Crítica e análise da série “Coisa Mais Linda” (Netflix, 2019)

Letícia Rodrigues
7 min readMar 25, 2019

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A nova série brasileira para a Netflix (a quarta, para ser mais exata), Coisa Mais Linda tem seus altos e baixos. Enquanto tenta ocupar uma posição no cenário internacional mostrando o poder de ficções nacionais, ainda é maquiada de série americana.

Pensar em escrever um crítica sobre a série, não foi fácil. Conversei com várias pessoas que estão assistindo ou já assistiram para ver se já tinham algumas opiniões concretas. E percebi que ainda restou muitos pontos de interrogação na cabeça dos que viram. Não dá para dizer se a série é ótima ou péssima. Não dá para saber se determinado aspecto foi inserido intencionalmente ou foi acidental. O fato é que: além das problemáticas apresentadas no enredo, conseguimos nos incomodar facilmente também com outros pontos.

A produção trouxe como pano de fundo os elementos mais reconhecíveis da nossa cultura lá fora, e mesmo sendo uma produção “de época”, na qual mostra o surgimento da Bossa Nova e a transferência da capital brasileira do Rio de Janeiro para Brasília, enaltecer as circunstâncias culturais não é o foco da produção. Ao invés disso, fica claro que o principal está nas quatro personagens femininas: Maria Luiza, Adélia, Ligia e Thereza, e nas forças ou fraquezas delas em suas trajetórias para se provarem independentes. Todas as personagens são clichês e previsíveis, mas talvez isso tenha sido uma escolha proposital para a construção do enredo. Fica no entendimento de cada um.

A série se passa no final da década de 1950 e Maria Luiza, da elite paulistana, filha de fazendeiro, é quem dá o pontapé de início da história. Seu marido, Pedro, foi para o Rio de Janeiro, com a promessa de que abriria um restaurante, mas quando ela viaja de São Paulo até lá, descobre que ele a traiu, roubou todo o seu dinheiro e sumiu. Malu não desiste e insiste em abrir o restaurante que tanto sonha, o Coisa Mais Linda, que além da comida e bebida, ainda tráz apresentações musicais ao vivo. Ela também conhece o cantor boêmio Chico, que está descobrindo um novo estilo musical que ele chama de Bossa Nova. Apesar da relação dos dois terem altos e baixos, o mais legal é ver que Maria Luiza não coloca o Chico num pedestal em nenhum momento. Ela está o tempo todo focada no restaurante, nos ganhos financeiros e dando prioridade no bem estar do seu filho, que fica aos cuidados da avó em São Paulo. Quando rola uns beijos e transas mais casuais com o rapaz, ela simplesmente se vê no lucro.

Adélia é uma jovem, negra e da periferia carioca. Ela tem uma filha pequena, que deixa aos cuidados da irmã mais nova enquanto sai para trabalhar de manhã e só volta de noite. Mãe solteira, o então pai de sua filha, o músico Capitão, ficou em turnê pelo país durante um tempo. É interessante ver (de maneira desconfortável) o tanto de preconceito que Adélia sofre ao longo da trama. Ela é impedida de usar o elevador social do prédio em que sua “patroa” mora e obrigada a subir 9 andares de escada. Quando vira amiga de Malu e sócia do Coisa Mais Linda, diversas vezes é confundida com uma empregada ou garçonete do local, inclusive por Ligia e Thereza, que mal a cumprimentavam e já chegam pedindo que a sirvam. Entre outras situações racistas e machistas.

Ligia é amiga de infância de Malu. Casada com Augusto, candidato a prefeito do Rio, Liginha, como é chamada pelo marido, infelizmente, tem um lindo casamento de fachada. Ricos e elegantes na frente das pessoas, por trás, ela é reprimida pelo conservadorismo do parceiro, além de sofrer agressões e até um estupro. Ligia nunca pode decidir nada. Sempre deve manter o sorriso no rosto e guardar suas opiniões para si. Quando era mais jovem, queria ser cantora, mas teve o sonho interrompido ao se casar, pois mulher direita não cantava. “Só putas cantavam em bordéis”.

Thereza é jornalista. É a que possui ideias mais progressistas pra época e vive quebrando tabus. Ela é concunhada de Ligia e mantém um casamento bem aberto com Nelson, chegando a ficar evidente, nas falas dos personagens, ménages que os dois já participaram enquanto estiveram morando em Paris. Ela ajuda a modelo e escritora amadora Helô a virar a segunda repórter mulher a trabalhar na revista feminina Angela, que antes só havia uma — a própria Thereza. As colunas eram escritas por homens, que assinavam seus textos com nome de mulheres, e a jornalista achava o fato um absurdo. Para ela, uma revista destinada à mulheres deveria ser escrita por mulheres.

As quatro personagens cruciais, embora estejam conectadas umas as outras, possuem seus próprios núcleos narrativos, com nenhum deles sendo mais relevante ou menos relevante para os principais tópicos discutidos. A série mostra que o feminismo e a sororidade são construções. Fazem parte de um aprendizado. O machismo não termina do dia para a noite. As personagens não são 100% feministas e muito menos se auto declaram feministas em momento algum. Ao longo da trama, todos cometem erros e aprendem com eles. Fazem comentários infelizes e tomam ações precipitadas. E esse é o ponto alto das discussões envolvendo o enredo. Apesar do roteiro e personagens serem bem clichês e previsíveis, o extraordinário aparenta estar no conjunto de debates e conflitos que esses personalidades trazem à tona. Não são apenas questões sexistas que são abordadas. Mesmo com algumas limitações, por se tratar de 1959, damos de cara com cenas envolvendo explicitamente racismo, conflitos entre classes sociais, religião, lugar de fala, rivalidade feminina, homossexualidade, mercado de trabalho, aborto e até… feminicídio.

Fica nítido que todas as mulheres da trama (e do mundo rs) precisam do feminismo, mas que devemos observar que há diferenças na luta que cada uma enfrenta, e por isso, é importante reconhecer seus privilégios. Malu teve que deixar o filho em São Paulo para abrir o sonhado restaurante no Rio de Janeiro. Quase perdeu a guarda dele por seu pai não concordar com a “liberdade” da filha. Foi deixada pelo marido, que levou parte de seu dinheiro embora. Mas Malu ainda é rica, herdeira, branca, alfabetizada, “com cara de granfina”. Nunca foi barrada nos lugares e nunca foi confundida com uma empregada/garçonete. Possui roupas de boa qualidade, jóias caras e sapatos de grife. Já Adélia é negra, analfabeta, mãe solteira, periférica, não tem os pais e quase madruga para conseguir colocar um prato de comida em casa. Não possui roupas caras. Não possui jóias e muito menos sapatos de grife. Apesar do esforço e das dificuldades que Maria Luzia enfrenta para abrir seu negócio e administrar sua vida, a jovem entende que ela e Adélia não são iguais.

É interessante observar que todos os personagens são machistas, racistas e preconceituosos, no geral. E apesar de estarem tentando se empoderar e se desconstruir, eles acabam afetando uns aos outros em algum momento. Particularmente, penso que se você assistiu a série e achou tudo lindo, maravilhoso, “ah, mulheres perfeitas, feministas” e não te deu nem um pouco de vontade de conversar com alguém sobre Coisa Mais Linda… assista de novo! Pois não houve um capítulo se quer que eu não tenha problematizado umas 15 vezes alguma coisa.

É claro que você tem todo o direito de escolher um personagem favorito, mas, em algum episódio, ele vai acabar te decepcionando. E depois te reconquistando (…ou não!). Não há um personagem sequer “bonzinho”. Todos tem defeitos e posições para se indignar em algum momento da história. Já aviso que todos os homens acabam sendo embustes. Uns mais e outros menos, mas nenhum passa ileso sem levar esse adjetivo (se até hoje é assim, imagine há 60 anos atrás). O mais “mocinho” é de longe o Capitão, porém acredito que ele só fica com essa posição porque não se preocuparam em aprofundar suas características básicas. Ele ganha o título mais por conveniência do que por merecimento de fato.

Com exceção do final (juro que não vou dar spoiler do último ep), creio que a série ficou confortável demais até para uma massa que já se declara feminista e defensora das minorias. Isso porque as personagens sempre dão a volta por cima o tempo todo, de um jeito ou de outro, ao longo dos episódios. Claro que é muito gostoso vê-las se dando bem, mas é justamente por isso que deu a impressão que as abordagens foram mal feitas. Certamente, isso me incomodou. Traduzindo: entendi muito bem o propósito, mas achei que romantizaram demais as lutas. Elas sofriam e logo depois já tinha uma “recompensa” por esse sofrimento, cheias de frases impactantes, empoderadas e donas de si, e na vida real, a gente sabe muito bem que não funciona dessa maneira. Histórias de superação são bacanas, mas quantas Adélias existem no mundo? Se hoje em dia são poucas, imaginem naquela época. Ou mesmo as ricas… Quantas Malus conseguiram deixar o filho aos cuidados da mãe e ir para outro estado se reerguer? Quantas Ligias em 1959 deixaram seus maridos ricos e políticos que as agrediram e foram seguir seus sonhos num palco? Quantas Therezas viraram editoras-chefe e substituiram todos os homens da redação por repórteres mulheres? A série esqueceu de enfatizar que essas mulheres eram fodas sim, mas que possuem histórias singulares. Elas são exceções.

Assistir Coisa Mais Linda é uma experiência um tanto irregular. A trama poderia ser digna de perfeição, mas, paradoxalmente e de maneira traiçoeira, o que também acaba incomodando e até atrapalhando o telespectador é a plasticidade, os diálogos e a trilha sonora um tanto quanto enfeitada demais. A música de abertura, por exemplo, é “Garota de Ipanema”… cantada em inglês! Isso porque a série foi feita nos moldes internacionais e voltada para os gringos. Parece que focaram mais (sem querer) no figurino, na fotografia, na paleta de cores e nas paisagens. E é claro que uma estética bem feita rende elogios e fica agradável aos olhos de quem vê, mas o principal da série, que era mostrar as dificuldades de uma mulher se empoderar na década de 1950, acabou ficando pouco aprofundada e romantizada, e por isso, nos deu a impressão de termos personagens e enredo clichês e previsíveis. Ficou tudo “bonito até demais”.

Entretanto, sigo mantendo a fé e acreditando fortemente que a produção conseguirá conquistar, com muito esforço, público brasileiro pelo conteúdo. Porém, se houver uma segunda temporada (e espero que tenha!) algumas questões deveriam ser aprofundadas e alguns detalhes estéticos deveriam ser deixados de lado, para que os próprios atores e cenários consigam nos trazer mais verdade, e que possamos focar nos emblemas abordados sem quaisquer distrações. A série, de maneira alguma, merece uma nota 0, mas jamais merecia também um 10.

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