Poesia e poder

Feres Feres
5 min readJun 5, 2018
“Jovem Joan Brossa deitado no chão”

Quem me conhece um pouco sabe que adoro a Bienal dos Piores Poemas, evento realizado em Belo Horizonte, desde 1996, pelo Grupo Oficcina Multimédia. Segundo o GOM informa no site, a intenção da BPP “é prestar homenagem a todas as manifestações humanas que tentam de alguma forma lidar com o inexplicável, o indizível, o impalpável e com a necessidade e curiosidade de o Homem buscar respostas para suas dúvidas.”

A BPP nos coloca diante da questão ética e estética: o que faz um poema ser bom ou ruim? Quais são as características que fazem o poema cruzar a fronteira, separando-se para todo o sempre de um “melhor poema”?

Um melhor poema teria alguma relação com o beletrismo, com a falta ou a presença de rimas e outros cacoetes estéticos? Qual seria o parâmetro, o padrão ISO para assegurar o qualitativo “melhor” do poema? Ou, ao contrário, se há o que sustente o predicativo “pior”, o que caracterizaria um poema “ruim”, “bom” ou “melhor”?

Pierre Bourdieu, no longo ensaio “O mercado de bens simbólicos”, diz que “Nunca se prestou a devida atenção às consequências ligadas ao fato de que o escritor, o artista e mesmo o erudito escrevem não apenas para um público, mas para um público de pares que são também concorrentes.” É uma maneira de pontuar que todo bem simbólico é produzido para um certo grupo, de acordo com as regras desse grupo, legitimadas por esse mesmo grupo e para que os integrantes do grupo sejam diferenciados de outros grupos e, assim, adquiram distinção e tornem essa prática uma espécie de lei cultural — arbitrária e violenta.

Assim, a percepção de “bom” e “ruim” (“melhor” e “pior”) não é algo natural. O processo que legitima o bom ou o mau gosto é construído e se afirma pelo uso e pela circulação específicos de códigos linguísticos. É um processo que existe inicialmente em nível discursivo e depois concreto. E opera por exclusão. É o que nos torna aptos a qualificar de identificar diferentes atributos, separando arte e artesanato, Romero Britto e Beatriz Milhazes, Paulo Leminski e publicidade, música sertaneja e música caipira, música erudita e funk carioca, Vinicius de Moraes e Atticus, entre tantas outras.

Em Aula, Roland Barthes denomina “discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe”. E, uma vez que falamos de classe e poder, é possível trazer para a conversa Álvaro Vieira Pinto, que afirma em Por que os ricos não fazem greve? (da linda Coleção Cadernos do Povo Brasileiro), que “o artifício primordial e o mais eficaz para conservar o domínio dos ‘ricos’ está em conservar paralelamente a divisão entre minorias cultas e massas incultas. Trata-se de fazer crer às massas que não dispõem de condições para se pensarem a si próprias, conhecerem as causas do seu estado, porque são incultas e analfabetas.”

Já parou para pensar por que é inconcebível para alguns usar uma legging com estampas criadas por Romero Britto, mas tudo bem com camisas com padrões de azulejos de Athos Bulcão?

De acordo com Paulo Freire, em conversa com as professoras Virginia Maria de Figueiredo e Silva e Tânia Maria Piacentini, é “inviável compreender o problema da linguagem sem um corte de classe. Não é possível compreender o problema da linguagem sem uma referência ao poder, e o poder é o poder de classe […] a história da colonização é esta, os colonizadores chegam e dão nome diferente. Agora, quem disse que este é o padrão certo?”

Como sabemos que estamos lidando com armadilhas discursivas, pergunto-me até quando poetas, críticos e acadêmicos conseguirão dizer o que é um bom poema. E, se um poema é bom, é bom para quem — ou para o quê?

Além disso, vou me atrever a perguntar macabeicamente: saber o que é um bom poema serve para quê?

No documentário Minas, sem vergonha, sobre a BPP, uma entrevistada pergunta: “Por que tudo tem que ser bonito na poesia? Por que não dizer ‘isto é feio como um poema’, ‘isto é desagradável como um poema’?”

Talvez essas perguntas indiquem uma possibilidade de fazer diversas formas de poema existirem, deixando-nos livres para produzir — independentemente de serem piores poemas, poemas ruins, poemas bons ou excelentes.

Acredito que o importante é outra coisa, mais além: para onde o que produzimos está nos levando? E quem vem conosco?

Por que há críticas que promovem a exclusão de determinados produtores e produtos culturais?

Uma vez fui a um evento de poesia em que grande parte dos presentes era de classe média branca e universitária. E um garoto negro da periferia se desculpou antes de falar um poema, mesmo que o poema dele tivesse uma potência descomunal. Tive vontade de falar com ele, mas, ao fim da leitura, ele já tinha saído. Se aquilo doeu em mim, imagine o que ele devia ter sentido.

E voltei a pensar nisso ao encontrar no livro da Flup 2017, Seis temas à procura de um poema, este poema de Jaqueline Calazans, que, se não pede desculpas, justifica-se por existir:

Poema # 2

Dizes que o que faço não é poesia, meu senhor, que faço mau

uso das palavras. Se faço mau uso é porque não foi me dada

a chance de aprender o uso correto, mas então o que seria a

poesia? Palavras colocadas em devidos sujeitos, predicados,

concordâncias e tudo o mais?

Uso o mau uso para falar das aflições que me rodeiam,

da dor da minha gente e dessas coisas que ninguém diz

e nem quer dizer.

A vida não tem concordâncias, meu senhor, a coerência passa

longe pelo menos daqui da onde me encontro. Ah! Se o

senhor soubesse o quanto de poesia tem por aqui, o senhor

esqueceria o bom uso das palavras e só as deixaria escapar,

porque pra mim a poesia nada tem a ver com bom ou mau

uso de palavras, mas sim da fluidez em que elas aparecem

para dar forma à vida.

Poesia é viver, é olho no olho, é a dor que arde, é o filho que

chora, é a fome que bate. Se a poesia nada tem a ver com os

causos da vida, então não sei o que é poetizar.

É isso mesmo o que queremos com a produção de crítica?

E, não poderia deixar de registrar o famoso grito ufanista da BPP: “au au au, viva a Bienal!”

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Feres Feres

“Escrever é tornar-se, mas não é de modo algum tornar-se escritor. É tornar-se outra coisa.”