Poesia e poder
Quem me conhece um pouco sabe que adoro a Bienal dos Piores Poemas, evento realizado em Belo Horizonte, desde 1996, pelo Grupo Oficcina Multimédia. Segundo o GOM informa no site, a intenção da BPP “é prestar homenagem a todas as manifestações humanas que tentam de alguma forma lidar com o inexplicável, o indizível, o impalpável e com a necessidade e curiosidade de o Homem buscar respostas para suas dúvidas.”
A BPP nos coloca diante da questão ética e estética: o que faz um poema ser bom ou ruim? Quais são as características que fazem o poema cruzar a fronteira, separando-se para todo o sempre de um “melhor poema”?
Um melhor poema teria alguma relação com o beletrismo, com a falta ou a presença de rimas e outros cacoetes estéticos? Qual seria o parâmetro, o padrão ISO para assegurar o qualitativo “melhor” do poema? Ou, ao contrário, se há o que sustente o predicativo “pior”, o que caracterizaria um poema “ruim”, “bom” ou “melhor”?
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Pierre Bourdieu, no longo ensaio “O mercado de bens simbólicos”, diz que “Nunca se prestou a devida atenção às consequências ligadas ao fato de que o escritor, o artista e mesmo o erudito escrevem não apenas para um público, mas para um público de pares que são também concorrentes.” É uma maneira de pontuar que todo bem simbólico é produzido para um certo grupo, de acordo com as regras desse grupo, legitimadas por esse mesmo grupo e para que os integrantes do grupo sejam diferenciados de outros grupos e, assim, adquiram distinção e tornem essa prática uma espécie de lei cultural — arbitrária e violenta.
Assim, a percepção de “bom” e “ruim” (“melhor” e “pior”) não é algo natural. O processo que legitima o bom ou o mau gosto é construído e se afirma pelo uso e pela circulação específicos de códigos linguísticos. É um processo que existe inicialmente em nível discursivo e depois concreto. E opera por exclusão. É o que nos torna aptos a qualificar de identificar diferentes atributos, separando arte e artesanato, Romero Britto e Beatriz Milhazes, Paulo Leminski e publicidade, música sertaneja e música caipira, música erudita e funk carioca, Vinicius de Moraes e Atticus, entre tantas outras.
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Em Aula, Roland Barthes denomina “discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe”. E, uma vez que falamos de classe e poder, é possível trazer para a conversa Álvaro Vieira Pinto, que afirma em Por que os ricos não fazem greve? (da linda Coleção Cadernos do Povo Brasileiro), que “o artifício primordial e o mais eficaz para conservar o domínio dos ‘ricos’ está em conservar paralelamente a divisão entre minorias cultas e massas incultas. Trata-se de fazer crer às massas que não dispõem de condições para se pensarem a si próprias, conhecerem as causas do seu estado, porque são incultas e analfabetas.”
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Já parou para pensar por que é inconcebível para alguns usar uma legging com estampas criadas por Romero Britto, mas tudo bem com camisas com padrões de azulejos de Athos Bulcão?
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De acordo com Paulo Freire, em conversa com as professoras Virginia Maria de Figueiredo e Silva e Tânia Maria Piacentini, é “inviável compreender o problema da linguagem sem um corte de classe. Não é possível compreender o problema da linguagem sem uma referência ao poder, e o poder é o poder de classe […] a história da colonização é esta, os colonizadores chegam e dão nome diferente. Agora, quem disse que este é o padrão certo?”
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Como sabemos que estamos lidando com armadilhas discursivas, pergunto-me até quando poetas, críticos e acadêmicos conseguirão dizer o que é um bom poema. E, se um poema é bom, é bom para quem — ou para o quê?
Além disso, vou me atrever a perguntar macabeicamente: saber o que é um bom poema serve para quê?
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No documentário Minas, sem vergonha, sobre a BPP, uma entrevistada pergunta: “Por que tudo tem que ser bonito na poesia? Por que não dizer ‘isto é feio como um poema’, ‘isto é desagradável como um poema’?”
Talvez essas perguntas indiquem uma possibilidade de fazer diversas formas de poema existirem, deixando-nos livres para produzir — independentemente de serem piores poemas, poemas ruins, poemas bons ou excelentes.
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Acredito que o importante é outra coisa, mais além: para onde o que produzimos está nos levando? E quem vem conosco?
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Por que há críticas que promovem a exclusão de determinados produtores e produtos culturais?
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Uma vez fui a um evento de poesia em que grande parte dos presentes era de classe média branca e universitária. E um garoto negro da periferia se desculpou antes de falar um poema, mesmo que o poema dele tivesse uma potência descomunal. Tive vontade de falar com ele, mas, ao fim da leitura, ele já tinha saído. Se aquilo doeu em mim, imagine o que ele devia ter sentido.
E voltei a pensar nisso ao encontrar no livro da Flup 2017, Seis temas à procura de um poema, este poema de Jaqueline Calazans, que, se não pede desculpas, justifica-se por existir:
Poema # 2
Dizes que o que faço não é poesia, meu senhor, que faço mau
uso das palavras. Se faço mau uso é porque não foi me dada
a chance de aprender o uso correto, mas então o que seria a
poesia? Palavras colocadas em devidos sujeitos, predicados,
concordâncias e tudo o mais?
Uso o mau uso para falar das aflições que me rodeiam,
da dor da minha gente e dessas coisas que ninguém diz
e nem quer dizer.
A vida não tem concordâncias, meu senhor, a coerência passa
longe pelo menos daqui da onde me encontro. Ah! Se o
senhor soubesse o quanto de poesia tem por aqui, o senhor
esqueceria o bom uso das palavras e só as deixaria escapar,
porque pra mim a poesia nada tem a ver com bom ou mau
uso de palavras, mas sim da fluidez em que elas aparecem
para dar forma à vida.
Poesia é viver, é olho no olho, é a dor que arde, é o filho que
chora, é a fome que bate. Se a poesia nada tem a ver com os
causos da vida, então não sei o que é poetizar.
É isso mesmo o que queremos com a produção de crítica?
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E, não poderia deixar de registrar o famoso grito ufanista da BPP: “au au au, viva a Bienal!”