Sobre a polêmica acerca das bandeiras lésbicas e o apagamento histórico realizado por millenials

reflexão lésbica
5 min readAug 13, 2019

Este ano a comunidade LGBTQIetc do tumblr redefiniu a bandeira política das lésbicas, alegando que não havia uma bandeira para estas. A discussão é emblemática do apagamento lésbico nessa comunidade tão “diversa”. Eis que, depois de tanto tempo produzindo na internet centenas de bandeiras coloridas a cada dia para cada uma das centenas de novas identidades de gênero que inventam, perceberam que não havia uma dessas para as lésbicas. E se perguntaram: por que será?

Será que criar finalmente uma, depois de tanto tempo esquecendo as lésbicas, foi realmente positivo? De repente, viramos mais uma daquelas bandeiras variadas, imitando as listras da bandeira LGBT mas variando as cores, que inclusive se tornou marketing para a propaganda do UBER durante a parada gay de SP, onde nos metrôs você via algumas delas, a maioria inventada após os anos 2000 (e consequentemente, após os 90, em que segue o backlash ao feminismo com o generismo acadêmico). Isso denuncia quão cooptáveis pelo capitalismo são passíveis de serem os movimentos sociais, quando se tornam meras identidades consumistas e individualistas.

Propaganda da UBER nos metrôs de SP. À juventude millenial não parece importar o neoliberalismo predatório que precariza trabalhadores, desde que no aplicativo apareça sua bandeira identitária favorita.

Qual a nossa crítica ao que ocorreu: temos uma bandeira lésbica, que foi lançada pela internet durante o mês de Abril no dia internacional da Visibilidade Lésbica (26 de Abril, ironicamente dia do meu aniversário também), que além de ser um subproduto da bandeira LGBT, repetindo a lógica de lésbicas serem uma versão do homem gay, ela é constituída em cores rosas, o que denota o estereótipo histórico da feminilidade. Uma cor que inclusive, para muitas lésbicas, especialmente butches, só representa a imposição de sempre feita à nós mulheres, desde o nascimento, para a adequação nos papéis sexuais patriarcais. Uma bandeira feminilizada. Sendo a imposição da feminilidade uma das principais opressões das quais padecem as lésbicas.

Sobre a bandeira roxa com labrys: alegaram que a bandeira histórica foi feita por um homem da marcha do orgulho gay estadunidense. Crítica compreensível. E que os símbolos podiam ser associados ao nazismo. Quanto ao símbolo labrys, isso somente denota falta de pesquisa histórica: é um símbolo amplamente usado por lésbicas separatistas dos 70, que remonta aos matriarcados celtas, uma ferramenta de autodefesa e trabalho destas comunidades só de mulheres amazonas. O triângulo preto, é realmente criticado, principalmente por lésbicas alemãs, pois era o símbolo colocado nas lésbicas nos campos de concentração. Pela minha pesquisa, o símbolo do triângulo foi utilizado por lésbicas que atuavam junto aos homens gays, como o Daughter of Bilitis, nos EUA. Os gays utilizaram muito o triângulo rosa. O uso do triângulo visava demonstrar o mesmo status social de marginalização e violência fascista empreendidos contra lésbicas e gays. Mas lésbicas feministas usaram muitas vezes o triângulo vazado, por remeter à vulva, sendo um símbolo que se encontra até em artes rupestres ancestrais simbolizando a mulher, sua diferença sexual.

A cor roxa vem do feminismo. Mas o que gosto sobre a cor roxa é que, ao contrário daquela variação de rosas da nova bandeira, que remete à intensa fragmentação pós-moderna dos movimentos sociais, a cor única roxa lembra uma unidade. Também podemos lembrar de como lésbicas foram acusadas de serem uma "Ameaça Violeta/Lavanda" por heterofeministas que tentaram impedir a presença delas num congresso internacional do movimento feminista estadunidense em 1970. O ocorrido demarcou o surgimento do feminismo lésbico e do movimento lésbico independente, com o manifesto da RadicaLesbians “A mulher que se identifica com a Mulher”. Eu acho interessante a cor roxa por reivindicar que seremos sempre a ameaça lavanda: uma ameaça, não algo simpático ao sistema. Além de lembrar nossa história, o início do nosso movimento próprio.

Acima bandeira utilizada no Brasil. As palavras lésbica e lesbiana mostra a ideia de internacionalismo latino-americano. Fotografia tirada por mim num Seminário Nacional de Lésbicas (SENALE).

Sobre ter sido criada por um homem, eu não acredito nisso, pois há fotos destes símbolos sendo utilizados em marchas antes, como está na imagem do começo do texto. O que aconteceu foi que este homem estava registrando as bandeiras da comunidade e acabou por registrar esta baseado obviamente no que via em marchas públicas. A geração millenial (pós '90) precisa entender que o processo histórico nem sempre tem autores definidos, e sim um contexto de coletividade que cria seus símbolos e rituais, os quais surgem espontaneamente nas massas e de forma difusa. Assim, sua autoria não é de uma pessoa ou outra, criadores de internet de uma geração individualizada e capitalista. Foi o movimento lésbico como um todo que reivindicou esses símbolos, que remetem à ideia de memória e ancestralidade lésbica, de uma tradição de resistência que remete à Safo em Lesbos, às amazonas, às lésbicas nos campos de concentração… uma história de resistência, é isso que é levantado quando erguemos nossas bandeiras e símbolos.

Sobre o triângulo preto, eu acredito que pode ser o caso de reivindicá-lo de outra forma. O engraçado é que poucas o entendem como um símbolo da Alemanha nazista para estigmatizar lésbicas, e sim acreditam ser a representação da própria vulva cabeluda. Eu acredito que neste caso, é viável a reapropriação e ressignificação com os sentidos que as coletividades lésbicas vem atribuindo. O que gosto da cor preta, é ela remeter ao autonomismo, à rejeição das bandeiras nacionais, ao luto, à luta, às perspectivas libertárias. A bandeira preta anarquista nasceu de Louise Michel, socialista libertária e incendiária da revolução francesa. É uma cor crítica, cética, oposta à alegria cega e alienada do LGBT, ao estado de ilusão festiva que se fomenta sobre os oprimidos.

Outro aspecto dessa sobreposição da bandeira roxo e preta com labrys e triângulo é que, ao passear brevemente no tumblr nas discussões de uma geração sem história, é que fica clara a rejeição ao lesbianismo radical nessa elaboração da nova bandeira. Então a questão é política, e não tanto falta de memória lésbica. Podemos dizer finalmente, que a bandeira lésbica de tons rosas é a bandeira das lésbicas liberais e tolerantes, que enxergam a lesbiandade como mera política identitária. E a bandeira roxa e preta é das lésbicas que seguem combativas e críticas, vendo lesbiandade não como uma identidade, mas como uma consciência rebelde de insubmissão assumida e histórica, ancestral, à dominação masculina.

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Uma lésbica pensante compartilhando reflexões. Por Jan, psicoterapeuta feminista, ativista e buscadora do saber sexuado feminino.

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