custos para as mulheres: anticoncepcionais, medos de gravidez, idas ao ginecologista por infecções sexuais, abortos na ilegalidade com todo estresse que implica, é fundamentalmente desigual. Agrego os riscos da violência masculina física, psicológica e sexual. É uma condição mesmo física (biológica) de muita diferença entre ambos, para eles não implica nada do que implica às mulheres. Não vale a pena o risco e o preço que pagam. Não faz sentido quando há outras opções mais livres. Por que tanta recusa à possibilidade de prazeres lésbicos, se não é a lavagem cerebral da orientação sexual, seria o heterossexismo e desprezo profundo por lésbicas e pela própria anatomia feminina?

Mulheres sabem disso, mas esse saber é impronunciável. O vaginismo é um sintoma de muitas mulheres que é a força do inconsciente falando esse saber não expressado porque hereje. O corpo delas fecha com força contra a desigualdade da sexualidade heterossexual. Embora elas queiram, não querem. É contraditório, mas essa é a verdade sobre sexualidade que Sheila Jeffreys uma vez disse: existem poucas palavras para definir a experiência e sentimentos sexuais, que podem ser positivos e negativos. Por exemplo, as crianças que são abusadas recebem um estímulo físico que é sexualizado, a pele é erógena. Isso não quer dizer que aquele estímulo foi bom, mas depois podem reproduzir o comportamento traumático de hipersexualização e atividade sexual precoce como tentativa de elaborar esse conteúdo excessivo que a invadiu, inadequado ao desenvolvimento. Muitas dessas sobreviventes se encontram se sexualizando no queer, na prostituição, no libfem, e por sentirem que por meio deste comportamento recobraram algum controle sobre o estupro vivido, sentem “empoderamento” e um aumento da potência que faz enaltecer o BDSM ou sua suposta liberdade. Justamente não é liberdade que vivenciam, é uma catarse, um alívio de um estresse. Sexo (prática sexual) não é inerentemente bom e se encontra no complexo contexto das vidas das mulheres permeado por fatores de violência masculina. E mesmo se for bom fisicamente, pode não ser necessariamente na sua vida naquele momento, naquela circunstância, com aquela pessoa. Você pode ter um bom encontro no sentido de conhecer alguém com quem “rolou a química” (novamente a linguagem naturalizante), mas a pessoa é tóxica e maltratadora, e está instalada a dissonância cognitiva das relações abusivas. Ser livre neste caso seria reinar sobre as paixões depredadoras do ser. E sexo não é sempre bom politicamente para a classe das mulheres, sua qualidade de vida e dos seus projetos políticos verdadeiramente rebeldes. Ti-Grace Atikinson uma vez declarou: “ Sexo está superestimado. Se me fosse oferecido escolher entre sexo e liberdade, não teria dúvida: escolheria liberdade”.[17]

Toda prática sexual mesmo sendo sentida como algo gratificante, mesmo se esse prazer vier da degradação por exemplo (sadomasoquismo, violência no sexo), é sempre algo aprendido. Um prazer e hábito aprendido. É um condicionamento de estímulos (nem sou behaviorista mas vou usar) e é o que chamo de um hábito mais a nossa cultura. Lembrando que é próprio da espécie humana praticar sexualidade não apenas para reprodução mas para fins recreativos. Logo, é sobre liberdade humana que eu to falando, e é essa minha aposta. Algo que é sobre liberdade humana se torna por efeito da Ideologia, algo obrigatório pela suposta natureza da coisa (discurso sobre natureza). Mas podemos organizar socialmente a forma que a sexualidade se dá. Homens como classe a organizaram como estupro, pornografia, prostituição. Lésbicas organizam como recuperação territorial, como potência criativa e política, como liberdade feminina radical e ontológica. A liberdade humana é essa potência cultural da espécie de poder ser afetada e afetar o mundo, quando a ideologia com a Idéia da Natureza[18] diz que a ordem que vivemos é imutável, dada pela Natureza, e a ideologia patriarcal diz que até mesmo o que somos e nossos corpos são determinados pela Natureza, logo com o acolhimento do conceito de orientação sexual por exemplo. A liberdade feminina não pode no entanto, se definir pela liberdade humana até então definida pelos homens (o feminismo da emancipação, o liberalismo sexual, a ética da igualdade com homens, objetivo tão medíocre por invejar as misérias masculinas). É um exercício de criar ordem simbólica feminina e encontrar a liberdade em nossos termos.

Como traz recompensa , reforço positivo, ou falando spinozamente: afecções alegres que aumentam a potência da pessoa, faz desta dependente daquilo a que atribuiu o aumento da sua potência. Logo a prática sexual uma vez estímulo fascinante, se torna algo ruim porque se torna um afeto triste na privação ou ausência do estimulo que produz a afecção alegre. Isso no caso de lésbicas ou de mulheres heterossexualizadas, a força da sujeição das paixões alienantes. E a vida de mulheres socializadas na heterossexualidade e feminilidade (esta também atinge lésbicas) é esvaziada e falsificada existencialmente a ponto de acreditarem que não podem ficar só, pois elas se tornaram incapacitadas pela sociedade de encontrar outros estímulos que as alegrem que não sejam ligados a sexualidade. Tudo é questão de saber selecionar os encontros. Um encontro pode aumentar potência e depois degradar a pessoa.

Por isso apesar de defender a vida sem sexo como algo também prazeroso e gratificante, uma experiência de liberdade para todas mulheres, também aposto na lesbiandade física com outra mulher, quando ela é saudável e potente e congruente com nossa visão política e ética de mundo. Mas que lésbicas também expressam a lesbiandade por formas que não necessariamente ligadas à sexualidade.

Que a quarentena na qual estamos faça refletir o lugar da sexualidade nas nossas vidas, desintoxicar nossas corpas e saber viver o prazer de estar só na presença da si-mesma.

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NOTAS

[1] Ver Sheila Jeffreys: La Herejía Lesbiana. Una perspectiva feminista de la revolución sexual lesbiana. Ediciones Feminismos, Barcelona: 1993.

[2] Ver Sheila Jeffreys: The Spinster and her enemies. Spinifex Press, Australia:1997.

[3] Beatriz Gimeno fala dos casamentos bostonianos no livro “História y Análisis Político del Lesbianismo: La liberación de una generación”. Gedisa Editorial, Barcelona: 2005.

[4] Sobre sufragistas, sexólogos construindo o backlash contra movimento de mulheres e a inserção de mulheres no mercado de trabalho, mulheres independentes, e sobre a ascenção do discurso liberal e a construção social do conceito de orientações sexuais como controle social da ameaça da lesbiandade e sexualidade feminina livre de homens por meio de sua assimilação com a idéia da “tolerância” progressista, ver Celia Kitzinger: The Social Construction of Lesbianism. Sage Publications, Bristol. 1987.

[5] Valerie Solanas: Manifesto SCUM. Republicado por Heretika Edições Lésbicas Independentes em 2017.

[6] Andrea Dworkin é a melhor para poder entender como a sexualidade masculina se constrói como necessidade ritual de manutenção da masculinidade.

[7] Ver Andrea Dworkin: Intercourse. Basic Books: New York, 2007.

[8] Interessante verificar o que escreveu sobre estupro Susan Brownmiller em Against Our Will: Men, Women and Rape. 1973. Tem o primeiro capítulo em: http://feminismoptbr.blogspot.com/2017/01/capitulo-1-against-our-will-susan.html

[9] Vi sobre esse emprego “medicinal” (político) do sêmen para “curar [domar] mulheres” em um dos volumes da coleção “A História da Vida Privada” de Michele Perrot, acredito que um volume sobre a época mais ligada a era vitoriana. Sobre história da Histeria, ja vi em vários lugares por ser minha área a psicanálise e psicologia, um deles que gosto é Judith Hermann: Trauma and Recovery (Basic Books: New York: 1992), fala como o começo dos estudos da histeria foram o estudo do trauma para depois o encobrimento com a versão que permanece até hoje, de um tema da repressão do suposto desejo feminino, que psicanalistas misóginos colocaram lá.

[10] Ver: Barbara Eirenreich e Deidre English: Bruxas, Parteiras e Enfermeiras. Republicado por Bruxaria Distro.

[11] A obra de Sheila Jeffreys, Anticlímax, fala sobre como sexólogos e a cultura criaram várias formas de indução da mulheres a erotização da sua subordinação por meio de conquistar o orgasmo heterossexual, vitória do inimigo. Aliás acho que é uma falsa vitória pois segue sendo uma grande queixa das mulheres a insatisfação nas relações sexuais com homens. Anticlimax: A Feminist Perspective on the Sexual Revolution. Spinifex Press, Australia: 1990.

[12] Matéria sobre coreanas resistindo ao casamento: https://larepublica.pe/genero/2020/01/21/corea-del-sur-youtubers-feministas-dan-mensaje-contra-el-matrimonio-y-la-maternidad-en-su-canal-solodarity-atmp/

[13] Podem ver o que escreve WitchWind em seu blog: https://witchwind.wordpress.com/2013/08/08/grooming-pimping-into-heterosexuality-politics-of-love-pt-ii/

[14] Carole Pateman: O Contrato Sexual. Editora Paz e Terra. (data não aparece no pdf).

[15] Carla Lonzi “La Mujer Clitórica y la Mujer Vaginal” em Escupamos sobre Hegel. Editorial La Pléyade, Buenos Aires: 1975.

[16] Maria Milagros Rivera em . Carla Lonzi y Otras. Manifiestos de Rivolta Femminile, La revolución clitórica. Em: http://www.ub.edu/duoda/bvid/text.php?doc=Duoda:text:2019.04.0001

[17] Usei no ensaio várias vezes o conceito da Idéia da Natureza, ou Discurso sobre a Natureza. É um conceito da feminista materialista Collete Guillaumin no texto “Práctica del Poder y Idea de Naturaleza”. Em: El Patriarcado al Desnudo: Tres feministas materialistas Vol. II. Ediciones Escaparate. Chile: 2012.

[18] A frase está numa foto dela encontrada na internet. Mas recomendo um texto seu chamado “A instituição das relações sexuais” em: https://radfeminismo.noblogs.org/files/2015/02/atkinson-institui%C3%A7%C3%A3o-do-intercurso.pdf

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reflexão lésbica

Uma lésbica pensante compartilhando reflexões. Por Jan, psicoterapeuta feminista, ativista e buscadora do saber sexuado feminino.