Uma das maiores justiças da noite: Vanderlei e sua “medalha de ouro”

A nossa mais completa tradução (possível)

Marcos André Lessa

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A abertura dos Jogos representou o que eu penso e sinto todos os dias.

“O nacionalismo do brasileiro é esquisito”, li no Twitter ontem. Não sei qual foi a intenção do autor da frase, mas posso concordar com ela. Até hoje não sabemos direito se amamos ou odiamos esse país. Ou em que medida confundimos amor com ódio, dependendo do assunto.

Nossa passionalidade dificulta moderações. Ou somos os melhores ou somos uma merda. Os próprios atletas olímpicos que o digam: podem fazer a melhor carreira possível, baterem recordes e ganharem campeonatos mundiais, mas se perderem uma medalha de ouro nos Jogos, são “amarelões”.

Com tantos problemas e tantas faturas ainda a pagar em matéria de direitos e cidadania, fica difícil orgulhar-se do Brasil. Olhamos os países desenvolvidos com um misto de inveja e frustração. Alguns lembram que eles nos subjugaram em boa parte desses 516 anos, outros que isso não é desculpa.

Nelson Rodrigues, um de nossos melhores intérpretes, cunhou a expressão do “complexo de vira-lata”. Será que não podemos perceber no que somos bons, nos apropriar disso e, sim, nos orgulharmos diante dos demais? Ele falava da seleção de futebol de 1958, mas dá pra expandir pra tudo.

Vou mais além: será que não podemos investigar o DNA do que temos de potencial, talento e histórias que só ocorrem aqui, e que deram certo, para termos nosso lugar no mundo, de forma autêntica?

“É a antropofagia que nos une”, disse Oswald de Andrade. Para ele, a cultura brasileira se apropriava, “devorava e deglutia” as demais para formar uma nova, genuinamente brasileira. Darcy Ribeiro conta que a identidade brasileira não foi construída intencionalmente. Um dia o índio, o negro e o mameluco se entreolharam e perceberam que eram brasileiros.

Dentro do possível, acredito que a abertura dos Jogos Olímpicos materializou tudo isso.

Fernando Meirelles disse que “o espírito da gambiarra” estaria representado. Quem pode negar que essa é uma das nossas características — para o bem e para o mal? E ecoando Oswald, por que não podemos ver isso como um valor positivo?

Por que precisamos importar ipsis litteris modelos e ideias de fora para aplicar ipsis litteris no Brasil? Vale para qualquer assunto que você imaginar. Pensar assim também ajuda a desarmar xenofobias sem sentido, afinal, somos antropofágicos.

Somos o país que tem Paulinho da Viola, Oscar Niemeyer, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Jobim, Gisele Bündchen, Elza Soares, , Jorge BenJor, Carlos Drummond de Andrade, Vanderlei Cordeiro, Joaquim Cruz, Oscar Schimidt, Wilson das Neves, Clementina de Jesus e tantos outros. A abertura nos mostrou que isso é motivo de orgulho.

Também somos o país que removeu pessoas de suas casas e desceu o cacete de guerra em manifestantes e moradores de comunidades para fazer uma Olimpíada. Quando Ludmilla (recentemente vítima de racismo cometido por outros brasileiros) cantou “Eu só quero é ser feliz / E andar tranquilamente na favela aonde eu nasci” era o Brasil sendo exposto em suas incongruências.

O mesmo para a mensagem ambiental. O que estamos fazendo com o planeta, e quais as consequências? O Brasil devasta a Amazônia apresentada na abertura como maior jardim do mundo. Sem contar o que se viu em Mariana, Minas Gerais.

Se uma abertura de Olimpíadas não tocasse nesses assuntos, seria criticada. E resolveu tocar, dentro dos limites que um evento como esse permite, sem que se perca a ideia de celebração do espírito olímpico e do país-sede.

Tudo o que se viu pode ser instrumentalizado. Há quem pense que colocar a favela, os negros e as mulheres na cerimônia é uma maneira de cerceá-los. “Aí você pode aparecer, pra entreter os gringos”. É verdade, pode acontecer. Mas não vi essa intenção em Fernando Meirelles e equipe.

A abertura dos Jogos foi um exercício para avaliarmos o que temos de bom e o que precisamos melhorar. E que não podemos fugir ou nos esconder de ambas as realidades.

Foi um momento para encararmos que o Brasil (ou um pouquinho dele, iáiá), é tudo aquilo ali. A dificuldade de aceitarmos Anitta ou Ludmilla na festa, por mais populares que fossem, denota como ainda não sabemos fazer isso por completo.

Posso dizer que a abertura me emocionou e, como também vi no Twitter, foi uma injeção de autoestima. E seria ingênuo da minha parte achar que tudo se resume ao espetáculo. Nada se resume, nem mesmo nos países desenvolvidos. Mas não só soubemos fazer um espetáculo como conseguimos ver em nós a matéria-prima pra tal.

Para mim, a cerimônia seria a flor do poema de Drummond recitado por Fernanda Montenegro e Judi Dench: “furou o asfalto, o tédio, o nojo, e o ódio”. É feia — no sentido que não dará conta de todos os nossos problemas e questões — mas é uma flor, impossível negar.

“Eu não me sinto melhor do que ninguém por ser brasileiro. Mas não me sinto pior do que ninguém por ser brasileiro”, disse Paulo Freire. Se conseguirmos chegar nesse ponto, com tudo o que isso nos traz de orgulho e responsabilidade, já terá valido.

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Marcos André Lessa

Jornalista e escritor. Autor da biografia “Mujica: o presidente mais rico do mundo”, pela Editora 5W